Comemorando 15 anos à frente da Okna Produções, Aletéia Selonk pode dizer que acompanhou de perto as muitas transformações do cinema brasileiro neste período. Quando criou a empresa, em 2006, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) já existia, mas ferramentas que fizeram diferença na produção ainda viriam a se desenvolver – como o Fundo Setorial do Audiovisual, fundamental para o financiamento do setor, a chamada Lei da TV Paga, que destinou espaço para o conteúdo nacional nas emissoras a cabo, e uma série de políticas públicas que incentivaram, por exemplo, a descentralização das produções pelo território brasileiro.
Entrevista: Cristiane Oliveira fala sobre os bastidores de A Primeira Morte de Joana
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Neste período, a Okna formou um catálogo com mais de 40 curtas e médias-metragens, além de oito longas, incluindo os premiados Mulher do Pai e A Primeira Morte de Joana, ambos dirigidos por Cristiane Oliveira. Mas o aniversário de 15 anos também se dá em um contexto desafiador, já que as mesmas políticas públicas que fizeram o cinema brasileiro avançar agora são atacadas ou descontinuadas pelo governo de Jair Bolsonaro.
“Um sistema de produção precisa funcionar como uma engrenagem e é sempre bom ver e participar de um projeto para o audiovisual brasileiro, com metas e articulações”, afirmou Aletéia, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Ruim é ver os momentos em que não existe um projeto nacional para o audiovisual por parte da política pública, justamente em um setor tão estratégico para a economia, a cultura e o desenvolvimento social.”
Apesar do cenário turbulento, e também afetado pela pandemia do novo coronavírus (Covid-19), Aletéia permanece confiante. “A produção audiovisual brasileira alcançou um patamar que garante que ela exista sob todas as circunstâncias”, opinou. “Infelizmente, vários agentes de mercado ficaram inoperantes neste momento, interrompendo seu ciclo de crescimento. Mas muito da produção segue resistindo, lutando e produzindo ativamente até que um contexto mais favorável e condizente com o que merecemos possa acontecer.”
A trajetória de Aletéia na produção é mais antiga do que a Okna, já que antes de criar a empresa atual ela foi sócia da Panda Filmes. A vontade de trabalhar com audiovisual existia desde cedo, mas nos anos 1990, quando entrou na universidade, os cursos de cinema eram poucos e distantes de sua cidade natal, Londrina. Aletéia optou, então, pelo jornalismo, trabalhando em uma emissora de televisão local e em uma produtora de filmes publicitários. Depois, em 1997, mudou-se para Porto Alegre para uma especialização em produção audiovisual na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
“Gostava de dirigir e roteirizar, mas sentia que na produção poderia fazer a diferença”, disse Aletéia. Na Okna, ela trabalha acompanhada de outras três mulheres – Graziella Ferst, Marlise Aúde e Nora Carús – e encara a figura do produtor como alguém que também cria projetos. “Sempre compreendi o quão criativo e inventivo é o campo da produção e até por isso gosto tanto de desenvolver os projetos e me aprofundar nas propostas dos meus criativos”, definiu. Leia a entrevista com Aletéia Selonk:
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Nestes 15 anos em que esteve à frente da Okna, quais as principais mudanças que você percebeu no que diz respeito à produção audiovisual no Brasil?
Uma importante mudança foi a própria valorização do papel da produção. Até os anos 1990, era muito forte o conceito da direção como a única liderança de um projeto. Quando a Okna começou, era novo o formato de uma empresa com uma equipe só de produtoras e disponível para gerenciar projetos e talentos. Mas foi graças a este formato que conseguimos operar tantos projetos ao mesmo tempo, sem falar na rede de apoio e construção que criamos com importantes realizadores, criativos e profissionais da área no Brasil e no exterior. Muita coisa também aconteceu no audiovisual brasileiro: começamos nos valendo das leis de incentivo; vimos o Fundo Setorial do Audiovisual nascer e aprendemos a nos relacionar com ele; participamos do início do movimento organizado de internacionalização do cinema brasileiro e pouco a pouco direcionamos nossa atuação para esta cooperação internacional que já era uma intenção desde o princípio; vimos a Lei da TV Paga mudar o relacionamento entre os agentes de mercado…Um sistema de produção precisa funcionar como uma engrenagem e é sempre bom ver e participar de um projeto para o audiovisual brasileiro, com metas e articulações. Ruim é ver os momentos em que não existe um projeto nacional para o audiovisual por parte da política pública, justamente em um setor tão estratégico para a economia, a cultura e o desenvolvimento social.
O aniversário de 15 anos se dá em um momento desafiador para o cinema nacional, com a pandemia e a falta de investimento no setor pelo governo de Jair Bolsonaro. Neste momento, que caminhos você vê para a produção audiovisual brasileira?
A produção audiovisual brasileira alcançou um patamar que garante que ela exista sob todas as circunstâncias. Infelizmente, vários agentes de mercado ficaram inoperantes neste momento, interrompendo seu ciclo de crescimento. Mas muito da produção segue resistindo, lutando e produzindo ativamente até que um contexto mais favorável e condizente com o que merecemos possa acontecer. A produção audiovisual brasileira está unida na defesa de um projeto nacional que nos valorize. E seguiremos nesta luta. Entendo que o Brasil não é apenas um mercado consumidor de conteúdo, mas sim contribui para a criação e geração de produtos que têm potencial para ocupar mercado dentro e fora do Brasil. Desse modo, entendo que a produção brasileira está se relacionando muito com inovações – seja em termos de metodologias, processos e tecnologia – , está com sua criatividade mais ativa do que nunca para encontrar caminhos e tem recebido apoio internacional, ocupando telas em todo o mundo e mostrando o nosso potencial.
Especificamente no que diz respeito a ser uma produtora mulher, algo mudou nesses 15 anos?
Quando comecei as barreiras eram inúmeras, pois na área do cinema e da comunicação víamos todas as dificuldades produzidas pela organização social no Brasil. Era muito comum sermos as únicas mulheres em um ambiente de trabalho, mas confesso que, apesar das dificuldades, não tive um minuto de desânimo sequer e sempre acreditei no que buscava. Quando comecei nem poderia imaginar que conseguiríamos fazer os avanços que fizemos até agora. Mas fico muito feliz por todas aquelas que vieram antes de mim e por eu ter contribuído também com o espaço da mulher na indústria audiovisual brasileira. Hoje mostramos a nossa força e nosso potencial em cargos de liderança. Como produtora, fico muito realizada quando dou vazão a roteiros e a direções femininas, contribuindo para uma representação do nosso universo nas telas.
Uma cineasta muito associada à Okna é a Cristiane Oliveira, que está desenvolvendo seu terceiro longa-metragem com vocês. O que te atrai no trabalho da Cristiane e como vê a evolução dela como diretora ao longo destes diferentes projetos?
A Cristiane é uma profissional muito especial, diferenciada mesmo. Além de ser uma parceira de produção, tem talento para o roteiro, com extrema sensibilidade e olhar profundo para o cotidiano, bem como explorando as potencialidades de diferentes universos femininos; e para a direção, suave e contundente ao mesmo tempo, articulando ambições artísticas cultivadas com muito estudo e observação. Enquanto estávamos planejando o seu primeiro longa, sempre defendi que pudéssemos pensar em projetos a longo prazo, de modo a defender a carreira dela como um todo. Fico feliz de estarmos sendo bem sucedidas nesta iniciativa e de contribuir para que ela se mantenha ativa, trabalhando, criando. Acredito que é unânime o entendimento e a percepção quanto ao seu amadurecimento, entre os filmes Mulher do Pai e A Primeira Morte de Joana, e estou animadíssima com relação ao seu terceiro longa. Estamos encerrando a etapa de desenvolvimento e partindo para a preparação.
Muitas produtoras veem na publicidade um formato importante para manter a empresa funcionando do ponto de vista financeiro. A Okna, porém, não faz publicidade. Por quê?
A publicidade é um segmento importante e encantador. Mas o que me move é criar conteúdo autoral, original, comprometido com abordagens e temáticas relevantes e com a investigação de linguagem, estética. Meu catálogo reúne diversos gêneros e temas, mas o melhor mesmo é olhar para todas as obras e constatar que continuo achando todas relevantes. Fico feliz por ter pautado tais narrativas junto às equipes e audiências.
A Okna fez várias coproduções internacionais. Que vantagens vê nesse modelo?
A coprodução internacional gera um processo muito interessante de trocas e contribuições artísticas. É muito bom quando produtores e profissionais de diversos países, e com diferentes visões de mundo, debruçam-se em um mesmo material. O aperfeiçoamento gerado nos projetos apenas por esta parte da cooperação já é sensacional. Além disso, a coprodução contribui para a diversificação das fontes de financiamento e reforça o posicionamento no mercado internacional, ampliando naturalmente os territórios prioritários.
Você é do Paraná, a Okna tem sede em Porto Alegre e muitos dos filmes do catálogo foram realizados na região Sul do Brasil. Na sua opinião, qual a importância de fortalecer profissionais, empresas e produções de diferentes regiões do país?
Sou uma entusiasta do tópico da regionalização da produção audiovisual. Em um país continental como o Brasil, os imaginários, paisagens e costumes são um patrimônio importantíssimo do nosso país e precisam chegar às nossas narrativas audiovisuais. Ao mesmo tempo, arranjos produtivos regionais ativos e saudáveis contribuem para a engrenagem do que entendemos como a indústria audiovisual brasileira. É muito importante que o potencial do setor – econômico, cultural, social e até mesmo ambiental – possa estar distribuído e representado em todas as regiões do país de modo a participar do contexto da sociedade que queremos.
Você também é professora de produção audiovisual na PUC-RS e a atual presidente do Fórum Brasileiro de Cinema e Educação Audiovisual (Forcine). O que os cursos e docentes podem fazer para ajudar a criar um audiovisual mais igualitário no Brasil, tanto em gênero como de raça?
O ensino e a formação para o audiovisual é uma das pautas que me encantam e por isso mantenho-me comprometida com ela. Os cursos têm a ambiência perfeita para fomentar as transformações e evoluções que queremos ver no audiovisual brasileiro, e os docentes são os mediadores, os potencializadores deste processo. As diversidades presentes em nossa sociedade precisam de uma vez por todas estarem inseridas em nosso audiovisual, bem como nos corpos discentes e docentes de todos os espaços dedicados à formação. Esta presença é importante para fortalecer esta participação plural que desejamos. Ao mesmo tempo, precisamos fortalecer uma educação baseada em uma visão decolonial, rompendo com o eurocentrismo que dominou o pensamento acadêmico até aqui. Precisamos ter espaços de formação acolhedores para todas as pessoas que queiram se dedicar ao nosso segmento, lembrando que representantes desta diversidade sempre contribuíram para a evolução do audiovisual mas muitas vezes foram minimizados ou riscados da história.
Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?
Primeiramente, valorizem as suas histórias e as suas trajetórias, para que cheguem fortalecidas aos espaços de ação. Acreditem nas redes e apoiem outras mulheres neste caminho, para que juntas possamos evoluir e garantir uma maior equidade de gênero no audiovisual brasileiro. Temos que lutar bastante ainda para isso! Conheçam várias cinematografias, invistam em formação e apliquem a sensibilidade, o olhar humano e o gosto pela coletividade no ambiente profissional.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema