Renée Nader Messora: “O índio é esquecido por todo mundo”

Um filme protagonizado por índios e codirigido por uma mulher foi o único título brasileiro premiado na última edição do Festival de Cannes. Ganhador do prêmio do júri na mostra Um Certo Olhar, Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos, de Renée Nader Messora e João Salaviza, estreia no Brasil nesta quinta-feira (18).

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O filme foi rodado ao longo de nove meses na aldeia Pedra Branca (Terra Indígena Krahô, no Tocantins) e conta a história de Ihjãc, jovem que foge para a cidade para escapar do feitiço de um pajé. Defini-lo como documentário ou ficção é algo que a própria diretora não faz: “A gente não inventou nada do que filmou, mas as coisas não aconteceram exatamente da maneira como a gente filmou”, explicou Renée ao Mulher no Cinema, em entrevista realizada em 2018, na véspera da estreia mundial em Cannes.

Este é o primeiro longa de Messora como diretora, mas a relação com o povo Krahô é antiga. Depois de uma primeira visita à aldeia em 2009, acompanhando a filmagem de um amigo, ela passou a fazer diversos projetos com a comunidade. Hoje, participa da mobilização do coletivo Mentuwajê Guardiões da Cultura, que reúne cinegrafistas e fotógrafos indígenas e busca usar o audiovisual como instrumento para a autodeterminação e o fortalecimento da identidade cultural dos índios.

Leia os principais trechos da entrevista:

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Renée Nader Messora, codiretora de
“Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”

Você tem uma relação antiga com a comunidade Krahô. O que você viu ou viveu na aldeia que fez com que se envolvesse tanto com o lugar e as pessoas?
A primeira viagem foi em uma aldeia a uns 70 km da estrada principal. Para mim, que sou de São Paulo e me criei no meio dos prédios, era como se fossem 700 km, porque era uma estrada muito ruim, uma viagem longa numa caçamba, chacoalhando, no sol. Nos primeiros três dias na aldeia nem consegui tirar minha câmera da mochila. Não tinha coragem, me sentia realmente uma invasora, um corpo estranho. Devagar fomos nos acostumando, e os índios também foram se acostumando com a nossa presença. Tínhamos levado um gerador e um projetor e passamos um filme, acho que do Charles Chaplin. A criançada ficou alucinada: eles sentaram em frente ao projetor e ficamos quase a madrugada inteira passando um filme atrás do outro. Só paramos quando acabou a gasolina do gerador. Aquilo foi muito forte. A gente ama o cinema e sabe o poder que ele tem. Então não sei ao certo, mas alguma coisa aconteceu ali.

Como você e João Salaviza chegaram ao Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos?
Foi um processo bem longo. Depois da filmagem de Montanha [primeiro longa de Salaviza, no qual René foi assistente de direção], João e eu estávamos esgotados. Eu estava voltando para a aldeia, e ele falou que queria ir comigo. Já tinha contado bastante, mostrado imagens e coisas que foram instigando a curiosidade. Então quando acabou o Montanha ele foi para lá e começaram a surgir os primeiros indícios de que a gente faria um filme. Nos meus trabalhos de oficina, tínhamos organizado um grupo com cinegrafistas indígenas, e um dos meninos deste grupo tinha passado por uma história muito louca. Ele começou a se sentir fraco, assustado, e descobriu que um pajé tinha jogado um feitiço nele. Se ficasse na aldeia, achava que ia morrer, então fugiu para a cidade. [Este caso] foi o disparador. A partir daí fomos organizando nossos encontros na aldeia, a realidade que ia acontecendo com a gente, as coisas que escutávamos…durante dois anos isso foi ganhando consistência até chegarmos na ideia mais concreta do filme.


“A gente não inventou nada do que filmou, mas as coisas não aconteceram exatamente da maneira como a gente filmou. Às vezes há mise-en-scène clássica e cenas super decupadas, e às vezes a câmera caminha como se fosse um espírito Krahô. Não sei o que o Chuva é. O Chuva é um filme.”


E é um documentário ou uma ficção?
A gente não inventou nada do que filmou, mas as coisas não aconteceram exatamente da maneira como a gente filmou. O filme se permite os dois caminhos. Às vezes vai ter mise-en-scène clássica e cenas super decupadas, com plano, contraplano, diálogo, tudo bonitinho; e às vezes, principalmente nas cenas de rituais, a câmera se perde na comunidade e caminha como se fosse um espírito Krahô. Não sei o que o Chuva é. O Chuva é um filme.

Há um fortalecimento do debate sobre a representatividade no cinema, principalmente no caso das mulheres e dos negros, mas muitas vezes essa discussão parece não chegar aos índios…
[Interrompendo] Não, não chega, e isso é transversal: à direita e à esquerda. Tenho essa discussão com pessoas até muito próximas, que falam: “Ah, mas poxa, a gente tem que lutar, o Lula está preso.” E eu falo: “Ok, o Lula está preso. Mas ninguém nunca nem se lembra de citar os indígenas.” É impressionante, O movimento negro aflorou com uma força incrível, o movimento feminista também, e acho tudo isso incrível. Mas ninguém se lembra de falar dos indígenas. O índio é esquecido por todo mundo.

Imagem do filme “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”

O Mulher no Cinema também fala pouco sobre realizadoras indígenas. O que você pode contar sobre esse assunto? Nas oficinas que você faz, percebe interesse das mulheres pelo cinema?
Posso falar da minha experiência pessoal, porque não conheço outros contextos. Se eu tiver que citar [realizadoras indígenas mulheres], só consigo citar a Patrícia [Ferreira Keretxu]. Na primeira oficina que fiz na Pedra Branca, metade do grupo era de mulheres, o que foi inclusive uma condição. Foram muitos trabalhos com o mesmo grupo, e cada vez tinha menos mulheres. O que acontece? Estas meninas ficam grávidas muito cedo, viram mães muito cedo. E é ok, é o jeito deles, mas é difícil dar continuidade ao trabalho. Por outro lado, uma das meninas, realizadora indígena na Pedra Branca, ganhou um prêmio pelo melhor filme de um minuto em todo o Tocantins. Então você tem as duas coisas: aquilo que eu, branca, vou chamar de limitação, porque na minha concepção de mundo uma menina de 15 anos não deveria ter um filho; mas também há essas meninas super capazes, super criativas, fazendo coisas incríveis e melhor do que os meninos. Elas querem aprender, só que existe o dia a dia da comunidade e o jeito de fazer as coisas, que é muito anterior a nós.


“Aprendi a respeitar o tempo das coisas. O Krahô diz que o branco perdeu a paciência do mundo, e acho que aprendi um pouquinho essa paciência do mundo: esperar as coisas e saber que aquilo talvez não comece quando você acha que deve começar e não acabe quando você acha que deve acabar.”


Qual o maior aprendizado neste primeiro longa-metragem como diretora?
Filmamos durante nove meses, seguindo o ritmo da aldeia, e acho que o que mais aprendi foi a respeitar o tempo das coisas. O Krahô diz que o branco perdeu a paciência do mundo, e acho que aprendi um pouquinho essa paciência do mundo: esperar as coisas e saber que aquilo talvez não comece quando você acha que deve começar e talvez não acabe quando você acha que deve acabar. Você não pode controlar as coisas, e as coisas têm a importância que você dá para elas. Na aldeia, nosso filme era tão importante quanto lavar roupa, ir colher mandioca ou fazer reunião no pátio. Nosso filme não era importante para ninguém, e a gente aprendeu isso também: que o filme não era importante. O importante era justamente estar ali, 100% presente, vivendo aqueles dias com aquelas pessoas e tentando contribuir de alguma forma.

Que conselho você daria para as mulheres que querem ser diretoras?
Trabalhem com mais mulheres. Infelizmente o cinema é um meio super machista, a fotografia é pior ainda, e temos que dar a mão e ir junto. É o único jeito. Vamos ter de nos impor e não esperar que alguém ajude a gente. Temos que nos ajudar, ir pra frente juntas. Sempre que posso tento trabalhar com mulheres, chamar outras mulheres. A gente tem que ir puxando uma pela outra, para ir todo mundo junto. Se não, não vai ninguém.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Pascal Le Segrétain/Getty Images

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