É possível apresentar a carreira da diretora de fotografia e artista visual Linga Acácio a partir das instituições de renome nacional e internacional que permeiam seu currículo. Destacar, por exemplo, que Linga formou-se em Comunicação Social pela Universidade de Fortaleza, fez mestrado em Artes na Universidade Federal do Ceará, foi artista residente do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, exibiu seu trabalho no Palais de Tokyo, em Paris, e foi premiada no Festival de Tribeca, em Nova York, pela direção de fotografia de Estranho Caminho, filme de Guto Parente que está em cartaz nos cinemas brasileiros.
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Embora certamente relevantes, tais informações não dão conta da trajetória de uma profissional cuja formação e prática estão fundamentalmente ligadas ao convívio e colaboração com outros artistas. Nascida em 1985 em Fortaleza, Linga considera essenciais as experiências vividas em centros culturais locais, como Alpendre Casa de Arte e Dança no Andar de Cima, e na Bienal Internacional de Dança do Ceará. Mais tarde, quando mudou-se para a capital paulista, envolveu-se e foi influenciada pela movimentação de artistas trans e travestis. Nestes ambientes “mais independentes e autônomos”, encontrou estímulo para transitar por diferentes áreas: além de artista visual e diretora de fotografia, também é performer, fotógrafa, curadora e pesquisadora.
“Minha formação passa por todos esses lugares, o que traz pluralidade não só para o meu olhar, mas para a forma como sinto e percebo”, afirmou Linga, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Essas outras linguagens vão ampliando o recorte do que seria a fotografia somente através do olho. A gente fotografa com o corpo todo.”
No cinema, Linga começou como fotógrafa still e estreou na direção de fotografia em 2012, com o curta Inexpressivo, de Ticiana Augusto Lima. Entre seus mais de 20 trabalhos estão Lalabis (2022), de Noá Bonoba, Transversais (2021), de Emerson Maranhão, e O Estranho Caso de Ezequiel (2016), de Guto Parente, além de obras que ela dirigiu, como Rumo ao Desvio (2021) e Para Saber Onde Nadar Siga as Bolhas de Ar (2019).
Seu trabalho ganhou nova projeção com Estranho Caminho, que recebeu outros três prêmios (melhor filme, melhor roteiro e melhor atuação) na competição internacional de Tribeca. Dirigido por Guto Parente, o longa conta a história de David (Lucas Limeira), jovem cineasta que deixa Portugal, onde vive, para exibir seu novo filme em um festival de Fortaleza, sua cidade natal. Impedido de voltar para casa por causa da pandemia de Covid-19, ele se vê obrigado a procurar o pai, Geraldo (Carlos Francisco), com quem não fala há muito tempo.
Trata-se, em grande medida, de um filme sobre a dificuldade de comunicação entre pai e filho. E na ausência de conversas claras entre os dois, cabe à fotografia de Linga ajudar a revelar o estado emocional dos personagens. Sua câmera mantém-se sempre próxima aos protagonistas e raramente os mostra no mesmo quadro, além de contrastar as ensolaradas paisagens naturais de Fortaleza à claustrofobia do apartamento.
Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista com Linga Acácio:
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Você é artista visual, curadora, performer, pesquisadora e fotógrafa. De que forma essas múltiplas expressões artísticas informam o seu trabalho na direção de fotografia?
Minha formação como diretora de fotografia passa por todos esses lugares, que não estão apartados e, inclusive, se completam. É algo que traz pluralidade não só para o meu olhar, mas para a forma como sinto e percebo. A primeira linguagem da qual me aproximei foi a fotografia, mas logo depois veio a dança, que tem um repertório de percepção que ativa o corpo todo. Quando trago a performance e todas essas vivências, a fotografia se torna mais do que um olhar. Essas outras dimensões, linguagens e possibilidades vão ampliando o recorte do que seria a fotografia somente através do olho. Acredito que a gente fotografa com o corpo todo.
Li entrevistas nas quais você disse que sua formação se deu mais no convívio e na colaboração com outros artistas do que por meio de instituições de ensino propriamente ditas, digamos assim. Ter trilhado este caminho teve algum tipo de impacto na sua obra?
Com certeza. Sou de uma geração que viveu uma cena institucional menor e mais elitizada do que a que existe em Fortaleza hoje. E esses dois fatores – quantidade e elitismo – fizeram com que a produção e circulação dos artistas fosse muito através dos coletivos. Foi importante [naquele momento] a Bienal de Dança, o Alpendre [Casa de Arte], que não existe mais, mas tinha um circuito plural de dança, cinema e artes visuais, e o Dança no Andar de Cima, que foi contemporâneo ao Alpendre. Mais recentemente, mudei [de Fortaleza] para estudar na Universidade de São Paulo, mas a grande formação que tive na cidade foi junto às minhas amigas, às artistas trans e travestis que fui conhecendo. Essa mobilização, que é mais íntima, independente e autônoma, marca muito a minha trajetória. Foram nesses espaços que certas radicalidades foram sendo cuidadas, para que hoje a gente possa experimentar alguma inserção institucional.
Passando para Estranho Caminho, o que pode contar sobre sua conversa com o diretor Guto Parente? Quais as diretrizes da fotografia ou o que era essencial para contar esta história?
O Guto é um diretor com quem gosto de colaborar, porque ele trabalha muito a escuta e o processo. Então foram várias conversas. Vimos muitos filmes juntos, porque o Guto sempre traz muitas referências. E a partir disso vem um movimento meu de colocar de onde estou vindo, o que estou assistindo, o que estou lendo. Também conversamos muito a partir da pesquisa de locações. O quarto da hospedagem, por exemplo, tinha aquele vinil bem antigo, já bem violeta – esse tipo de coisa foi sendo incorporada. Outra coisa que foi muito presente foi a sensação da pandemia, que estava rondando o set. O filme fala sobre luto, sobre como a gente lida com esses vazios, e acho que todo mundo estava muito sensível naquele momento.
Ao justificar o prêmio que deu a você, o júri de Tribeca disse ter ficado impressionado com a “força visual” do filme e a fotografia que “ilumina a narrativa não apenas com a beleza natural da locação, mas com a paisagem psicológica do protagonista”. Como você trabalhou essa questão de traduzir o universo interno do personagem, considerando também se tratar de um filme sobre a dificuldade de comunicação, no qual pai e filho não se expressam abertamente?
Muita coisa pode navegar por esse abismo da relação entre pai e filho. Na fotografia temos o desafio de falar do que é visível. De alguma forma, meu trabalho é este: tornar visível ao espectador, e à própria equipe também, o que está sendo trabalhado ali. Mas acredito que algumas coisas não estejam nessa ordem. Por isso gosto de trabalhar a sensibilidade da fotografia que expande para outras percepções, como disse no começo da entrevista. É difícil falar de carga psicológica enquanto fotografia. Uma metodologia da qual gosto é a de trabalhar muito perto do ator: ter uma escuta afinada com quem está encarnando esse personagem e esse sentimento. Às vezes, são os detalhes que ajudam a captar aquilo que não necessariamente está numa camada de visualidade ou até de primeiro plano. Acredito que o cinema se constrói através de detalhes, de micropercepções que, juntas, vão se agrupando e tomando essa dimensão. Como o júri disse, Fortaleza também traz a camada da beleza natural. Mas acho que é isso junto com quem está ali dando vida à cena – e não só os atores, mas a equipe como um todo: o figurino, a caracterização, a direção de arte, a produção. É esse senso de coletivo que a fotografia consegue imprimir. Tudo ali é uma vibração. No meu trabalho como artista visual, falo muito sobre as camadas do invisível – as camadas que a gente percebe, mas não necessariamente vê. Gosto de pensar a fotografia como essa expansão de percepção para que a gente não tenha como prioridade só o ver. E aí cada projeto se abre mais ou menos para isso. O Estranho Caminho se abriu muito, porque tinha uma camada fantasiosa, mágica, mística, sobrenatural. Na confluência de tudo isso, a fotografia e o filme foram se construindo.
Você mencionou Fortaleza, que é a sua cidade natal e um lugar sobre o qual você pesquisou durante o mestrado. Para você, como é filmar Fortaleza? Há algo que queira mostrar especialmente ou, ao contrário, alguma imagem que não queira reproduzir?
Fortaleza sempre me intrigou. Não sei se é porque sou de lá, e porque essas relações de nascença trazem familiaridade e ao mesmo tempo estranheza. Acho que a cidade me interessa como um lugar no qual as coisas se constroem a partir do contato com o outro. Para mim, Fortaleza só existe porque existem pessoas que amo e que me apresentam a cidade a todo instante que estou lá. Fortaleza é as pessoas. Obviamente tem a praia e tudo isso, mas praia por praia…é um estereótipo que a gente cansa. Acho que, de alguma forma, a gente tem necessidade de ver e ser visto, de ser reconhecido pelo trabalho e o desenvolvimento intelectual que fazemos no Ceará. No que posso colaborar, sempre tento trazer essa camada de uma produção muito relevante não só no contexto nacional. Tendo tido experiências internacionais, vejo o quão potente é o que produzimos lá e o quão bonito é tecer pontes a partir do que vivemos localmente, e que de alguma forma também é global. Tenho muito prazer em tornar essas conexões visíveis na tela do cinema. Acho que é o que faz Fortaleza ser o que é: essa cidade gostosa de se habitar, que também tem seus desafios, seus processos de colonialidade fortemente entranhados. Dentro do meu trabalho, tento trazer essa beleza que é natural, mas também é humana e está nas relações, e dissolver o mal, enferrujar certas estruturas que precisam morrer para que outras possam nascer.
Embora o cinema seja uma arte coletiva, a conversa sobre cinema costuma ser excessivamente centrada em atores e diretores, que recebem muito mais atenção do que os profissionais que exercem outras funções. Acho que o mesmo pode ser dito no que diz respeito às mulheres trans: temos falado mais sobre artistas trans do audiovisual, mas elas são, basicamente, atrizes e diretoras, às vezes roteiristas. Em Estranho Caminho, você assina a direção de fotografia e Noá Bonoba, a preparação do elenco, num exemplo das outras possibilidades de atuação profissional para mulheres trans no audiovisual, o que também dialoga com a questão da empregabilidade, que é central. Gostaria que você falasse um pouco sobre isso. Há mais pessoas trans circulando em diferentes funções, inclusive técnicas? Há uma conversa dentro do audiovisual quanto à necessidade de não apenas oferecer mais oportunidades, mas também todo tipo de oportunidade, de acordo com os talentos e interesses de cada profissional?
Quando fiz a fotografia de um curta da Noá, ela trouxe uma perspectiva que achei muito interessante: o set é um lugar de formação. Isso me impactou porque, para a gente mostrar o nosso profissionalismo, a gente precisa trabalhar. A gente precisa estar ali para mostrar o que faz, o que está pensando, o que pode oferecer. E as pessoas trans têm muita coisa para oferecer intelectual e tecnicamente. Temos feito um trabalho muito interessante no Ceará, em articulação nacional com a Associação de Profissionais Trans do Audiovisual (APTA), de discutir o mercado de trabalho e as formas de a gente se ajudar nessa formação. [O audiovisual] é um lugar supremacista, que prioriza o sexo masculino, a cisgeneridade, a heterossexualidade, a branquitude. Então temos discutido muito sobre a importância da contratação de pessoas trans, negras, indígenas, de mulheres – de se ter uma equipe de fato plural. O set é um espaço muito especial, porque o filme está sendo construído ali. Se você quer ter um bom debate sobre o seu filme – e aí trago isso aos diretores e às produções executivas – é preciso ter um set com pluralidade de percepções sobre o que está sendo criado, para que a gente não tenha surpresas desagradáveis na hora do lançamento, como vemos acontecer. Ninguém avisou que esse filme é racista? Não, porque talvez não houvesse nenhuma pessoa negra em posição de direção, que pudesse falar dentro do filme, que pudesse ser ouvida. Pensar nisso é favorecer o próprio filme. Para que fazer um filme racista em 2024? Para que fazer mais um filme machista? Para que fazer mais um filme transfóbico?
É importante termos [pluralidade] não só no campo da visibilidade, mas também no da produção técnica. Trabalho atrás das câmeras, e acho que o tempo todo estamos colocando esse diálogo entre as fronteiras do visível e do invisível. Trabalhar isso é trabalhar a pluralidade – que não é inclusão. Eu, pelo menos, não quero ser incluída num lugar transfóbico, machista e racista. Quero que esse lugar seja de fato possível de ser habitado por corporalidades múltiplas. Afirmar o domínio técnico é importante, mas para termos o domínio técnico precisamos trabalhar. Precisamos de experiência de trabalho. E precisamos ser empregadas em posições de decisão. É importante estarmos na base? É importante. Todos os profissionais são importantes dentro de um filme. Mas que também haja espaço e oportunidade para estarmos em posições de direcionamento técnico.
Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no audiovisual?
Busquem caminhar juntas. Busquem parcerias, amizades, lugares onde se sintam confortáveis em olhar uma para a outra e ter confiança no trabalho. Acho que o caminho é andar em bando e ir fazer, dar a cara mesmo. Em alguns momentos, infelizmente, estaremos sozinhas. Mas temos de ter a certeza de que, ao olharmos para trás, teremos o bando junto com a gente. É se fortalecer no coletivo para fortalecer, também, a nossa singularidade.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema