Se o bom momento das séries de televisão motivou a expressão “Peak TV”, ou “auge da TV”, não há dúvida de que também estamos vivendo o “Peak Atwood”. A brincadeira criada pela imprensa americana ressalta o fato de que, com quase 80 anos, a escritora canadense Margaret Atwood experimenta a fase mais popular da carreira, graças a dois seriados inspirados em seu trabalho: The Handmaid’s Tale, premiada com o Emmy e cuja segunda temporada estreia em abril no Hulu; e Alias Grace, que estreou no início do mês na Netflix e é uma coprodução com a rede CBC, do Canadá.
Vídeo: Veja o teaser da segunda temporada de The Handmaid’s Tale
O sucesso das duas séries e o redescobrimento da obra de Atwood estão ligados principalmente aos tempos em que vivemos. Da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos à recente iniciativa de parlamentares brasileiros de proibir qualquer tipo de aborto, mesmo em caso de estupro, o noticiário da vida real tem dado nova relevância à ficção da autora. De repente, já não parecemos tão longe da sociedade distópica que trata as mulheres como propriedade do Estado, descrita em O Conto de Aia, livro publicado em 1985 no qual The Handmaid’s Tale se baseou.
Da mesma forma, a sociedade canadense de 1800 retratada em Vulgo Grace, obra de 1996 que inspirou Alias Grace, está longe de ser datada, e toca fundo em temas como aborto, desigualdade de gênero e a constante ameaça da violência em geral e do estupro em particular. Olhando para o futuro ou para o passado, Atwood tornou-se uma artista-chave para os dias atuais ao provocar um questionamento urgente: o quanto avançamos, ou não avançamos, nos direitos das mulheres?
Entre as duas séries, The Handmaid’s Tale é a mais impactante, pois insere o espectador em um mundo baseado no real, mas com novas regras e rituais, além de figurino e linguagem muito particulares. Alias Grace, por sua vez, oferece um universo mais conhecido, e reproduz com precisão as casas, roupas e artefatos do passado, graças a um impecável trabalho de direção de arte (a própria Atwood se surpreendeu ao notar que até as compotas vistas em cena eram de verdade e feitas à moda da época). A história é inspirada em um caso real e começa em 1859, quando Grace Marks (Sarah Gadon) está presa há 15 anos pelo assassinato do patrão, Thomas Kinnear (Paul Gross), e da governanta dele, Nancy Montgomery (Anna Paquin). Na época, Grace tinha 16 anos e foi enviada à prisão perpétua, enquanto o também condenado James McDermott (Kerr Logan) foi sentenciado à morte. Tanto tempo depois, o reverendo Verringer (David Cronenberg) tem a expectativa de conseguir um perdão para Grace. Para isso, convida o médico americano Simon Jordan (Edward Holcroft) a conversar com a prisioneira e ajudá-la a superar bloqueios na memória para relembrar qual papel desempenhou no crime.
Como em The Handmaid’s Tale, a trama de Alias Grace é conduzida pela narrativa da própria protagonista. Mas se na série da Hulu confiamos instantaneamente em Offred e torcemos por ela, no caso de Grace a incerteza nos acompanha da primeira à última cena. Como a sociedade da época, nos dividimos entre acreditar e duvidar dela – ou, como a própria personagem define, não sabemos se estamos diante de um “demônio desumano” ou de uma “vítima inocente”.
A ambiguidade é o elemento mais importante da história de Grace Marks, e o maior mérito da série é preservar tal ambiguidade na adaptação do texto para a televisão, um meio no qual trabalhar a dúvida, a nuance e o “não mostrar” pode ser desafiador. O sucesso da transição das páginas para as telas se deve muito à excelente atuação de Sarah Gadon, que resiste à qualquer tentação de revelar mais do que o necessário. Não há, aqui, nenhum excesso: nem de emoção, nem de frieza, nem de inocência, nem de culpa, nem de simpatia, nem de antipatia.
O mérito também é da direção precisa de Mary Harron, à frente de todos os seis episódios da minissérie, e do roteiro de Sarah Polley, já bem-sucedida na adaptação de outra notável escritora canadense, Alice Munro. Polley claramente conhece o material original: hoje com 38 anos, ela tinha 17 quando solicitou os direitos de adaptação de Vulgo Grace pela primeira vez (Atwood, na época, negou o pedido). E há paralelos entre a série e outros trabalhos dela, como Longe Dela (2006) e História que Contamos (2012), filmes que exploram o modo como realidade e ficção se confundem em uma narrativa, e como a verdade pode ser alterada pelo que é esquecido ou lembrado, voluntária ou involuntariamente.
Alias Grace oferece à Polley a chance de mergulhar mais fundo nesta reflexão, e de jogar o tempo todo com a ideia de que quem conta uma história é tão importante como a história em si. Será que eu disse isso? Ou disse outra coisa? Foi assim mesmo? Pode ter acontecido? É a própria Grace quem questiona sua posição de dona da narrativa, mantendo tanto o médico quanto o espectador em constante estado de alerta.
Veja o trailer de Alias Grace:
“Alias Grace”
Minissérie original da Netflix, em parceria com a CBC
Escrita por Sarah Polley e dirigida por Mary Harron
Elenco: Sarah Gadon, Edward Holcroft, Anna Paquin, Kerr Logan.
Episódios: 6
Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema.