“Longa feminino vence Festival de Brasília”. Foi com este título que um jornal brasileiro noticiou os quatro prêmios recebidos por A Cidade Onde Envelheço, filme dirigido por Marília Rocha, em um dos mais importantes eventos cinematográficos do País. Não ficou claro se o adjetivo feminino fez referência às protagonistas mulheres, à cineasta mulher ou às duas coisas. Mas foi uma escolha peculiar em se tratando de um filme que aborda questões universais e de fácil identificação para qualquer pessoa – sobretudo para quem em algum momento começou uma vida nova longe de casa.
No centro da trama estão amigas portuguesas que não se veem há muito tempo: Francisca vive no Brasil há um ano; Teresa acaba de chegar. Enquanto acompanha a retomada da intimidade e do carinho entre elas, A Cidade onde Envelheço combina olhares diferentes: o desejo de partir e a saudade de casa; a excitação do começo e a dificuldade trazida pelo tempo; as inúmeras peculiaridades que passam de charme local para sintomas de tudo que há de errado.
O filme é a estreia de Rocha na ficção, após documentários como Aboio (2005) e A Falta que me Faz (2009). A mistura de gêneros fica clara na narrativa centrada em momentos cotidianos, sem grandes acontecimentos além da própria vida, e no elenco de não atores que nem chegou a ver o roteiro ou ensaiar diálogos.
“Fizemos uma preparação, tanto equipe quanto atores. Era preciso estar pronto para o acaso, para gerar instabilidade à ficção”, afirmou a diretora, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Isso era mais importante do que a decupagem, texto, cenário – trabalhávamos com tudo isso, mas sempre agregando uma boa dose de descontrole.”
Na entrevista a seguir, Rocha dá mais detalhes sobre as filmagens, fala sobre como buscou retratar Belo Horizonte e comenta o rótulo de “filme feminino”. “Entendo o filme ser feminista, e no caso acredito que seja”, comenta. “Mas dizer que é um filme feminino, o que isto quer dizer?”
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Como o projeto começou?
O projeto começou de fato quando conheci algumas moças portuguesas que passavam uma temporada em Belo Horizonte. Uma delas, a Francisca Manuel, acabou se tornando uma das protagonistas do filme. Depois de conhecê-la, escrevemos uma primeira etapa do roteiro e fizemos uma pesquisa em Portugal para encontrar Teresa, a segunda personagem. Nesse processo filmamos dezenas de jovens portuguesas que estavam vivendo de perto a crise econômica de seu país e ansiavam por uma chance de partir. A migração portuguesa é um acontecimento historicamente recorrente, mas não apenas causado pelas crises. O filme deve muito a elas [as atrizes], às suas conversas e aos seus sentimentos.
A filmagem foi marcada pelo improviso e pela construção de cenas com o próprio elenco. Como foi esse processo na prática? Por exemplo, o roteiro estava fechado ou os atores podiam criar suas falas seguindo uma determinada linha? O que vocês tinham de preparação prévia e o que não tinham?
Tínhamos um roteiro, que não foi entregue aos atores. E nunca ensaiamos diálogos. Fizemos uma preparação, tanto equipe quanto atores. Era preciso preparar para estar pronto para o acaso, para gerar instabilidade à ficção. Isso era mais importante do que a decupagem, texto, cenário – trabalhávamos com tudo isso, mas sempre agregando uma boa dose de descontrole. Por exemplo, a movimentação dos atores era imprevisível, havia um diálogo de base que era reinventado durante a cena, o cenário era vivido e estava sempre em transformação.
O filme chama muito a atenção pela naturalidade – nos diálogos, nas atuações, no seu jeito de filmar etc. Isso tem algo a ver com sua trajetória no documentário?
Toda a estrutura tradicional da ficção – roteiro, relação entre a equipe, relação equipe e atores – foi retrabalhada para encontrarmos uma medida certa para o filme. O roteiro dependia de vivências e pessoas reais, a equipe lidava com situações não previsíveis, os atores se fundiam aos seus personagens. Ao mesmo tempo, existiu todo um trabalho de preparação (locações, direção de arte e figurino, por exemplo) e uma proposta narrativa claramente ficcional. Mas esta proposta visava criar situações para que algo real acontecesse.
Você é goiana, mas escolheu viver em Belo Horizonte. De que forma quis mostrar a cidade na tela?
Um dos aspectos mais importantes de Belo Horizonte é uma sensação de acolhimento e hospitalidade da cidade. Mais do que a paisagem, quis filmar um mapa afetivo da cidade onde vivo. Eu, que também vim de fora e adotei esta cidade para viver, sinto que o que me fez ficar foi sobretudo uma sensação de estar em casa, de ter sido rapidamente acolhida. É algo sutil que busquei no filme e na experiência de Teresa e Francisca.
Minha sequência favorita é aquela em que elas procuram apartamento e conversam sobre os azulejos no banheiro, todos misturados e sem padrão. É uma cena simples, que diz muito sobre o Brasil. Como você a desenvolveu?
Como em todo o filme, é uma combinação de uma cena previamente escrita, no caso, a procura de um apartamento para alugar, com a situação e os objetos reais com os quais a atrizes se deparavam. Era a fusão das personagens com o olhar estrangeiro das pessoas que as encenavam.
O momento do Brasil é de crise e há muita gente indo embora ou considerando mudar para outro país, inclusive para Portugal. Como vê esse trajeto inverso ao retratado no filme? Acha que o brasileiro também tem esse misto de vontade de partir e saudade imensa de casa?
Filmamos num momento exatamente inverso ao atual. Portugal estava em crise e o Brasil, para além de um momento favorável economicamente, vivia um esboço de país de inclusão, de descentralização, de uma efervescência cultural apoiada por políticas públicas que incentivavam a diversidade. Esse cenário mudou completamente. Mas a nossa vivência da crise é muito diferente. O desejo de partir faz parte da alma portuguesa, não tem a ver apenas com a crise.
Em setembro, a Folha de S. Paulo publicou a notícia: “Longa feminino A Cidade Onde Envelheço vence Festival de Brasília”. Qual sua opinião sobre esse título? Acha que o filme é feminino? Acredita nesse tipo de definição?
É curioso o feminino se tornar um adjetivo. Entendo o filme ser feminista, e no caso acredito que seja. É um filme sobre duas mulheres livres, cujos dramas não têm como causa ou objetivo os homens. E há relação de igualdade entre homens e mulheres, com as suas diferenças, seus dilemas, suas paixões. Mas dizer que é um filme feminino, o que isto quer dizer?
Você tem uma produtora, a Anavilhana, em parceria com Clarissa Campolina e Luana Melgaço. Como é trabalhar com elas, nesse ambiente de mulheres?
Tenho a sorte de trabalhar com parceiras que admiro imensamente, com um longo percurso juntas. Temos relação de companheirismo e troca, que nos une e nos impulsiona também. Não sei dizer se é questão de gênero, afinidade ou ambos.
Que conselho você daria às mulheres que também querem ser diretoras?
Não é possível transmitir experiência. É preciso viver, assistir a filmes e filmar o que realmente te interessa e te toca.
Veja o trailer de A Cidade Onde Envelheço:
Foto do topo: Luigi Angelucci / Fotos do filme: Bianca Aun