Perguntas do cinema para as mulheres – ou vice-versa?

Há cerca de um mês, por convite do Mulher no Cinema, comecei a ver e rever filmes de diretoras semanalmente. A ideia era aderir à campanha #52FilmsByWomen (conheça mais aqui), para descobrir e divulgar o trabalho das mulheres na direção de cinema.

Ao longo deste primeiro mês, assistir ao trabalho destas quatro diretoras tão diferentes, algumas vezes antagônicas, trouxe menos respostas do que questões. São questões que filme a filme foram nascendo, e de alguma maneira norteiam esse trabalho de garimpo e pesquisa que é buscar conhecer e refletir sobre filmes de mulheres. A primeira delas é, obviamente, por que assistir a estes filmes? Por que focar e discutir a produção cinematográfica feminina?

Essa pergunta é um pouco o mote do nosso projeto, e acho que há muitas respostas e é preciso pensar sobre todas elas. Mas o que me saltou aos olhos ao assistir a estes quatro longas foi o fato de que são filmes sobre mulheres, em que a ideia e a representação da mulher está nas mãos de mulheres. O que nos leva a outra pergunta, talvez para os próximos quatro filmes: que representação queremos construir? Que cinema?

É fácil esquecer disso, mas a representação do feminino no cinema, e do que deve ser o feminino, é fundamentalmente calcada pela visão de homens. Como os homens são maioria na indústria cinematográfica, nós conhecemos a mulher no cinema principalmente através do olhar masculino. Então esse projeto me colocou diante de mais uma questão: como estas mulheres se veem e se fazem ser no cinema? Foi pensando nisso que passei este primeiro mês, acompanhada destes filmes:

De Cierta Manera“De Cierta Manera”
[Dirigido por Sara Gómez – Cuba, 1971]

A diretora cubana Sara Gómez se coloca o desafio de dar vida a uma personagem feminina longe das convenções do olhar  fetichista do cinema americano, ecoando a força anti-imperialista da revolução, mas também aponta e ataca as convenções e o machismo que sobrevivem na sociedade cubana. Ela acaba por fazer uma mistura muito original de documentário e ficção, embaralhando signos do melodrama e romance, bem como símbolos da revolução. Você pode ler mais sobre minhas impressões do filme aqui.

Suffragette“As Sufragistas”
[Dirigido por Sarah Gavron – Reino Unido, 2015]

A despeito do interesse da história pouco conhecida (no meu caso, totalmente desconhecida), e das boas atuações, bem como da trama inteiramente conduzida por mulheres, assistir As Sufragistas me provocou nesta questão de qual cinema, e qual (quais) representação feminina, ou mesmo que representação do feminismo, a gente quer ver e fazer.

Digo isso porque não acho que o filme seja bom cinema, para além das qualidades e pontos de interesse que citei acima. Não me incomoda exatamente a opção pelo melodrama, mas a narrativa carrega um subtexto datado e, na minha opinião, equivocado, de que a emancipação daquelas mulheres automaticamente passa pela sua martirização. Além disso, o filme exclui completamente as mulheres e trabalhadoras negras da trama e de qualquer debate político que possa levantar: não haviam negras trabalhando nas fábricas de Londres naquele momento?

Aqui no Brasil, o filme ganhou bastante espaço entre os grupos e páginas feministas nas redes sociais, reforçando o boca a boca e a bilheteria. Acho tudo isso importante como fenômeno, mas não dá para perder de vista que o discurso político do filme é um tanto moralista e simplificador. E justamente por causa do fenômeno acho importante olharmos a experiência cinematográfica de As Sufragistas com novas perguntas: qual é o cinema que queremos (mulheres, todas) assistir e fazer? A gente pode dizer que As Sufragistas é um filme feminista? O que é (ou pode ser), afinal, um filme feminista?

As Pequenas Margaridas“As Pequenas Margaridas”
[Dirigido por Vera Chytilová – República Tcheca, 1966]

Eis aqui um filme praticamente antagônico de As Sufragistas. Episódico, As Pequenas Margaridas é famoso por ser um dos títulos mais importantes da Nouvelle Vague tcheca, e reflete na sua estética o período de enfrentamento com o autoritarismo repressor da União Soviética que foram os anos 60 na antiga Tchecoslováquia. Ao mesmo tempo, bebe de referências (mesmo que para subvertê-las) do cinema russo, fazendo uso, por exemplo, da “montagem intelectual” do Eisenstein pra construir esse discurso.

É uma comédia que se propõe a desconstruir costumes, parodiar a estética totalizante soviética, e ao mesmo tempo é uma experiência cinematográfica muito divertida. Não à toa, o filme é muito lembrado pelo surrealismo, pelo humor absurdo, mas – assim como As Sufragistas – faz pensar sobre cinema e feminismo. É um filme sobre o que pode a mulher no mundo (que vai bem mal, como lembram as protagonistas na primeira cena), na estética, na política e no cinema também.

A Hora Mais Escura“A Hora Mais Escura”
[Dirigido por Kathryn Bigelow – EUA, 2012]

Discordo muito da visão e do subtexto político que enxergo nos filmes da Kathryn Bigelow, mas os personagens dela são sempre muito impressionantes e bem construídos, e ao mesmo tempo sempre permanecem de alguma maneira obscuros para o espectador. Em Guerra ao Terror a gente nunca entende inteiramente as motivações que levariam ao tal vício em adrenalina do protagonista. Em A Hora Mais Escura a personagem de Jessica Chastain nunca se abre inteiramente para o espectador.

Mesmo quanto à polêmica sobre as cenas que fariam apologia da tortura como método investigativo, tenho a sensação que advém dessa opacidade fascinante da personagem: o que ela realmente pensa, o que ela sente, quando vê e sabe que depende de métodos de tortura para fazer o trabalho dela, ao qual se dedica de corpo e alma?

A gente nunca consegue decifrar, a decisão e o julgamento ficam por nossa conta, dos nossos parâmetros morais e sentidos. Por isso é um filme interessante também sobre a banalidade do mal – no caso uma banalidade paramentada e milionária, alimentada pelo país mais poderoso do mundo. Jessica Chastain está bem longe de ser uma vilã ou uma heroína clássica, a direção faz com que a gente queira se aproximar dela ao longo do filme, ao mesmo tempo em que a construção da personagem a mantém de alguma maneira inacessível. A Kathryn Bigelow fez da caçada ao Bin Laden um filme sobre essa mulher incrível.

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Bora para o segundo mês. Aceito sugestões, companhia, questões e discordâncias!


* Jornalista e apaixonada por cinema, Beatriz Macruz aceitou nosso convite para aderir à campanha #52FilmsByWomen e assistir a um filme dirigido por mulher toda semana durante um ano. Os títulos de cada semana são revelados às segundas-feiras nas nossas redes sociais. Clique aqui para saber mais.

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