Em 1980, Marina Abramovic e seu então companheiro, Ulay, realizaram The Other: Rest Energy, perfomance na qual o casal segurava um arco tensionado apenas pelo peso de seus próprios corpos e apontava uma flecha para o coração da artista sérvia. Neste exercício de confiança e equilíbrio, nenhuma das partes poderia se soltar.
Rest Energy serviu de inspiração para Pendular, longa de Julia Murat que chega aos cinemas nesta quinta-feira (21). O filme combina diferentes expressões artísticas para a explorar a busca por equilíbrio e a dificuldade de comunicação de um casal de artistas – ela, dançarina; ele, escultor – que passa a viver em um galpão abandonado no Rio de Janeiro. Uma fita adesiva no chão divide o espaço exatamente na metade e sugere um relacionamento no qual cada indivíduo tem o mesmo peso, valor e responsabilidade. Aos poucos, porém, tanto os limites físicos quanto emocionais começam a ser questionados.
Pendular é a segunda ficção de Julia Murat, após Histórias que Só Existem Quando Lembradas (2011) – e como no filme anterior, a chegada ao Brasil se dá após uma carreira internacional muito bem-sucedida. O longa foi exibido na seção Panorama do Festival de Berlim e ganhou o prestigiado prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema (FIPRESCI), que destacou a “qualidade visual”, “força narrativa” e “originalidade dramática e estética”. Também neste ano, o nome da diretora brasileira foi citado em uma lista de oito cineastas para se ficar de olho publicada pelo jornal americano The New York Times, que definiu Pendular como “ao mesmo tempo idêntico e completamente oposto” ao sucesso hollywoodiano La La Land: Cantando Estações, de Damien Chazelle.
O desafio, agora, é chegar aos espectadores brasileiros em um mercado exibidor que dá pouco espaço a filmes como Pendular, e principalmente depois de o filme ter recebido classificação indicativa de 18 anos pelo Ministério da Justiça, provavelmente pelas cenas de sexo realistas – mas não explícitas. Dificuldades como essas não são novidade para Julia: filha da cineasta Lucia Murat, ela acompanhou de perto os obstáculos enfrentados pela mãe.
“O que me ajudou muito foi entender que o processo é árduo e, assim, não parar nos primeiros ‘nãos'”, disse Julia, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Minha mãe me disse: ‘Cinema não é feito por quem recebe resposta ‘sim’. Cinema é feito por quem consegue receber a resposta ‘não’ e continuar trabalhando.'”
Na entrevista a seguir, a diretora fala sobre os bastidores de Pendular, a escolha da locação que é fundamental na narrativa e sobre a equipe cheia de mulheres, que inclui a produtora Tatiana Leite, a diretora de fotografia Soledad Rodrigues, a diretora de arte Ana Paula Cardoso, a figurinista Preta Marques e as montadoras Lia Kulaukauskas e Marina Meliande, além de Flavia Meireles, responsável pelas coreografias, e Elisa Bracher e Marina Kosowski, pelas esculturas.
Leia os principais trechos da entrevista:
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Cinema, dança e escultura estão muito ligados em Pendular. Mas como o filme se deu, de fato? A coreografia e as esculturas se deram a partir do roteiro? O que veio antes?
Foi tudo junto, com vários processos e momentos. A ideia era trabalhar com equilíbrio, e tínhamos dois conceitos. O primeiro era o equilíbrio estático, segundo o qual o equilíbrio se dá no ponto em que as forças se anulam. O outro era o equilíbrio a partir do movimento, como o andar de uma pessoa, por exemplo. [O conceito do filme era de que] o equilíbrio não é algo parado e, sim, o encontro de duas forças antagônicas ou um processo em movimento. Essa conceitualização foi feita pelas pessoas que faziam as três coisas [o filme, a coreografia e as esculturas]. Depois de escrevermos a primeira versão do roteiro, fizemos um workshop de dois meses durante o qual dividimos um galpão no meio – metade para a escultura, metade para a dança. Ficamos ali desenvolvendo performances e obras.
Os atores já estavam participando?
Não, só a equipe. Depois do workshop trabalhamos por mais dois anos no roteiro. Quando tínhamos o dinheiro para filmar começamos a procurar o elenco, e com os atores definidos voltamos para o roteiro e o reconstruímos. Fizemos mais dois meses e meio de ensaio de dança, agora com os atores, e a Elisa Bracher ficou quatro ou cinco meses fazendo as esculturas. De novo voltamos para o roteiro até finalmente começar o ensaio dos atores e a filmagem.
O galpão é ao mesmo tempo cenário e personagem da história. Como o encontrou e como foi trabalhar aquele espaço? O longa passa a impressão de uma filmagem bastante intensa.
Além de tudo eu estava grávida e o calor era infernal. Foi muito difícil encontrar o galpão – visitamos muitos lugares e todos tinham vantagens e desvantagens. No caso [do escolhido], apesar de imageticamente ele ser muito forte, havia duas desvantagens gigantes. A primeira era que de fato se tratava de um galpão abandonado havia 30 anos, então tinha poeira e sujeira de 30 anos. Eram cinco andares de uns 10 mil metros quadrados cada e não tínhamos condições de limpar tudo. A outra dificuldade era o barulho, porque o galpão era do lado do CADEG (Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara) e para o som do filme era muito difícil. Hoje fico feliz [com a escolha], acho que é um personagem, sim. Mas na semana anterior à filmagem, achei que tinha escolhido errado. Porque já tínhamos limpado muito e o chão continuava sujo. Passamos uma cera para dar um pouco de brilho, trazer cor, e no dia seguinte estava sujo de novo. Limpávamos [a área das filmagens] duas vezes ao dia para ter o sentimento de que continuava sujo, mas pelo menos era habitável.
O filme tem muitas mulheres na equipe. Isto foi proposital ou apenas aconteceu?
Não foi uma proposta política. Foi um encontro de pessoas com as quais me identifico. Acho que não deve ser à toa que eu me identifique com tantas mulheres. Mas não foi uma decisão afirmativa.
E como foi trabalhar em um set com tantas mulheres?
Como estava grávida, elas ficavam me trazendo água de coco, fazendo coisas totalmente carinhosas, que acho que têm a ver com o fato de serem mulheres. O pessoal da produção foi muito cuidadoso comigo, e para mim de fato foi punk. Era um lugar muito agressivo e eu estava nos três primeiros meses [de gravidez], enjoando. Houve muita solidariedade.
O que você achou de o filme ter recebido classificação indicativa de 18 anos?
Achei uma cagada. A Vitrine [Filmes, distribuidora do longa] já achava que era possível que isso acontecesse, porque tinha acontecido com o Kléber [Mendonça Filho, diretor de Aquarius, que recebeu classificação indicativa de 18 anos e, após críticas, 16 anos] e porque o filme mostra o sexo mais claramente. E ainda tem a coisa da inversão de papéis, que as pessoas não veem geralmente. Mas acho assustador que o sexo não possa ser visto. Porque os adolescentes transam! Pelo que entendi da lei, você pode mostrar o sexo, mas não o pau. Fico brincando que [é como dizer que] os adolescente podem transar, mas de olhos fechados. Por uma decisão política, vamos entrar com recurso. Acho que não vamos ganhar, mas é uma decisão política de não aceitar isso caladamente.
Tanto Pendular quanto seu longa anterior, Histórias que Só Existem Quando Lembradas, tiveram carreiras internacionais muito boas. Por que você acha que seus filmes viajam tão bem?
Histórias teve a facilidade de ser exótico. Ele trabalha com uma cidade interiorana, rural, e acaba chamando a atenção. Acho que a Europa tende a gostar de exotismo. E acho que o Pendular se beneficiou muito do Histórias. Não o prêmio [no Festival de Berlim], mas o fato de entrar [na seleção] deve ter tido a ver com a carreira do Histórias. O Pendular também tem coprodução francesa e argentina, o que ajuda muito. Os produtores franceses falaram: “Não tem uma história um pouco mais específica do Brasil?”. Porque é um filme pouco específico, que poderia se passar em várias cidades do mundo.
O desafio agora será encontrar o próprio público brasileiro, diante do gargalo representado pela distribuição. Você é a favor de uma política pública para filmes nacionais nesta área especificamente?
Sou. O Fundo Setorial do Audiovisual até tem um sistema de distribuição, pois coloca [determinado valor], no nosso caso R$ 200 mil, para o lançamento. Não deixa de ser uma política pública, e graças a isto estamos conseguindo lançar. Mas acho que deveria haver uma política muito mais séria, de formação de público, de entrar junto com os exibidores, seja apoiando, seja exigindo [determinada quantidade de salas]. E não só para filmes nacionais, mas filmes com outras vertentes. [É preciso fazer] alguma coisa que deixe [o cenário] minimamente igualitário, porque do jeito que está, o processo é muito injusto. O Pendular certamente fará menos público do que poderia se houvesse uma política de formação.
Em muitos casos os filmes nacionais acabam sendo mais vistos no exterior…
Sem dúvida. O Histórias, por exemplo, teve mais público na Holanda, um país mínimo, do que no Brasil.
A Caru Alves de Souza disse que a princípio não tinha a intenção de trabalhar com cinema pelo fato de ter acompanhado de perto as dificuldades da mãe [a cineasta Tata Amaral]. No seu caso, conhecer os obstáculos enfrentados pela sua mãe chegou a te desanimar quanto à ideia de seguir nesta carreira?
Minha mãe disse que, ao me ver fazer cinema, chegou à conclusão de que não deve ter sido tão ruim, porque senão eu teria desistido, já que sabia o quão difícil era. O que me ajudou muito foi entender que o processo é árduo e, assim, não parar nos primeiros “nãos”. Que de fato aconteceram – e pesado: eu demorei 12 anos para fazer o Histórias. Passei muito tempo tentando captar e só consegui dinheiro no Brasil depois que o filme já tinha passado no Festival de Veneza. Ver minha mãe trabalhando, ver ela levando os “nãos” [me ajudou]. Quando levei meu primeiro “não”, aos 17 anos, em um edital de curtas, fiquei péssima. E ela me disse: “Julia, cinema não é feito por quem recebe resposta ‘sim’. Cinema é feito por quem consegue receber um ‘não’ e continuar trabalhando.” Foi um grande aprendizado que tive.
O que mais você aprendeu com ela?
Isso foi muito forte: essa necessidade de continuar trabalhando. Minha mãe tem uma força impressionante – força de trabalho, força motriz mesmo. Acho que peguei isso dela. O fato de eu estar no set de filmagem desde que nasci também muda tudo, ajuda muito. E minha mãe me permitiu trabalhar em todas as áreas. Nos filmes dela fui assistente de produção, direção, montagem e câmera. Pude rodar muito, o que me ajudou a conhecer, saber como fazer, saber ouvir os técnicos e dividir os problemas com o fotógrafo, saber quando estamos nos arriscando pouco…
E qual conselho você daria às mulheres que querem ser diretoras?
Continuem tentando! Não escutem o primeiro “não” [risos]. Vai vir muito “não”, vai vir muita porrada, certamente mais ainda para as mulheres. Mesmo uma pessoa extretamente privilegiada como eu – classe média, filha de cineasta – levei “não” pra caramba. Então acho que eles realmente virão. Mas é preciso continuar tentando.
Veja o trailer de Pendular: