
Há algo de original no quão comum é a personagem de Denise Weinberg em O Último Azul, longa-metragem de Gabriel Mascaro que estreia nesta quinta-feira (28) nos cinemas. Ela se chama Tereza, tem 77 anos e mora em um Brasil distópico, mas não muito difícil de imaginar, no qual os idosos são obrigados a se mudar para uma colônia habitacional. A desculpa é a de que os velhos ganharam o direito de descansar; a intenção é manter filhos e netos —a juventude produtiva do país— focados no trabalho.
Saiba mais: Apoie o Mulher no Cinema e acesse conteúdos exclusivos
Formas de burlar a obrigatoriedade estão disponíveis a quem possa pagar por isso, mas não é o caso de Tereza, que criou a filha sozinha, trabalha em uma fábrica e vive em uma casa simples. Se não pode evitar o exílio forçado, ela quer ao menos realizar o sonho de voar de avião. Para isso, embarca em uma jornada pelos rios da Amazônia e encontra, pelo caminho, pessoas que lhe ajudam a visualizar um futuro diferente.
Descrito nestes termos, O Último Azul pode parecer um daqueles filmes que acompanham a última e transformadora viagem de um personagem idoso, um dos mais comuns entre os poucos retratos que o cinema faz da velhice. Mas a história de Tereza não tem nada de piegas, sua viagem não tem tom de despedida, e a transformação pela qual passa se dá dentro dos limites de sua própria realidade. Enquanto navega pela Amazônia, ela não escreve um best-seller ou reencontra um amor da juventude. O que vemos, na tela, é apenas uma protagonista idosa que quer seguir vivendo a própria vida.
“Acho que a Tereza é uma mulher comum, que tem uma vida ordinária, simples, e quando o governo faz uma lei autoritária e o livre-arbítrio dela deixa de entrar em ação, ela resolve se rebelar”, definiu Denise Weinberg, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Eu adoro a indignação no velho. Não a teimosia, a indignação. O filme mostra uma rebeldia etarista que eu nunca tinha visto, e foi isso que me fascinou.”
O Último Azul chega a 155 salas de cinema de 71 cidades brasileiras, embalado por uma trajetória de sucesso no exterior. Em fevereiro, o longa recebeu o Urso de Prata, segundo troféu mais importante do Festival de Berlim, além dos prêmios do júri ecumênico e do júri de leitores do Berliner Morgenpost, entregues paralelamente ao evento. Selecionado para mais de 40 outros festivais, o filme já tem distribuição assegurada em 67 países e está entre os títulos que buscam representar o Brasil no Oscar.
Na entrevista a seguir, Denise Weinberg fala sobre a construção da personagem, a pressão para que atrizes estejam sempre jovens, a experiência de filmar na Amazônia (o longa foi rodado em Manaus, Manacapuru e Novo Airão) e a importância dos incentivos à distribuição para que o cinema nacional chegue ao público.

Filmes protagonizados por mulheres idosas são poucos de forma geral, mas esta personagem se distancia também de algumas das representações que chegamos a ver. Não é um filme sobre uma velhinha fofinha que faz a última viagenzinha, não é um filme que coloca a mulher idosa em uma situação muito louca ou mirabolante, não é um filme sobre alguém que de repente escreve um best-seller ou reencontra o amor da juventude, esse tipo de coisa que às vezes aparece no cinema. Me parece que a originalidade da personagem está, em grande medida, no quão comum ela é: apenas uma mulher que está envelhecendo e quer seguir vivendo a própria vida —o que soa banal, mas é raro de se ver. Como você achou o tom dessa personagem, ou seja, como chegou nessa mulher idosa que não é nem fofa, nem doida, nem coitadinha?
Eu me antenei muito nisso que você falou, de não fazer a velhinha, a caricatura de ser velha. Sou idosa e não fico batendo pelas paredes ou mancando. Aliás, às vezes esqueço completamente de que tenho 69 anos. Alguns idosos e idosas têm aquela autopiedade: “ah, agora não consigo mais levantar”, “me ajuda aqui, não consigo fazer isso sozinha”. Isto me irrita profundamente. Sempre fui e sou independente, moro sozinha, tenho pavor de depender dos outros. Já falei para o meu filho: “Quando eu depender, desliga a máquina”.
A outra possibilidade era fazer uma idosa que não se acha idosa. Mas acho que a Tereza é uma mulher comum. É uma mulher ordinária, sem conotação pejorativa. É uma mulher que tem uma vida ordinária, simples. Quando o governo faz uma lei autoritária e o livre-arbítrio dela deixa de entrar em ação, [acende o] alerta vermelho e ela resolve se rebelar. Eu adoro a indignação no velho. Não a teimosia, a indignação. Vai viajar sozinha? Vou viajar sozinha. Vai dirigir? Vou dirigir. Porque os jovens também infantilizam os velhos. É uma via de mão dupla. O velhos às vezes se deixam [infantilizar], mas quando não deixam se revoltam. E aí os filhos dizem: “Vovó está impossível, está revoltada”. E aí interna.
Todo mundo vai envelhecer. Todo mundo vai morrer. Não tem jeito, é a vida. E acho que o filme mostra uma rebeldia etarista que eu nunca tinha visto. Foi isso que me fascinou. Geralmente os filmes abordam a velhice porque [o personagem] está com Alzheimer, está doente, está na finitude, está desistindo, está deprimido. Será que tem de ser nessa grade? Por que não pode deixar envelhecer bem? O envelhecimento é uma etapa que acho muito interessante. Você tem um tempo que nunca teve, porque trabalhou, foi à luta. Tem um tempo para ler, para estudar outras coisas, para assistir, para viajar.
Há uma beleza e sensualidade no modo como você é filmada, principalmente a partir do momento em que a Tereza encontra a Roberta, personagem da atriz Miriam Socarrás. Um pouco na linha do que falei anteriormente, desse retrato natural ou comum da velhice, o filme nem faz grande coisa da sexualidade da mulher idosa, nem a esconde ou ignora. Como vocês trabalharam essa questão da sensualidade, do desejo e da liberdade das mulheres nessa fase da vida, algo que ainda é tratado como tabu?
A filmografia do Gabriel [mostra que ele] tem uma preocupação muito grande com os corpos. E eu gosto muito disso também. No palco, tenho uma fisicalidade muito forte. E na vida, meu corpo está sempre em movimento. Não me preocupei em ficar sensual, te juro que isso não passou pela minha cabeça. Apenas fui fazendo. Quando o Gabriel me mandou a música do Reginaldo Rossi [“Aonde Você For Eu Vou Também”, que Denise canta e dança no filme]…aquela música me deu um “uau”. Não fiquei pensando no resultado, não. Fui eu, Denise. Pensei: “Puxa, que coisa legal, dar uma ginga aí, fazer uma coisa pequenininha”. Foi assim que fiz. Não me preocupei em mostrar meu corpo [de forma] sensual. Fui fazendo pelo que batia para mim, Denise, e o Gabriel foi me dirigindo. Acho que é uma das cenas mais bonitas do filme. E são duas mulheres, mas não tem nada a ver com sexualidade, tem a ver com parceria. São duas mulheres que ficam parceiras, mas não vou dar spoilers.

A questão do envelhecimento está muito ligada à estética, sobretudo no caso das mulheres. Muitas vezes, a sensação é de que o problema nem é ser velha, é parecer velha. E acho que as atrizes estão no centro disso, porque de um lado recebem muita pressão para parecerem sempre jovens, e de outro, repassam essa pressão já que acabam ajudando a estabelecer o padrão que todas as outras mulheres devem seguir. Você já falou em entrevistas sobre não ter feito procedimentos estéticos. Resistir a essa pressão é algo que você consegue fazer de forma tranquila ou foi algo que teve de aprender a fazer? Como lidar com essa questão que de certa maneira está se tornando parte da profissão de atriz?
Para mim, sempre foi tranquilo. Nunca passou pela minha cabeça fazer procedimento. Nunca me incomodou [o envelhecimento]. Acho que faz parte da natureza. Como sou bióloga [de formação], entendo que envelhecer faz parte da biologia, faz parte da vida. Mas acho que às vezes as atrizes se desviam do seu próprio talento e do seu próprio objetivo para fazer procedimento. Atrizes de 30 anos estão fazendo procedimento na cara —isto é uma doideira. Aí chega os 50, vai dar merda. Claro que vai dar merda, vai começar a virar o Fofão.
Acho uma violência, acho invasivo. Eu prezo as minhas rugas. Isto aqui é minha história. Não quero ficar jovem para sempre. Não me interessa isso. Acho que o medo de envelhecer é provocado por um machismo absurdo, e por um lucro absurdo [gerado] pelos procedimentos estéticos, cremes faciais e tudo que vem junto. Para o homem não tem isso. O homem é charmoso quando fica velho e de cabelo branco. Por que essa diferença? Por que para eles é normal e nós temos de ficar gatinhas para sempre? Há uma distorção e uma perversidade machista, controlada pelos laboratórios, médicos e hospitais, que roubam a gente com esse discurso. Esta coisa do procedimento é uma indústria bélica contra a mulher. E a mulher caiu.
Mas [a sociedade] vai ter de aguentar a gente velha. O planeta está ficando velho. Então vai ter de aguentar. E vai ter de ter papéis para gente velha. Eu até brinco que o Gabriel [Mascaro, diretor do filme] me escolheu [para o papel] porque não fiz procedimento nenhum. Ele diz: “Não, não fala assim”. E eu digo que é verdade, que ele não conseguia achar ninguém da minha idade que não estivesse botocada.
Acho isso muito triste para nós, mulheres. Não se preocupem com isso, não. A nossa beleza é interna, a nossa beleza é de outra ordem. Não é isso aqui. As mulheres mais velhas ficam mais velhas, mas não é isso que move o mundo. Eu não acredito nisso. E nem quero acreditar, porque acho idiota. O barato é um bom papo, é um bom humor, é um bom riso, uma boa risada, é um bom vinho. E você pode ficar quieta e tranquila.
Esta questão do etarismo, e da falta de papéis sobretudo para mulheres mais velhas, também é uma realidade no teatro ou o cinema é mais cruel?
O cinema é bem mais cruel. O audiovisual é bem mais cruel. O teatro, não. Fernanda Montenegro tem 95 anos e está fazendo teatro. Othon Bastos tem 92 anos e está fazendo um monólogo maravilhoso de uma hora e meia. Nathalia Timberg tem 96 anos e está fazendo A Mulher da Van em São Paulo.
E qual a diferença? A tela?
É a tela. É a tela e a concepção das pessoas que veem a tela. [Elas] querem ver coisas bonitas. No teatro, não. No teatro [o ator] fica muito longe [da plateia], então a tua aura compõe as tuas rugas. A tela coloca você dentro de um nicho. E as pessoas não querem ver coisa…não é feia, não vou falar essa palavra nem pensar. Mas não querem ver uma mulher mais velha. “Vou ficar vendo mulher mais velha?”. Não dá ibope, como se dizia na minha época. Então o teatro é uma libertação. Para mim, como atriz, acho libertação total. O cinema e o audiovisual vão te aprisionando e te enquadrando. A não ser que você faça uma coisa como o Gabriel propôs, de mostrar abertamente as rugas e o corpo, que eu acho lindo. Mas as mulheres também têm medo de fazer isso. Acho que é de ambas as partes, porque as mulheres também têm medo de mostrar que não estão bonitas.

A sua personagem rejuvenesce bastante ao longo de O Último Azul, mas esse rejuvenescimento é interno e está ligado aos encontros que ela têm. Você estava fazendo um filme com um diretor bem mais jovem do que você, e contracenando tantos com atores mais jovens quanto com uma atriz mais velha. Como foi esse encontro de gerações e o que isso trouxe ao seu trabalho?
O barato foi esse. Me misturei com homens e mulheres que me alimentaram, e aproveitei isso para personagem. Acho que a Teresa é quase uma esponja. Com quem ela se encontra, ela percebe [alguma coisa]. Ela parece uma águia. Quando está com o Cadu [personagem de Rodrigo Santoro], fica olhando e [pensa]: “Ele faz coisas erradas”. Quando está com o Ludemir [personagem de Adanilo], vê que ele bebe e é apostador. Depois, ela culmina com uma mulher —e isso eu acho lindo. Ela culmina com a Roberta, que vende Bíblia para as populações ribeirinhas, o auge da falcatrua. E aí a Tereza, que no início do filme era toda certinha, ficava trabalhando e obedecendo as ordens, diz: “Não, a vida não é bem assim, não. Se eu não for esperta, se eu não burlar as leis também, vou dançar”. E isso é Brasil. Acho bárbaro que o Gabriel tenha sacado isso. No Brasil, quem não burla não ganha. É muito triste isso, é muito grave o que estou falando. Mas se você andar na linha, vai ser mais um na fila do matadouro. Acho que a Teresa não busca rebeldia, ela busca autonomia.
Como foi filmar na Amazônia? A locação informou a atuação ou mudou você de alguma forma?
Claro, mudou a atuação, mudou a Denise, mudou tudo. Atuar num set desses é completamente diferente de atuar num set urbano. Num set urbano, quando você fica cansada, você faz a pausa para o café. Lá não, lá é pausa pra ver o rio. Aí você olha pro rio, respira, e a natureza te dá força pra continuar. Acho isso uma coisa milagrosa. Foram dois meses disso: acordar, ver o nascer do sol na Amazônia, voltar cinco horas da tarde, ver o pôr do sol na lancha. As lágrimas caíam, sabe? Lágrimas de emoção, de “caramba, que privilégio estou tendo”. No cinema, sempre preparo o personagem, mas deixo espaço para que o set me complete. É como se fosse um playground: vou brincar com os brinquedos que tem lá. E fazer um boat movie, ficar o tempo inteiro dentro de um barco…quando chegava na pousada, eu não conseguia tomar banho sem flutuar. E essa flutuação é muito boa pra criação. Porque o diretor, a equipe, todo mundo fica num lugar não seguro. E aí é o lugar da criação.

O Último Azul é parte de um momento muito forte do cinema nacional no exterior, com prêmios e repercussão internacional para vários filmes, incluindo Ainda Estou Aqui, Manas e O Agente Secreto. No entanto, permanece o desafio de traduzir isso para o público interno e fazer com que os brasileiros assistam a esses filmes, sobretudo nas salas. Afinal, Ainda Estou Aqui foi um fenômeno de bilheteria, mas obras da mesma qualidade não têm os mesmos recursos para investir na divulgação e distribuição. Na sua opinião, de que formas podemos aproveitar esse momento do cinema brasileiro para fortalecer sua relação com o público, e fomentar uma valorização dos filmes nacionais que não dependa tanto do aval estrangeiro?
É uma bela pergunta, e estava pensando sobre isso lá na Alemanha, durante o Festival de Berlim. Por que um filme brasileiro estreia aqui e morre na praia? A Metade de Nós [filme de 2023 protagonizado por Denise] ganhou o prêmio do público na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e ficou cinco dias em cartaz no Rio de Janeiro. Por quê? Por que a gente tem de ir lá para fora para ser avalizado e voltar para cá? Acho que é uma síndrome do colonizado. Somos colonizados e vamos morrer colonizados. Se a gente não tiver o aval do colonizador, a coisa não vinga, tanto que a estratégia de todos os filmes nacionais é ir para fora. Aqui não tem incentivo nenhum, aqui a distribuição é dificílima. O brasileiro é muito vira-lata. A gente não dá valor às coisas que a gente produz, e os blockbusters bombam. Por que isso? Porque o nosso não é bom a princípio?
É uma questão muito difícil de equalizar, porque as verbas são diminutas, a distribuição é caríssima. Bancar uma viagem como a que gente está fazendo [para lançar o filme], é caríssimo. Eu e o Gabriel estamos na guerrilha, indo de norte a sul, de sul a norte. É uma coisa que você fica se perguntando: por que não tem ninguém que nos ampare? A Ancine [Agência Nacional do Cinema], coitada, está quase mais para lá do que para cá. Fomos estraçalhados durante quatro anos naquele governo horrível [de Jair Bolsonaro] e estamos sofrendo uma rebordosa que vai demorar [a melhorar].
Por isso, em toda entrevista que dou, faço um apelo: pelo amor de Deus, vão ao cinema. Não adianta ficar esperando o filme chegar [ao streaming]. A única maneira de a gente se revoltar é ir ao cinema. E é bom. É uma revolta boa. Então não fiquem esperando. Depois da pandemia, isso piorou demais. Já cansei de responder pergunta sobre quando o filme chega ao streaming. Aí eu arrebento. Eu meto pé. Ainda mais esse filme, que é sobre a Amazônia, que tem cenários maravilhosos. No escurinho do cinema e no telão é outra coisa.
Então você acha que seria uma questão de mudar a política de distribuição e também uma questão de educação, se é que essa seria a palavra, quanto à importância de ir às salas?
Exatamente isso. Tem de ter cuidado com a distribuição. Porque é muito bonito você trazer o Urso de Prata. Mas e aí? Bota o Urso de Prata aonde? O que você faz com o Urso de Prata? É difícil isso. Acho que nem é difícil, é perverso. É perverso para a cultura brasileira. O teatro também está sofrendo perversidades terríveis, de [o ator] ensaiar três meses e fazer 14 espetáculos. Isso não existe. Eu parei de fazer teatro em função disso. E eu sou do teatro —adoro, é minha casa. Mas ensaiar três meses e fazer 14 espetáculos, sexta, sábado e domingo, é que nem jogar tênis no clube. Não é ofício. Quem é que tem ofício que trabalha três vezes por semana, durante quatro horas? Não existe isso. Então, tem uma perversidade. Não é complexo de perseguição, [é para] fazer você desistir de ser atriz, de ser ator, de ser artista.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema