Cristiane Oliveira fala sobre inspirações e bastidores de “A Primeira Morte de Joana”

Depois de estrear no longa-metragem com o premiado Mulher do Pai, a diretora Cristiane Oliveira volta a fazer um belo retrato de uma menina em um momento de transformação em A Primeira Morte de Joana, filme que tem sua primeira exibição brasileira nesta terça-feira (17) na competição nacional do Festival de Gramado. É, também, uma nova reflexão da diretora sobre as relações familiares, desta vez focada em três gerações de mulheres vivendo em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul.

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No centro da história está a personagem-título, Joana (Letícia Kacperski), uma garota de 13 anos que acaba de perder a tia-avó, artista de 70 anos de quem era muito próxima. Intrigada pelo fato de a tia nunca ter namorado ninguém, e vivendo ela mesma o despertar sexual, Joana se lança em uma espécie de investigação ao lado da melhor amiga, Carolina (Isabela Bressane). Neste processo, aprende mais sobre os valores da comunidade onde vive, e também sobre sua mãe, Lara (Joana Vieira), e sua avó, Norma (Lisa Gertum Becker).

Ao contar essa história, escrita em parceria com a atriz e roteirista Sílvia Lourenço, Cristiane mostra os reflexos de uma sociedade conservadora e patriarcal nas relações das próprias mulheres. Explora, ainda, a complexidade dos laços familiares, também eles afetados por opressões e preconceitos. “A família é uma estrutura na qual frequentemente o conceito de cuidado se choca com o conceito de autonomia”, afirmou a diretora, em entrevista ao Mulher no Cinema. “O que seria proteção às vezes pode ser violência.”

Cena do filme “A Primeira Morte de Joana”, de Cristiane Oliveira – Foto: Divulgação

Cristiane é uma diretora especialmente atenta à ambientação de seus filmes, nos quais a geografia gaúcha sempre funciona um pouco como personagem. Se em A Mulher do Pai ela escolheu a Vila de São Sebastião como set de filmagem, em A Primeira Morte de Joana a fictícia cidade de Lagoa dos Ventos reúne paisagens de Santo Antônio da Patrulha e principalmente de Osório, município a cerca de uma hora de Porto Alegre. Ali estão o imponente Morro da Borússia, dezenas de lagoas e um parque eólico que, no filme, está em processo de construção e em diálogo com as transformações da protagonista.

O Mulher no Cinema visitou o set de A Primeira Morte de Joana em dezembro de 2018, durante os últimos dias de filmagens em Osório. Na ocasião, o forte calor e os ruídos da estrada representavam desafios extras para a equipe formada por várias outras mulheres, incluindo a produtora Aletéia Selonk, as produtoras executivas Graziella Ferst e Gina O’Donnell, a diretora de arte Adriana Nascimento Borba, a montadora Tula Anagnostopoulos, a maquiadora Nancy Marignac e as figurinistas Isadora Fantin e Mariane Collovini.

Por causa da pandemia, a sessão de A Primeira Morte de Joana será no Canal Brasil, às 21h30 desta terça-feira (17), com transmissão simultânea pelos serviços de streaming Canais Globo e Globoplay + Canais ao Vivo. Embora sinta falta da exibição em sala de cinema, Cristiane espera que a produção possa chegar a públicos que não costumam ir a festivais. “Torço para que o filme seja uma ferramenta para ampliar diálogos sobre as violências que vamos naturalizando ao longo da nossa formação, enquanto outras coisas, que deveriam ser naturais, são estigmatizadas”, disse a cineasta.

A estreia do filme em circuito comercial está prevista para 2022. Leia os principais trechos da entrevista:

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Este filme é muito marcado pelo lugar onde está ambientado. Foi a locação que te levou à história de Joana ou a história de Joana que te fez filmar naquela locação?

Primeiro veio a personagem da tia, inspirada numa pessoa que conheci: uma senhora de 70 anos, que era super ativa, ligada às artes e a diversos grupos sociais, e que faleceu aos 70 anos sem nunca ter tido um relacionamento amoroso. Isto me instigou e me deu a vontade de escrever uma história sobre coragem. O falecimento dela se deu no período em que essa região foi transformada pela chegada do parque eólico. Aos poucos fui vendo a paisagem ser pontuada por pontos brancos no horizonte, primeiro bem distante da estrada e depois cada vez mais perto, e toda a geografia ser remodelada e reconstruída. Já era uma paisagem que me afetava, porque aquele morro impõe muito respeito e contrasta com a extensão de água – mais de vinte lagoas que estão conectadas. Mas foi depois de achar a história que trouxe o cenário para ela, em especial depois de pesquisar sobre a região e reconhecer elementos da colonização alemã, que tinha tudo a ver com o filme.

Também é um filme no qual há poucos personagens masculinos, mas no qual a presença do conservadorismo e do patriarcado é constante. Fale um pouco sobre a decisão de abordar a repressão das mulheres a partir das próprias personagens mulheres.

A construção da família do filme traz os reflexos do patriarcado em nós, mas influenciado por outras opressões: o racismo, o classismo, os preconceitos relacionados à orientação sexual – tudo isso vai se cruzando na nossa formação desde cedo. Estas questões sempre se colocavam ao meu redor e me incomodavam muito. Achei na história da Joana uma forma de mergulhar nesses aspectos, de me conectar com pessoas que pesquisam sobre isso e de ver como essas opressões andam juntas e se alteram, dependendo de como se conectam. A Silvia [Lourenço, corroteirista do filme] e eu pensamos muito em como não criar novos preconceitos ao abordar preconceitos, mostrando que essas combinações são complexas e não estão relacionadas a uma determinada faixa etária ou religião. É interessante poder mergulhar em cada indivíduo e ver como isso se dá em cada um.

Cena do filme “A Primeira Morte de Joana”, de Cristiane Oliveira – Foto: Divulgação

Por que a decisão de ambientar o filme em 2007?

Foi o ano em que se concluiu grande parte da construção da eólica, e no filme se fala justamente da inauguração. Mas na verdade não se trata de um filme realista nem mesmo no que diz respeito à geografia. O que se vê no filme tem mais a ver com o meu imaginário do que era aquele local quando a construção começou, pois hoje já há outras estradas e tudo foi remodelado. Então deslocamos um pouco da referência realista para criar uma fábula, mas mantendo conexões com a transformação daquela época. Era um momento em que vivíamos uma série de avanços nas questões ligadas aos direitos humanos, em especial nas que tocavam em gênero e orientação sexual, o que foi me motivando a desenvolver o projeto. Infelizmente o filme sai em um contexto totalmente diferente, no qual essas mesmas políticas estão sofrendo retrocesso. Para mim era importante marcar o momento de esperança que se vivia, não só por causa da questão geográfica.

O filme é centrado numa família de origem alemã, mas em determinado momento a umbanda também se torna parte da narrativa. Por que quis incorporar esse elemento?

A religião influencia nossa formação, sobretudo nas questões ligadas à gênero e orientação sexual. Porém, também me interessava mostrar que mesmo dentro das religiões isso não é determinante, e que já existem movimentos de renovação dentro de todas elas. O sincretismo religioso é algo muito presente em mim. Quando era adolescente tive uma experiência na umbanda que me marcou demais, assim como a criação cristã me marcou demais. As questões religiosas estão ao redor dos brasileiros, fazem parte da nossa história. No filme, há uma contraposição entre elas. A umbanda é uma religião mais ligada à terra e aos movimentos da natureza, que traz para a Joana a força ligada ao momento de transformação. Ao mesmo tempo, ela tem a religião católica dentro da escola e a luterana dentro da família. De alguma forma, essas influências aparecem na trajetória dela.

Como foi o trabalho com as atrizes Letícia Kacperski e Isabela Bressane?

Na primeira abordagem, não entreguei o roteiro para elas. Tivemos uma conversa sobre as situações [do filme] e sugeri que elas fossem tomando nota em um caderno, como se estivessem contando por escrito a história que a gente ia fazer junto. Fui perguntando sobre como falariam em cada uma das situações e reescrevendo os diálogos junto com elas. Isso facilitou a assimilação: quando chegaram no set, aquelas palavras já eram delas. Não era um texto a ser decorado, era algo que tinham construído junto comigo desde o início. É claro que quando elas não citavam algo que era importante narrativamente, eu dava uma forcinha e a gente via se cabia ou não, se elas falariam de forma diferente ou não. Depois dessa revisão que fizemos juntas, formatei o roteiro final e entreguei a elas e a toda a equipe. Aí começou um jogo entre todos os atores num laboratório de convivência que montamos junto com a atriz Vanise Carneiro. Ela tem um trabalho muito bacana de preparação, que foi importante para criar nas meninas um clima de família e construir essa intimidade e essas relações.

Cena do filme “A Primeira Morte de Joana”, de Cristiane Oliveira – Foto: Divulgação

Em A Mulher do Pai você também trabalhou com uma atriz jovem e com pouca experiência no cinema. Foi coincidência ou há algo que te atrai especificamente nestes atores iniciantes?

Nos dois filmes a seleção de elenco estava completamente aberta a receber pessoas inexperientes ou experientes. No caso do Joana, contamos com a produção de elenco da atriz Nadya Mendes e vimos cerca de 60 meninas, algumas só por foto, outras por vídeo e depois ao vivo. Fomos formando duplas para que eu pudesse conversar com elas e achar a dupla do filme. Tanto a Letícia quanto a Isabela tinham alguma experiência no teatro e queriam muito ser atrizes. Mas acho que o fato de ter uma atriz na seleção de elenco, uma atriz comigo no roteiro e uma atriz na preparação do elenco ajudou a chegar nesse resultado. 

Seus dois longas acompanham um momento de transformação na vida de uma menina que passa, em parte, por questionar a estrutura familiar na qual estão inseridas. São famílias bem diferentes: em A Mulher do Pai, a menina é quem cuida do adulto, enquanto em A Primeira Morte de Joana a mãe cuida até demais da menina. O que te atrai nesse tema da família?

A família é uma estrutura na qual frequentemente o conceito de cuidado se choca com o conceito de autonomia, no qual o que seria proteção às vezes pode ser uma violência. Me interessa muito investigar os limites desses sentimentos. Você citou a mãe que é muito rígida, e por outro lado a gente percebe a responsabilidade que ela tem de manter a família e de como a imagem da família na comunidade é importante para ela. Ela não tem apenas uma preocupação quanto ao que acontece com a filha, mas também quanto a como o que acontece com a filha pode afetar o negócio dela. Minha intenção foi lidar com essa confusão de conceitos que envolvem o relacionamento familiar, o carinho genuíno e todas as influências opressoras e preconceitos diversos que interferem nisso. Acho a família um núcleo interessante para analisar isso porque as pessoas são sempre muito diferentes entre si, mas têm a prerrogativa de entrar na intimidade um do outro. Na sociedade em geral você pode estabelecer algum tipo de limite, mas na família, não. Você já tem a prerrogativa de entrar na intimidade dos outros, e me interessa muito investigar, nos filmes, o que se dá na intimidade.

Quando visitei o set do filme, me lembro de a equipe do som ter vários desafios por causa do vento forte e do barulho da estrada logo em frente à casa que serve de locação principal. Como vocês resolveram essas questões? Foi preciso dublar diálogos posteriormente?

Usamos alguns acessórios para proteger os microfones do vento e também tivemos o apoio da equipe de figurino. O Raul [Locatelli, responsável pelo som direto] pediu para que as atrizes usassem um top esportivo por baixo dos figurinos, para que o microfone lapela ficasse ali dentro e já tivesse essa proteção extra e o vento não batesse diretamente. Além disso, depois que filmávamos uma cena, íamos com as atrizes para um local com menos ruído para gravar o som de um jeito mais próximo. Dessa forma tínhamos o som mais limpo para usar na finalização, mas ainda com a intensidade da cena, com as atrizes ainda “quentes”. Esse áudio gravado no set nos salvou bastante, então não foi preciso dublar nada. E aí na pós-produção toda a ambiência da cena é sempre reconstruída, misturando sons que o Raul e o Hudson [Vasconcellos, também responsável pelo som direto] captaram no set com efeitos criados em estúdio.

Quando entrevistei Raul no set, ele disse que não havia outra opção além de filmar naquela casa ao pé do morro e perto da estrada. Que casa era aquela e por que era a locação perfeita?

Encontramos a casa durante a pesquisa de locação e fizemos uma parceria com os donos para poder filmar lá. O morro é quase um personagem do filme, e a casa ao pé do morro nos dava mais possibilidade de contar isso. Se não tivéssemos aquela casa, o morro apareceria em uma inserção ou outra, como paisagem. Mas naquela casa não, a gente já tem a Joana mergulhada naquele ambiente, não só visual como sonoro também. E o mais legal é que a casa tinha a vista para a lagoa também, então as duas entidades do filme estão ali.

Cena do filme “A Primeira Morte de Joana”, de Cristiane Oliveira – Foto: Divulgação

Saindo um pouco do tema do filme, gostaria de saber como tem sido esse período de pandemia para você. Como tem sido criar nesse contexto?

A pandemia nos impôs diversos tipos de limites, a começar pela falta da troca, que é muito necessária na nossa atividade. Poder se encontrar, conversar sobre o roteiro…isso faz parte do nosso dia a dia. Ainda acho difícil me adaptar à necessidade da troca online, de ter sempre uma tela atravessando a comunicação. Temos sempre de ficar esperando a nossa vez de falar, não conseguimos ser espontâneos, não é orgânico. Depois, há o distanciamento e toda a tristeza do momento. Todo mundo teve alguma perda na família, eu também tive, e reconhecer a importância dos rituais de luto é algo que inclusive tem tudo a ver com o filme que estou lançando. É muito doloroso não poder ter o luto presencial com a família, o momento da despedida. Fica uma lacuna, não é algo que se consegue acolher facilmente. E fora isso, junto com a pandemia a gente também viveu a paralisia dos processos da Ancine. Estou envolvida em dois projetos aprovados [pela agência] desde 2018 e ambos patinaram durante esse tempo todo para conseguir a efetivação da contratação e o depósito do dinheiro. O cinema tem uma parte presencial, que é o set, mas também existe toda uma parte de pesquisa e desenvolvimento que poderia estar sendo feita na pandemia, e a gente não conseguia receber para poder começar. Por todas essas questões, foi um momento bem complicado. E agora também há muita insegurança por causa da nova variante que está se disseminando. Enfim, estamos todos no mesmo barco, não há nada de especial no que estou vivendo. Mas a nossa atividade está sofrendo muito, assim como teatro, dança e todas as atividades que precisam do encontro para acontecer. O que houve de positivo durante a pandemia foi ter meu novo projeto de longa, Até que a Música Pare, selecionado para o laboratório de desenvolvimento de roteiro do Festival de Berlim. Infelizmente as atividades tiveram de ser online, mas foi bacana aproveitar esse momento da pandemia para trabalhar no novo filme com o apoio dos consultores do festival. 

No mês passado um incêndio destruiu um galpão que abrigava parte do acervo da Cinemateca Brasileira em São Paulo. Como você vê este momento da cultura no Brasil e qual a importância de se preservar a memória e o cinema do país?

Foi muito doloroso ver essa tragédia anunciada, acompanhar aquele momento televisionado. Era inacreditável ver todo aquele fogo na tela da nossa casa e não saber exatamente o que tinha lá. É um desrespeito tão grande, num nível tão básico, de a gente não ter nem a permissão de que um funcionário ficasse trabalhando para manter aquela memória. Se os funcionários estivessem trabalhando, não poderiam impedir que a fagulha que gerou o incêndio acontecesse, mas provavelmente teriam tomado providências em relação ao material mais inflamável. Eram funcionários com formação especializada e que seguiam uma série de protocolos. No mínimo, poderiam orientar os bombeiros para evitar que a água destruísse ainda mais. Tenho filmes depositados na Cinameteca e não sei se eles foram deslocados para o local que pegou fogo. Em tese não foram, mas a gente não tem como saber até que se faça um inventário de tudo o que estava lá. Fazendo uma analogia com o que a gente está vivendo agora, cada pessoa que falece leva um mundo de sonhos junto com ela. A Cinemateca, para mim, é como se fosse um depositório de muitos sonhos, dos sonhos de muita gente, que correm o risco de ter desaparecido completamente. Nossa atividade se alimenta muito da construção do imaginário coletivo, e a gente perdeu grande parte do nosso imaginário coletivo esse ano, graças à negligência do governo federal.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Gustavo Galvão

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