“Que Horas Ela Volta?” e o que ocorreu no debate no Recife

No último sábado (29) o Mulher no Cinema escolheu a diretora Anna Muylaert, de “Que Horas Ela Volta?” para a seção “Citação da semana”. A declaração, dada ao site Omelete, dizia: “Nesses últimos 40 anos, a mulher dobrou sua capacidade de trabalho. Ao mesmo tempo, continuamos vivendo na mesma sociedade machista de sempre. E uma sociedade onde o homem ainda se agarra ao antigo papel masculino de apenas fazer o trabalho profissional que pode lhe dar dinheiro e poder, e segue a desprezar o trabalho feminino.”

No mesmo dia em que a “Citação da semana” foi publicada, Muylaert passou por uma situação exemplar do desprezo pelo trabalho feminino sobre o qual tinha falado. O cenário do episódio: um debate sobre “Que Horas Ela Volta?” na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, no qual a diretora dividia o palco com os cineastas Lírio Ferreira e Cláudio Assis.

Um dos primeiros relatos foi o da jornalista Carol Almeida, que esteve no evento e escreveu no Facebook que os dois cineastas estavam “visivelmente bêbados”: “Claudio ‘mandou’ Anna sentar onde ele queria que ela sentasse. Chamou a atriz protagonista do filme [Regina Casé] de ‘gorda’. Lírio, por sua vez, praticamente impediu que o debate fosse realizado. Interrompia as falas da diretora, interrompia as falas de quem fazia perguntas a ela.”

Também presente, o diretor de arte de “Que Horas Ela Volta?”, Thales Junqueira, chamou o evento de “show de machismo escandaloso” e disse que Ferreira e Assis “tentaram impedir uma mulher diretora de falar sobre seu próprio cinema”.

A diretora Anna Muylaert / Foto: Igor Pires/PressPhoto
A diretora Anna Muylaert / Foto: Igor Pires/PressPhoto

Muylaert comentou o caso no Facebook:

“Gente, foi foda, foi infantil. A gente tentou controlar com respeito. A questão é: por que alguns homens não SABEM ficar à sombra? Tem que estar sempre NO CENTRO? Era isso também o que eu falava ontem sobre o homem aprender a atuar no seu lado feminino. Por que alguém tem que brilhar sempre? Por que sempre YANG? Essa desvalorização do lado YIN, do lado silencioso do ser? Isso leva à decadência! Ninguém pode brilhar 100% do tempo. Pode parecer estranho mas essa infantilidade, ao meu ver, é talvez uma das grandes fontes originais da mente machista.”

E depois, em mensagem dedicada a Assis:

“Quero dizer que tudo o que aconteceu sábado foi chato e já passou. Mais importante do que discutir o sábado passado, é abrir o debate sobre o aprendizado da sociedade em aceitar situações onde o protagonismo é das mulheres e a coadjuvância dos homens. Afinal, estamos todos em obras.”

Os dois cineastas, porém, negaram se tratar de machismo. Ao “Diário de Pernambuco”, Ferreira afirmou:

“O que aconteceu foi que eu saí num sábado à noite para prestigiar a estreia do filme de minha querida amiga, bêbado. Quando cheguei, a sessão já tinha começado e fiquei pro debate. Na mesa, eu fiquei esperando uma oportunidade para elogiar o trabalho de Anna, mas o mediador tentou dar a palavra à plateia. E eu me intrometendo pra tentar retomar o raciocínio. Depois me dei conta que estava atrapalhando, peguei um táxi e fui embora. Agora, estou sendo crucificado no Facebook. Só posso pedir desculpas à Anna, como de fato o fiz, logo depois dessa repercussão toda.”

Já Assis disse o seguinte ao jornal “O Globo”:

“Eu tenho parceria com a Anna, nós somos amigos, o meu próximo filme inclusive é com roteiro dela. O que aconteceu foi um excesso de emoção. Já pedi desculpas.”

As desculpas já foram aceitas por Muylaert, e a questão aqui não é “crucificar” dois diretores importantes para o cinema brasileiro. Mas o caso não pode passar batido, e nem a amizade entre os envolvidos torna o que aconteceu menos grave.

Uma das razões – talvez a principal – que faz a desigualdade de gênero no cinema ser tão preocupante é o fato de refletir e muitas vezes reforçar as dificuldades que as mulheres enfrentam em qualquer profissão. Que dois cineastas do porte de Ferreira e Assis tenham roubado a rara chance de protagonismo de uma diretora é revoltante. Que isso tenha acontecido durante o debate sobre um filme centrado em mulheres, é lamentável. Que alguém tenha achado relevante chamar de gorda uma atriz que vive um dos melhores momentos da carreira, tendo sido premiada em um dos mais importantes festivais do mundo, é no mínimo ridículo.

A reação do público foi o lado bom da história: graças às manifestações de repúdio via redes sociais, o debate chegou à imprensa. Aqui no Mulher no Cinema, nenhum assunto tinha motivado tantas mensagens de leitores expressando indignação e pedindo que o episódio fosse divulgado.

Também é importante destacar o papel da Fundação Joaquim Nabuco: além de se desculpar publicamente, a instituição anunciou que não permitirá nenhum evento com a participação de Ferreira, Assis ou seus filmes. A punição vale por um ano.

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