Vania Catani: “O produtor tem de ser vocacionado como o ator”

Receita para eliminar qualquer possibilidade de trabalhar com Vania Catani: diga que quer ser produtor ou produtora só até chegar à função cinematográfica que realmente deseja desempenhar. A ideia de a produção ser um “bico” ou “passagem para outra coisa” é das que mais irrita a dona da Bananeira Filmes: “Ao contrário do que todo mundo pensa, não é qualquer um que pode fazer esse trabalho. O produtor tem de ser vocacionado igual ao ator, igual ao pintor”, afirmou.

Nascida em Mina Gerais, Vania começou a carreira no final dos anos 1980 na área de vídeo independente e colocou seu foco na produção já na década seguinte. Em 2000 fundou a Bananeira Filmes, conhecida por lançamentos como A Festa da Menina Morta (2008), de Matheus Nachtergaele; Mate-me Por Favor (2015), de Anita Rocha da Silveira; e pelos três longas de Selton Mello como diretor: Feliz Natal (2008), O Palhaço (2011) e O Filme da Minha Vida (2017), que está em cartaz.

Nos créditos e no cartaz do novo longa, inspirado na obra de Antonio Skármeta, a informação sobre quem o produziu tem grande destaque. Se há profissionais que preferem ficar nos bastidores, Vania gostaria que seu nome fosse reconhecido como uma espécie de selo. “Tenho uma identidade, sim, uma filmografia, um jeito de produzir. As pessoas me reconhecem e acho que é pela paixão que imprimo nas coisas”, afirmou, em entrevista ao Mulher no Cinema.

A carreira de Vania é marcada pela aposta em coproduções latino-americanas, como La Playa (2012), de Juan Andres Arango Garcia; El Ardor (2014), de Pablo Fendrik; Jauja (2014), de Lisandro Alonso; e Zama, aguardadíssimo novo filme de Lucrecia Martel que estreia ainda este ano. Na entrevista a seguir, a produtora fala sobre a experiência de trabalhar com a diretora argentina, a parceria com Selton Mello e o machismo no audiovisual.

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Por entrevistas, tenho a impressão de que você se envolve muito com os filmes que faz. A impressão é verdadeira?
Totalmente. Não saberia fazer [o trabalho] se não gostasse. Tem que gostar, porque dá muito trabalho. Sem contar que não sou uma produtora de cinema comercial. Não que meus filmes eventualmente não possam ser populares, mas não são produções comerciais. Faço o que gosto, é um luxo mesmo. E tem alguns [filmes] dos quais gosto mais, e todo mundo percebe também. Sou muito transparente, e o entusiasmo que entrego para um é diferente do que entrego para outro. Mas todo mundo que trabalha comigo sabe que funciono desse jeito e espera exatamente isso.

O Filme da Minha Vida é dos que você gosta mais ou menos?
Estou muito apaixonada por este filme.

É o seu terceiro com o Selton Mello. Como é a parceria de vocês?
Não sei o que vai acontecer no futuro, mas até agora tem sido muito bom. A gente é diferente pra caramba – ele é capricórnio, eu sou áries. Mas a gente se dá bem, se gosta, se respeita, se admira, gosta de estar na companhia do outro. A gente “tabela” bem. Acho que o que nos une mesmo é o amor pelo cinema. Poderia continuar repetindo [a parceria], porque gosto de trabalhar com ele. Mas acho que vai chegar uma hora em que ele vai correr outros mundos. Tenho um orgulho danado de ser a pessoa que fez os primeiros filmes dele – porque ele vai fazer muitos. Ele é grande e vai ser maior ainda.

Selton Mello e Vania Catani já fizeram três filmes juntos
Selton Mello e Vania Catani já fizeram três filmes juntos

Na entrevista coletiva sobre o filme que foi realizada em São Paulo, o Selton comentou que você participou bastante do processo de montagem. Como foi esse envolvimento?
Foi conversando com ele, só.

Orientando? Dando opiniões?
Orientando não, conversando mesmo. A gente tem intimidade, então às vezes para mim é mais fácil dizer coisas a ele do que [é para] qualquer outra pessoa. As pessoas ficam com medo, mas eu tenho que dizer. Sou inclusive a pessoa que ele espera que diga tudo. Não é uma orientação, mas uma provocação, talvez. Via os cortes e conversava com ele, falava das minhas sensações, impressões. Ele pensava e voltava, e cada vez que voltava, estava melhor. Adoro o corte final, porque foi bonita a disposição dele. Ele estava cansado e eu fiquei insistindo para mexer mais. Ele mexeu e foi ótimo. Porque é como escultura: uma talhada muda tudo. [O filme] já estava bonito, mas eu achava que poderia ficar mais. E o Selton sabia no que precisava mexer para que ficasse mais bonito. Eu não sabia exatamente, só sabia que dava e que ele era capaz de descobrir.

A parceria anterior de vocês foi O Palhaço, um grande sucesso de público, com 1,5 milhão de espectadores. Qual a expectativa para este novo lançamento? Acha que O Filme da Minha Vida tem o mesmo potencial?
Não gosto da palavra “expectativa”, prefiro a palavra “desejo”. E desejo, sim [o sucesso de público]. É uma sensação deliciosa quando o filme fica maior do que a gente, quando o público cuida do filme e você perde o controle. O Selton viveu isso várias vezes na carreira dele, eu nunca tinha vivido até O Palhaço. Queria muito que os espectadores de O Palhaço voltassem ao cinema. Acho que se eles entrarem no cinema, não vão se arrepender. Até porque a gente teve o cuidado de trazer um filme que tivesse o mesmo aroma. [O novo longa] não tem nada a ver com O Palhaço, mas tem também, porque está no mesmo lugar do sonho, do lirismo, da doçura, da ternura. Temos insistido muito nessa coisa de que está tudo muito duro e que queremos que este filme seja uma remanso na correnteza. O Paco [personagem de Selton Mello em O Filme da Minha Vida] fala que no cinema a pessoa perde tempo vivendo a vida dos outros. Acho que as pessoas podiam perder esse tempo, porque vai fazer bem para a vida delas. Está tudo duro demais e esse filme é uma conexão com o bom sentimento. Precisamos acessar isso porque está tudo muito hostil, há muito ódio, muita polarização. O filme é um lugar de encontro.

Independentemente da qualidade, alguns filmes brasileiros às vezes não conseguem dar retorno financeiro e de público, e nesse momento parece haver uma cobrança maior…
[Interrompendo] A questão dos números é que está havendo uma mudança de comportamento do espectador. E aí só conta os ingressos [de cinema]. Às vezes os filmes que aparecem nesses rankings aí com 2 mil ou 3 mil espectadores vão ser vistos por mais gente. A maneira como se vê está mudando. E não me importo de as pessoas verem alguns dos meus filmes em outra mídia ou plataforma, mas este, faço questão de que seja no cinema. E não é por causa do ingresso, é porque vai ser lindo demais. Ingresso é legal, se der público vai ser legal não só para mim, mas para a Vitrine [distribuidora do longa], para o cinema brasileiro, que está precisando de uma boa performance, e mais ainda para a pessoa que for. Porque esse filme é para ser visto no cinema. Você não concorda?

Concordo, mas minha pergunta era mais no sentido de as pessoas estarem questionando muito o incentivo do governo ao cinema, a função do artista…
As pessoas estão questionando tudo: o que as crianças comem, o que as pessoas vestem, o cabelo que pintam. As pessoas estão questionando tudo, está uma loucura. Eu não entro nessa pilha, sabe? Estou numa vibe agora, já tem uns quatro meses…porque estava adoecendo de me levar por essa correnteza, por tudo isso que está acontecendo. Estou lendo mais, vendo mais filmes. Parece piegas, mas juro: o que quero dar e receber é paz de espírito. Acho que esse filme dá paz de espírito. Talvez no ano passado eu não estivesse tão a fim de dar paz de espírito para as pessoas, porque estava mais raivosa. Temos falado sobre o filme ser o lugar do sossego. Sabe aquela frase do Guimarães Rosa, de que todo amor é um descanso na loucura? Estou procurando um descanso na loucura. Quem quiser isso, pode me procurar.

Imagem de "Zama", dirigido por Lucrecia Martel e coproduzido por Vania Catani
Imagem de “Zama”, dirigido por Lucrecia Martel e coproduzido por Vania Catani

A sua carreira é marcada pela aposta em parcerias com outros países latino-americanos. Por que você foi atrás das coproduções e como tem sido a experiência de realizá-las?
Não fui atrás, apenas fui viajar com meus filmes, conheci pessoas legais, com projetos legais, e me aproximei delas. Nenhuma das coproduções foi com desconhecidos. Quando cheguei a me tornar coprodutora dos projetos dessas pessoas, já tinha uma relação. Só não foi assim com a Lucrecia Martel. Ela não era minha amiga, não.

O que você pode contar sobre Zama e o trabalho com a Lucrecia?
Posso contar que ela é uma das mulheres mais inteligentes do mundo. Mulheres, homens, tudo – é um dos seres humanos mais inteligentes do mundo. Ela pensa com uma qualidade muito impressionante. Adoro ficar perto dela. [Trabalhar com a Lucrecia] foi como fazer um MBA. Parecia que estava estudando em Harvard, sacou?

E o filme?
No segundo semestre está aí [nos cinemas]. Está pronto, está lindão.

Você tem gostado de fazer coproduções?
Adoro, me interesso muito. Estou fechando a primeira com o Chile. Tenho um sonho bolivariano de coproduzir com todos os países da América Latina.

O Brasil muitas vezes parece um pouco desconectado em relação aos demais países da América Latina, até pela questão da língua. Você tem sentido isso nas experiências de coprodução?
O Zama fala um pouco sobre isso. Apesar de ser [inspirado em] uma novela clássica da literatura argentina, é um filme latino-americano. Você vai ver como o elenco brasileiro está dentro da história, que é de um tempo em que ainda não estava definido quem era quem: éramos todos colonizados e usurpados. Eu me tornei latino-americana pelo cinema. Não tinha essa consciência, esse pertencimento ao continente como comecei a ter a partir das viagens e das conexões que fui fazendo por meio do cinema. Viajo muito, tenho sido convidada para ser júri de editais e festivais, estou bem conectada com a produção. Tenho orgulho de ser identificada com isso que você está falando [as coproduções latino-americanas]. Uma vez uma reportagem disse que eu era a produtora que falava portunhol. Parecia uma coisa ruim, mas eu achei boa.

O seu nome aparece tanto no começo de O Filme da Minha Vida quanto no cartaz. Você gostaria que ele fosse como um selo, ou seja, que a pessoa veja seu nome e saiba o que vai assistir?
Claro que gostaria. Óbvio.

Você não é uma produtora que vai ficar muito atrás. Você gosta de estar ali.
Não vim ao mundo para ficar atrás de nada. Desde os três anos estou na primeira fila. Tenho opinião, posição. Quem quiser uma produtora subserviente…quem quer a troca é que gosta [de trabalhar comigo]. E trocas com toda a equipe. O diretor ou a diretora rege a coisa, mas eles têm de ser muito teimosos para não escutar a melhor idea. Não me interessa trabalhar com gente estúpida. Quero trabalhar com gente inteligente que diz: “Boa ideia. De quem é? Não importa.” Todo mundo trabalha para o filme. Agora, eu tenho uma identidade, sim, uma filmografia, um jeito de produzir. As pessoas me reconhecem e acho que é pela paixão que imprimo nas coisas. Não sou contadora, sou produtora. E na verdade não tem nada de errado comigo, não. É assim em um monte de lugar. Aqui fica parecendo que sou metida, que me meto em tudo.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o nome do produtor é muitas vezes uma informação sobre o filme.
No mundo inteiro é assim. As pessoas têm identidade. Mas isso aí [aponta para o pôster] não fui eu quem falou para pôr. Foram eles [os responsáveis pelo material de divulgação] que acharam bom colocar. Porque tem identidade.

Nesses 20 anos de carreira, mudou alguma coisa no que diz respeito a ser mulher produtora no Brasil?
Não sei, para mim mudou porque a posição da minha carreira mudou. Mas acho que ainda é uma merda, que ainda tem coisas terríveis. O que me auxilia na luta por sobrevivência no mundo dos machos, e não estou falando só do cinema, é o fato de ter uma personalidade muito forte. Não tenho medo do enfrentamento, sempre fui muito corajosa. Mas já sofri, já fui humilhada, assediada, questionada, interrompida. Você acha que todo mundo com quem trabalhei é igual ao Selton, que fica contando esses detalhes? Sabe para quantos diretores já dei palpite em edição? Um monte! Só o Selton fala, e isso diz mais sobre ele do que sobre mim. É difícil, sim [ser mulher na produção]. Falam para a gente ficar calminha, falam de TPM, de menopausa. Atribuem minhas ações mais assertivas, mais firmes, a ser mulher, mal amada, mal comida, mal não sei o que…

E como você lida com isso?
Sou filha única, nasci no sertão de Minas Gerais sem irmão para me defender. Brigo na rua desde os três anos. Sempre tive que enfrentar os meninos, porque eles sempre foram sacanas. Então estou treinada. Há homens legais, sensíveis, mas tem muito deboche, gente que se apropria do seu discurso no debate…tudo isso é verdade. Sabe aquele manual das feministas [de tipos de situações machistas]? Tudo aquilo já aconteceu comigo, e não foi uma vez só. Então estou feliz que pelo menos há uma galera se ligando, falando nisso. Acho que vai fazer com que, no futuro, as coisas sejam de outra maneira.

E que conselho você daria para as mulheres que querem ser produtoras?
Acho que elas têm de visitar o coração delas e ver se têm vocação. Porque, ao contrário do que todo mundo pensa, não é qualquer um que pode ser produtor. Produtor tem de ser vocacionado igual ao ator, igual ao pintor. Se tem uma coisa que me deixa puta é todo mundo achar que qualquer um pode ser produtor. Se você quiser eliminar a possibilidade de trabalhar comigo…o povo às vezes manda [currículo] na Bananeira [dizendo]: “Quero ser montadora, mas quero ser produtora primeiro.” Como se fosse um bico, uma passagem para alguma coisa. Não é. Eu sou vocacionada. Gosto de ser produtora, tenho fetiche de sair do nada para chegar nisso aqui [aponta para o pôster]. Então o conselho que dou é ver se querem mesmo ser produtoras. Porque se quiserem fazer da produção uma passagem para algum lugar, sugiro que desistam.

Veja o trailer de O Filme da Minha Vida:

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