Não poderia ser melhor o momento do lançamento no Brasil de David Lynch: A Vida de um Artista, documentário sobre o cineasta americano que chegou às salas na semana passada. Com o fim da nova e espetacular temporada da série Twin Peaks, há um renovado interesse pela obra do diretor, também responsável por filmes celebrados como Veludo Azul (1986), Estrada Perdida (1997) e Cidade dos Sonhos (2001).
Cinema, porém, é um assunto apenas brevemente discutido no documentário dirigido por Olivia Neergaard-Holm (também responsável pela montagem), John Nguyen e Rick Barnes. As mais de 20 conversas com Lynch, gravadas ao longo de três anos, giram em torno de sua infância, juventude e da descoberta do que ele chama de “vida de arte”, deixando de fora praticamente tudo o que ocorreu depois de Eraserhead (1977), o filme que lançou sua carreira como cineasta.
Numa escolha acertada, o trio de diretores dispensou entrevistas com amigos, familiares e colegas de trabalho, encarregando o próprio Lynch de contar sua história. A voz do cineasta se sobrepõe às fotos e gravações de arquivo, imagens de seus quadros e gravações no ateliê que fica em sua casa em Los Angeles, nas quais ele aparece criando esculturas, pintando ao lado da filha, Lula, e apenas sentado, fumando ou tomando café.
Neste cenário, Lynch conta sobre a infância “super feliz” ao lado dos dois irmãos e dos pais. A mãe, professora de inglês, proibiu o filho de ter livros de colorir para estimular uma criatividade sem restrições que, segundo o diretor, ela já notava. O pai, pesquisador do Ministério da Agricultura, lhe despertou o interesse por elementos da natureza e por trabalhos manuais, escalando as crianças para construir ou consertar objetos aos fins de semana.
Além dos familiares, as histórias de Lynch envolvem amigos, namoradas e sobretudo o pintor Bushnell Keeler (1924-2012), pai de um colega que tornou-se seu mentor. É uma das poucas referências citadas pelo diretor, que parece encontrar inspiração menos em outros artistas e mais nas próprias ideias, experiências e experimentações. Ao falar sobre as mudanças da família Lynch por Montana, Idaho e Virgínia, o diretor descreve cidades de gramado verde e céu azul e outras nas quais sentia ser “sempre noite”, sugerindo a origem do contraste entre luz e escuridão muito presente em seus filmes. Quando conta sobre os estudos de artes plásticas na Filadélfia, Lynch descreve um lugar com pessoas estranhas, maldade e “medo no ar” – e não é difícil entender porque o período é tido pelo cineasta como fundamental em sua carreira.
Um dos relatos mais interessantes é sobre uma experiência descrita como “de outro mundo” e vivida durante a infância. Brincando com o irmão em uma das cidadezinhas americanas perfeitamente normais em que cresceu, Lynch viu uma mulher nua, sangrando e muito perturbada, descer pela rua e sentar-se na calçada, chorando (uma imagem que imediatamente remonta à de Ronette Pulaski cruzando a ponte em Twin Peaks). Outro destaque é a lembrança sobre como a pintura de uma tela preta com algumas plantas e folhas verdes despertou seu interesse pelo cinema: “Escutei o vento e o verde começou a se mexer”, conta Lynch. “Então pensei: ‘Uma pintura em movimento, mas com som.'”
Histórias como estas são narradas com naturalidade e humor, enquanto a música de Jonatan Bengta e a montagem da diretora Olivia Neergaard-Hom ajudam a criar um mood tipicamente lynchiano. Se as poucas anedotas sobre sets de filmagens e a omissão dos filmes mais conhecidos poderão desencorajar alguns espectadores, A Vida de um Artista certamente agradará àqueles que já se renderam ao belo e estranho mundo de David Lynch.
Veja o trailer de “David Lynch: A Vida de um Artista”:
“David Lynch: A Vida de um Artista”
[David Lynch: The Art Life, EUA/Dinamarca, 2016]
Direção: Olivia Neergaard-Holm, John Nguyen e Rick Barnes
Duração: 88 minutos