Lucrecia Martel não é o que se chamaria de uma cineasta prolífica. Aos 51 anos, tem quatro longas-metragens de ficção no currículo, sendo que o mais recente, Zama, estreia nesta semana no Brasil após um intervalo de quase dez anos em relação ao anterior, o ótimo A Mulher Sem Cabeça. Num mundo que supervaloriza a produtividade e nem tanto a memória, não deixa de surpreender que a diretora argentina se mantenha como uma referência tão forte, principalmente no cinema latino-americano. Por que, afinal, não nos esquecemos de Lucrecia Martel?
Ela mesma tem seu palpite: “Meus filmes não apostam no argumento”, afirmou, em entrevista ao Mulher no Cinema durante passagem por São Paulo (SP). “Antes do argumento, já entreguei ao espectador um montão de coisas pelas quais pode navegar, pensar. Isso faz com que o público trabalhe mais a cabeça, e também a memória.”
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Zama é o primeiro filme de época da diretora, bem como o primeiro protagonizado por um homem (Daniel Giménez Cacho) e adaptado de um livro. É, também, o primeiro que não se passa em sua cidade natal, Salta, e que troca os interiores das casas de famílias argentinas por paisagens ao ar livre. Apesar das diferenças, o longa dialoga com os trabalhos anteriores de Martel – além de A Mulher Sem Cabeça, A Menina Santa (2004) e O Pântano (2001) -, no minimalismo narrativo, na atenção dada ao som, na história que se revela aos poucos e no protagonista que parece fora de lugar.
Foi durante uma viagem de barco que a diretora leu o romance de Antonio Di Benedetto sobre Don Diego de Zama, oficial da Coroa espanhola alocado em um povoado argentino durante o século 18. Há muitos anos longe de casa, ele espera por uma transferência que sempre lhe é prometida, mas nunca chega, e atura o presente pensando no futuro. Martel reconheceu em Zama o que vê como um mal dos tempos atuais: “Me parecia que a obra falava sobre o mundo da classe média da colônia, que não sei como se chamaria, mas que tem os mesmos problemas da classe média da Argentina hoje”, disse. “A classe média está sempre pensando em outro lugar, outro modelo, e não consegue se conectar com o que está à volta.”
Filmar o longa não foi tarefa fácil: para levantar o orçamento de cerca de US$ 2,5 milhões (mais de R$ 8 milhões), foi preciso reunir quase 30 produtores, que incluem Pedro Almodóvar, Gael García Bernal, Julia Solomonoff e a brasileira Vania Catani, dona da Bananeira Filmes. A filmagem levou nove semanas e, durante a pós-produção, Martel foi diagnosticada com câncer. Foram vários cortes até que o filme chegasse ao Festival de Veneza no ano passado e, agora, aos cinemas brasileiros.
Na entrevista ao Mulher no Cinema, a diretora argentina falou sobre Zama, fez críticas à Netflix e defendeu a necessidade de políticas públicas para a construção de uma produção audiovisual que inclua mais mulheres e minorias: “A maior pobreza do cinema latino-americano, hoje, é que a sociedade está subrepresentada.”
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Por que você quis adaptar este romance?
Quando li a obra, as coisas que aconteciam ao personagem me pareceram muito próximas, e não algo do século 18. A leitura me deu grande euforia, e senti que podia fazer um filme com essa euforia. Não era tanto uma questão de levar o livro ao cinema, porque isso é algo absurdo, mas de levar ao cinema o que o livro tinha feito em mim. Me parecia que a obra falava sobre o mundo da classe média da colônia, que não sei como se chamaria, mas que tem os mesmos problemas da classe média da Argentina hoje – e tenho certeza que do Brasil. A classe média está sempre pensando em outro lugar, outro modelo, e não consegue se conectar com o que está à volta.
Em entrevista ao British Film Institute você disse que trabalhar o personagem de Zama fez com que se aproximasse do pior que existe em você. De que forma?
Justamente por isso, por perseguir as coisas futuras e depreciar um pouco o tempo presente. Acho que é um mal da época, generalizado. Estamos sempre trabalhando para o futuro e não para o presente.
A Argentina em especial é conhecida pela nostalgia, pela valorização de um suposto tempo que não tinha tantos problemas quanto o presente. Mas seu filme mostra um passado bastante problemático, sobretudo em relação ao tratamento de índios e negros. Foi sua intenção romper com essa ideia nostálgica do passado argentino?
Acho que ninguém realmente acredita que houve um passado melhor. Em que momento? Não sei que ano foi melhor! Se queremos que haja um tempo melhor, precisa ser um tempo em que pensemos mais generosamente sobre o nosso país. A Argentina pensa muito sobre si mesma, e quando digo “Argentina” estou falando de uma porção mínima, porque o resto da população tem outros problemas, assim como aqui no Brasil. Toda essa história heróica do século 19, essas coisas da independência, todas essas ideias…acreditamos nelas, mas elas não são corretas. Os índios seguem igual ou pior do que antes. Os negros não são escravos, mas quase são. Acreditamos e contamos uma história que não se reflete na realidade.
“Toda essa história heróica do século 19, essas coisas da independência, todas essas ideias…acreditamos nelas, mas elas não são corretas. Os índios seguem igual ou pior do que antes. Os negros não são escravos, mas quase são. Acreditamos e contamos uma história que não se reflete na realidade.”
Tem se falado muito sobre a representação das mulheres e das minorias, tanto em frente quanto por trás das câmeras. Você acredita que existe uma nova oportunidade de se criar um cinema latino-americano que seja mais parecido com a sociedade latino-americana, ou seja, um cinema menos branco, masculino e de classe média alta?
A maior pobreza do cinema latino-americano, hoje, é que a sociedade está subrepresentada. Não é toda a sociedade que tem acesso a produzir imagens e narrativas audiovisuais, é uma minoria de classe média alta e branca. Isto é uma pobreza. A vida dos nossos países é muito complexa, e precisamos que exista muita gente olhando e pensando a partir de muitos setores. Se não atingirmos isso, nunca vamos ter uma ideia sobre quem somos. É preciso ajudar o cinema de outros lugares a aparecer. E tem de ser com políticas culturais que permitam o financiamento de projetos pequenos, de outros setores. Os projetos existem, as pessoas com vontade de fazer existem. Faltam existir as vias para se conseguir financiamento.
Mas isso está mudando?
Vai mudando cada vez mais, inevitavelmente, porque as pessoas não são tontas. E também porque, não sei como é aqui no Brasil, mas na Argentina há uma quantidade gigantesca de mulheres no cinema. Penso que, em números, são maioria. E vai ser assim porque trata-se de uma atividade ideal para as mulheres.
Por quê?
Primeiro porque para fazer cinema é preciso conversar muito, e nós gostamos de conversar. E também porque somos resistentes à ideia de fracasso, e o cinema cria várias situações em que é preciso lidar com o fracasso.
“Não é toda a sociedade que tem acesso a produzir imagens e narrativas audiovisuais, é uma minoria de classe média alta e branca. Isto é uma pobreza. A vida dos nossos países é muito complexa, e precisamos que exista muita gente olhando e pensando a partir de muitos setores. Se não atingirmos isso, nunca vamos ter uma ideia sobre quem somos.”
Mulheres diretoras ainda são pouco citadas em cursos e livros sobre a história do cinema. Quando começou sua carreira, você tinha alguma referência de cineasta mulher?
Meu incentivo para fazer cinema foram minhas avós, não porque queriam que trabalhasse nisso, mas porque tinham a coisa da conversa, e eu venho muito da tradição oral. Mas, curiosamente, quando era adolescente o filme mais bem-sucedido da Argentina era Camila: O Símbolo de uma Mulher Apaixonada, que estreou em 1984 e era produzido e dirigido por mulheres [Lita Stantic e María Luisa Bemberg]. Na minha fantasia, pensei que era uma atividade para mulheres. Por engano! [risos].
Na sua trajetória, enfrentou dificuldades por ser mulher?
Tenho certeza que sim, mas não me dei conta.
Muito se falou sobre como Zama marca novidades na sua obra, mas para mim ele dialoga bastante com seus outros filmes. Você vê conexões e semelhanças com trabalhos anteriores?
Fiz todos da mesma maneira. Entendo que Zama pareça diferente para as pessoas pelo fato de ter mais cenas exteriores. Tem mais exteriores porque requeria mais exteriores. Tem mais gente. Tem mais figurino [risos]. Mas não o fiz de outra forma e para mim também se parece muito [com os trabalhos anteriores].
“Não tenho aquele entusiasmo de fazer outro filme logo em seguida. Para mim, as ideias não são assim. E para que tanto filme? Para que mais filmes? Já existem tantos filmes que não são vistos, para que acrescentar outros?”
Você não lança muitos filmes, mas continua sendo um nome forte do cinema latino-americano. Na sua opinião, porque seus trabalhos ficam com as pessoas? Por que não esquecemos de você?
Porque não acredito no argumento. Meus filmes não apostam no argumento. Antes do argumento, já entreguei ao espectador um montão de coisas pelas quais ele pode navegar, pensar. Isso faz com que o público trabalhe muito mais a cabeça, e também a memória. Você não sai do cinema e liga para o seu amigo para dizer: “Vá ver Zama agora!”. Ninguém sai eufórico dos meus filmes. E veja, o lugar que tenho no cinema, com poucos longas, [conquistei] com o tempo, não foi imediatamente. Não é que as pessoas viram os filmes e falaram “sim”. Isso nunca aconteceu comigo. Sempre houve pouca gente que disse “sim, este filme é bom” logo naquele momento. O reconhecimento foi com o tempo.
Estes intervalos entre os filmes são importantes para você e o seu processo?
Não sinto os intervalos porque sempre estou fazendo coisas. Mas o que não tenho é aquele entusiasmo de fazer outro filme logo em seguida. Para mim, as ideias não são assim. E para que tanto filme? Para que mais filmes? Já existem tantos filmes que não são vistos, para que acrescentar outros?
Em entrevista ao El País você disse que as séries de televisão eram um retrocesso. Queria saber o que você acha da Netflix e de outras plataformas de streaming especificamente no caso do cinema. Há muita discussão, por exemplo, sobre se estes filmes devem concorrer em festivais e ao Oscar. Como vê esta outra forma de fazer cinema?
A Netflix é a mesma coisa que no passado eram MGM, Paramount ou United Artists: megaempresas que não estão em busca de que os países expressem suas culturas e seus conflitos, mas, sim, em fazer negócio. O que penso sobre a Netflix é que ela não me importa. Estou interessada no que os governos pensam sobre como incentivar a produção de cinema. A Netflix é uma empresa e pensa como uma empresa. O que quer? Fazer dinheiro. Não está pensando na cultura. Me dá muita pena ver gente jovem desesperada para fazer uma série e apresentar à Netflix. Porque a maioria dessas pessoas trata de atender ao que a Netflix busca, e não ao que de fato quer fazer e à sua relação com mundo. Acredito em produzir filmes para os espectadores, não para a Netflix. Não me importo nem um pouco com a Netflix. Me parece muito medíocre tudo o que está lá. Creio que um filme meu está [no catálogo], mas da mesma forma, me parece uma plataforma medíocre.
“A Netflix é uma empresa e pensa como uma empresa. O que quer? Fazer dinheiro. Não está pensando na cultura. Me dá muita pena ver gente jovem desesperada para fazer uma série e apresentar à Netflix. Porque a maioria trata de atender ao que a Netflix busca, e não ao que de fato quer fazer e à sua relação com mundo. Acredito em produzir filmes para os espectadores, não para a Netflix. Me parece muito medíocre tudo o que está lá.”
Então, para você, o caminho a se seguir está mais ligado ao incentivo do governo?
Veja, os Estados Unidos protegem sua indústria, e sempre fizeram isso no caso do cinema. Estamos cegos se pensamos que o livre mercado é livre. A única forma de os cinemas nacionais crescerem, se fortalecerem e encontrarem seus próprios caminhos é que os governos tomem medidas inteligentes e criem políticas culturais. Aqui no Brasil foi tomada uma medida inteligente, não sei se durante o governo de Lula ou Dilma, de apoiar a produção audiovisual das diferentes regiões. E dá para ver o resultado.
Uma produção audiovisual menos concentrada em apenas uma parte do país.
Claro. E isso só pode acontecer com políticas culturais inteligentes. Quem fala contra a intervenção ou o posicionamento do Estado a respeito do cinema tem a fantasia de que a indústria americana não está protegida.
Que conselho você daria para as mulheres que querem ser diretoras?
Em primeiro lugar, que há muitas coisas a se fazer no cinema, não só dirigir. Há roteiristas, gente que trabalha na parte elétrica, na fotografia, na produção…E que confiem nesta ideia de conversar e de se juntar com pessoas com as quais se entendem. As equipes se formam da mesma maneira que os grupos de amigos, não com mesquinharia ou conflitos. E nisto acredito que temos muita prática: as mulheres sabem lidar com suas famílias, são as que mais trabalham as relações de casais. Temos o treinamento perfeito para fazer cinema.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema