Um grupo de mulheres idosas se reúne em torno de uma mesa. Bem vestidas e maquiadas, elas conversam, tomam café e comem doces tradicionais espanhóis, até que, em certo ponto, o clima muda. Elas roçam uma perna na outra, trocam elogios, tocam seus cabelos e roupas, mordem suas pérolas e se movem lentamente numa espécie de transe sensual acompanhado por crescentes sons de suspiros e sussurros.
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Esta é a cena-chave de Um Forte Clarão, primeiro longa-metragem da espanhola Ainhoa Rodríguez, que fez sua estreia mundial no Festival de Roterdã e foi selecionado para a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (é possível ver o filme na repescagem até 7 de novembro). Como esta cena, o filme faz um retrato ao mesmo tempo realista e surreal da vida cotidiana de um povoado rural, colocando seu foco no desejo feminino.
“Não vemos a sexualidade das mulheres mais velhas no cinema porque há menos diretoras, e porque as pessoas mais velhas, especialmente as mulheres, não devem existir em uma cultura capitalista de consumo, na qual a beleza normativa se impõe”, afirmou a diretora, em entrevista por e-mail ao Mulher no Cinema. “O filme é sobre o desejo feminino, não apenas sexual. É o desejo de sobreviver, de viajar para longe, de voltar à infância, de recuperar seus sonhos, seus corpos e suas vidas, de sair pela rua e ter liberdade para beber e transgredir.”
Eleita pela revista americana Variety como um dos talentos em ascensão do cinema espanhol, Rodríguez já filmara a sensualidade de uma septuagenária em Fade, clipe que dirigiu para a cantora Chloé Bird. O interesse pelo tema se combinou as observações que fez durante o período de nove meses que passou em Tierra de Barros, no sudoeste espanhol, uma região conhecida como Extremadura, onde a diretora cresceu. Para seu retrato da vida rural, Rodríguez escolheu um vilarejo pequeno, no qual se conectaria mais facilmente com os moradores. Ao chegar, montou uma oficina com mulheres locais, muitas das quais integrariam o elenco de Um Forte Clarão. “O mais importante era construir um vínculo pessoal com os habitantes”, explicou. “As casas das pessoas seriam meu futuro set; suas roupas, meu figurino; seus móveis, minha decoração.”
O estilo documental se combina a uma história ficcional que se dá em mosaico, com uma sucessão de situações envolvendo diferentes personagens, quase todas mulheres. Três ganham mais espaço: Isa, que mora com os pais e grava lembranças e profecias em mensagens de áudio para si mesma; Maria, que volta ao vilarejo onde nasceu após a morte do marido; e Cita, que está desesperada para saber o que a vida reserva além de sua casa e seu casamento. Como as mulheres da cena em torno da mesa, Isa, Maria e Cita vivem em uma comunidade que parece condenada a desaparecer, seja pelo êxodo da população jovem (quase totalmente ausente em cena), seja pelo avanço do capitalismo e da globalização. Em busca de um sentido para a própria existência, os moradores se aproximam da religião e do esoterismo, permitindo que o filme utilize elementos fantásticos e de suspense.
Leia a entrevista com Ainhoa Rodríguez:
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Antes de filmar, você passou nove meses morando no vilarejo de Tierra de Barros e conhecendo seus habitantes. Por que isso era importante e como foi esse processo?
Precisava filmar em um vilarejo bem pequeno para poder conhecê-lo, conhecer a vizinhança e construir vínculos. Afinal, as casas das pessoas seriam meu futuro set; suas roupas, meu figurino; seus móveis, minha decoração. O mais importante era construir um vínculo muito pessoal com os habitantes do lugar. Por isso, comecei minha estadia por lá com uma oficina sobre cinema, mulheres e olhares não normativos, na qual trabalhei com um grupo de moradoras que depois protagonizou grande parte do filme. Foi uma experiência profunda e inesquecível, na qual estive acompanhada da minha equipe técnica e artística, pois os chefes de cada área também foram chegando para viver e conviver com a população.
Como se deu a escrita do roteiro e como foi feita a seleção de elenco?
Os encontros com este grupo de mulheres que me apoiaram na oficina foram fundamentais. Ao mesmo tempo, fui fazendo uma investigação profunda e o trabalho de campo que é localizar, fotografar, buscar as locações perfeitas e o plano de vista ideal. Acima de tudo, precisava conhecer as pessoas. A seleção de elenco foi feita de várias formas, mas fundamentalmente eu ia de casa em casa, de mesa em mesa, e passava horas conversando com as vizinhas e vizinhos. Também fiz a seleção em um bar e em uma casa para idosos, além de uma convocação geral com pessoas de toda a região para conversas individuais de cerca de uma hora. Às vezes propunha uma brincadeira ou pedia que interpretassem algo, mas o que queria mesmo era conhecê-los para capturar sua essência e saber onde havia uma história que poderia povoar esse relato em mosaico. Era uma retroalimentação em todas as direções: enquanto escrevia o roteiro, fazia a seleção de elenco, que me levava aos ensaios, que me levavam ao roteiro, que depois me levava de volta aos ensaios, e dos ensaios à seleção de elenco.
Você fez um filme de ficção num estilo documental, no qual conta uma história realista permeada por elementos fantásticos. Como navegou por todos esses estilos e gêneros?
Diria que fiz um filme de ficção num estilo documental ou um filme documental num estilo de ficção, ou um suspense com notas documentais. Os gêneros devem se distorcer, se romper, se esticar, se transformar, se completar. Navego com tranquilidade por eles porque aprendemos a fazer cinema fazendo, filmando e cometendo erros, mas também sugando e digerindo os grandes clássicos. Assisti a filmes de tantos gêneros que para mim eles são naturais. Apenas considero que você tem de filmar usando a metodologia que seja adequada para aquele filme, e as influências e desenvolvimentos de estilo que você queira para contar aquela história. Neste caso, é um filme que bebe da essência daquele povo, daquela tradição, daquela ideia de fabular para encontrar um sentido para a própria existência. Para falar disso é preciso beber da essência vital e da verdade que aquelas pessoas têm. Ao mesmo tempo, o gênero fantástico e o suspense me permitem falar daquele povo em extinção, tocado pela morte, que está desaparecendo, e cujas tradições – muitas vezes injustas ou ultrapassadas – também vão desaparecer com eles. Sendo assim, esse final físico da morte é também metafórico: a morte da vida rural se desenvolve num suspense que beira o terror.
Para mim, o filme é principalmente sobre o desejo feminino, inclusive sexual. E ao abordar este tema, você escolheu mulheres mais velhas como personagens, algo que já tinha feito no clipe Fade, mas que não vemos com frequência no cinema. Por que você quis retratar o desejo feminino? Foi algo que surgiu das conversas que teve com as mulheres do vilarejo ou foi algo que você mesma trouxe ao roteiro, partindo de um interesse pessoal?
Se já foquei nisso em Fade, talvez me interesse a transgressão no relato fílmico. Ao longo da história e dos milhares e milhares de filmes já feitos, os [cineastas] homens não foram questionados sobre o motivo de seus protagonistas serem homens e de abordarem a sexualidade destes personagens homens. É curioso: entende-se como evidente que sua sexualidade e seu desejo serão abordados, obviamente com mulheres especialmente sedutoras, belas e atraentes. De repente eu, como mulher, decido retratar mulheres mais velhas. Tenho especial interesse por mulheres de uma certa idade, pois a experiência, a profundidade, a vida que colocam diante de mim – tudo isso me parece uma fonte inesgotável. Como sou mulher, sempre vou pensar o que faria em determinada situação, lugar ou atmosfera sendo mulher. Não vemos a sexualidade das mulheres mais velhas no cinema porque, em primeiro lugar, há menos mulheres dirigindo. E em segundo lugar, porque as pessoas mais velhas, especialmente as mulheres, não devem existir em uma cultura capitalista de consumo, na qual a beleza normativa se impõe. Então você tem razão em dizer que o filme é sobre o desejo feminino. E não apenas no âmbito sexual. É o desejo de sobreviver, de transgredir, de viajar para longe, de voltar à infância, de recuperar seus sonhos, seus corpos e suas vidas, de sair pela rua e ter liberdade para beber e transgredir.
“Tenho interesse por mulheres de certa idade, pois a experiência, a profundidade, a vida que colocam diante de mim – tudo isso me parece uma fonte inesgotável. Não vemos a sexualidade das mulheres mais velhas no cinema porque há menos diretoras e porque as pessoas mais velhas, especialmente mulheres, não devem existir em uma cultura capitalista de consumo, na qual a beleza normativa se impõe.”
O tema do desejo feminino culmina em uma cena marcante na qual as mulheres começam a dançar numa espécie de transe. Você poderia falar um pouco sobre essa cena? Gostaria de saber quais eram suas intenções ao criá-la, mas também como foi a filmagem e a reação das atrizes.
Queria muito que houvesse esse momento de liberação e autoprazer. É uma orgia de autoprazer, é conhecer os corpos daquelas senhoras que continuam sustentando as instituições daquele povoado rural – a Igreja, os lares. Queria que um lanche da Associação das Mulheres do Vilarejo de repente se tornasse algo muito especial: uma reivindicação de seu autoprazer. Como espectadora, queria muito ver isso. Tive a intuição de que precisava criar essa cena, e o fiz junto com o grupo de mulheres que participaram da oficina, muitas das quais estiveram presentes também na filmagem. No início pensei que seria difícil, mas fomos pouco a pouco, começando a dançar, começando a sentir, começando a nos conhecer, começando a nos expressar juntas. E assim tudo foi se dando de forma natural. Elas estavam realmente à vontade, e por isso se entregaram de forma tão generosa. Os únicos e poucos problemas e dúvidas vieram de pessoas externas ao nosso grupo de confiança. Era a vizinhança, o marido, as coisas que os outros falavam – isso era o que às vezes podia criar alguma dúvida. Mas o trabalho coletivo é sempre mais poderoso e sempre te empodera, ainda que eu não goste muito desta palavra – empoderamento – porque ela é usada demais e às vezes sem sentido.
Esta cena da dança é um bom exemplo da grande importância do som no seu filme. Fale um pouco sobre este aspecto da narrativa e sobre como foi seu trabalho com a equipe de som.
O som teve papel importante antes mesmo da filmagem e especialmente durante a montagem. O montador José Luis Picado e eu construímos pequenos momentos sonoros que depois cresceram muito com o desenho e a mixagem de som feitas no estúdio. É o caso principalmente de todas aquelas vozes que falam, suspiram e murmuram num crescente até o momento em que relaxam e ficam meio dormindo, meio se abraçando, no mais pleno êxtase. Esse relaxamento absoluto é criado por uma montagem planejada. Para marcar o ritmo de um filme, o montador deve configurar imagem e som, já que imagens secas não são nada. Era necessário que o som representasse as dualidades do filme entre naturalismo e suspense, música folclórica e psicodélica, tradições católicas e fantasia avassaladora, documentário e transgressão. Também queria ter o som natural do campo, o barulho da serra e das cegonhas que é tão característico da Extremadura. Pegamos todos esses sons e os utilizamos, mas ao mesmo tempo fomos torcendo-os como artesãos para criar cacofonias esotéricas. Foi fantástica a experiência de trabalhar com [a técnica de som] Eva Valiño e mixar com Alejandro Castillo.
O filme retrata com certa melancolia um mundo que está desaparecendo, as pessoas, tradições e culturas que se perdem conforme o capitalismo toma conta de tudo. Ao mesmo tempo, também mostra como muitas dessas tradições e culturas são patriarcais e até violentas. Gostaria de saber mais da sua experiência com essa dualidade retratada pelo filme. Após viver naquela comunidade, como se sentiu em relação a tudo isso?
No fim das contas a arte fala de mistério e retrata o ser humano e seus mistérios. O ser humano é misturado, é complexo, é cheio de áreas cinzas. Os personagens maniqueístas não nos interessam, ou ao menos não deveriam nos interessar, então a dualidade e a complexidade são a base do trabalho. Quando estava no vilarejo, sentia os preconceitos destas tradições ultrapassadas, injustas, fechadas. Ao mesmo tempo, há um belo canto poético na resistência que o vilarejo coloca a essa perda de alma e de identidade. Há muitas complexidades, há crenças patriarcais. A única coisa que faço é me colocar, como a mulher que sou, naquele vilarejo, e imaginar como viveria, como me sentiria e como teria empatia com aquelas mulheres, com todo o peso que têm de suportar e toda a necessidade que têm de transgredir. Ao mesmo tempo não podemos pensar que o que está vindo é muito melhor. No que diz respeito aos direitos humanos e à igualdade social e de gênero, esse mundo globalizado e neoliberal de consumo rápido não nos traz um patriarcado mais adormecido – é um neopatriarcado brutal.
Este é seu primeiro longa-metragem. Qual o maior desafio que enfrentou?
O maior desafio foi também minha maior força: minha liberdade. Assumi a produção porque entendi que fazer um filme com metodologia tão singular e com liberdade autoral demandava que eu encarasse o risco e controlasse as coisas. Um produtor teria cortado minhas asas, teria ficado nervoso com o fato de as coisas estarem tão no ar um mês antes da filmagem. Então esse foi meu grande desafio: eu produzia, fazia o desenho de produção, a direção de produção, a produção artística, a direção artística. Estou contando uma história que significou muito para mim emocionalmente, e acho que gosto de ir sentindo as coisas e de olhar continuamente para o vazio. Me lancei a filmar sem ter uma parte importante do orçamento, e você não pode imaginar as ansiedades e as dores de cabeça e estômago que isso me trouxe.
“No que diz respeito aos direitos humanos e à igualdade social e de gênero, esse mundo globalizado e neoliberal de consumo rápido não nos traz um patriarcado mais adormecido – é um neopatriarcado brutal.”
Você é a primeira cineasta espanhola que entrevisto no Mulher no Cinema. Conte um pouco sobre como é ser uma cineasta mulher na Espanha.
Depende um pouco de com quem você se compara. Dizia o [diretor Abbas] Kiarostami que os cineastas do mundo ocidental têm de ser mais exigentes porque temos mais facilidade para rodar. De todo modo, a porcentagem de diretoras mulheres revela uma injustiça absoluta. Na sociedade em que vivemos, é imperdoável que as mulheres dirijam tão poucos filmes – e para mim não importam se são cinco, dez ou vinte, é simplesmente um escândalo. Como cineasta mulher, sinto que existe uma desigualdade evidente e galopante. Lidamos com pequenos ou grandes machismos, que provavelmente são mais graves para companheiras de outros países, mas estamos fartas porque o relato continua incompleto. O relato é o relato do homem heterossexual. Eles deveriam deixar de dirigir por uns anos para que seja possível tentar alcançar alguma igualdade no relato global cinematográfico, que deveria ser heterogêneo e do qual deveríamos fazer parte.
Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?
Em primeiro lugar, diria para mergulharem em si mesmas e tentarem narrar a vida a partir de sua experiência como mulher. Em alguns filmes o fato de você ser mulher talvez não seja algo tão influente, mas tem de ser. É preciso que seja a experiência de vida pelos nossos olhos. Estamos cobertas de vidas e experiências masculinas nas quais ser homem, e especialmente ser homem heterossexual, é um valor fundamental do relato. Devemos dar a resposta. Devemos ocupar o espaço vazio do nosso próprio relato. Ao mesmo tempo, diria para que tenham absoluta vontade de contar aquilo que querem contar e do jeito que querem contar. Tenham força de caráter, não no sentido de brigar ou de agir de forma imperativa, mas no sentido de não fazer concessões durante o caminho. O processo fílmico é muito longo, e se você vai cedendo às ideias dos outros, às questões comerciais, às dificuldades de narração, criação e produção, pode ser que no final seu filme se transforme em algo que você não reconhece. E isso não pode acontecer de forma alguma.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema – Foto do topo: Lukasz Adamski