Teve gostinho especial a vitória de Danado de Bom no festival Cine PE, cuja 20ª edição foi encerrada no último domingo no Recife: o filme era o único dos dez títulos em competição que tinha uma mulher – Deby Brennand – na direção.
E não só na direção. Danado de Bom surgiu quando a produtora cultural Roberta Jansen procurou Marianna Brennand, da Mariola Filmes, com a ideia de um filme sobre o compositor João Silva (1935-2003). Parceiro de Luiz Gonzaga, Silva é personagem pouco conhecido da música brasileira apesar da popularidade das canções que escreveu, como “Pagode Russo” e “Nem se Despediu de Mim”.
No documentário, finalizado após a morte do músico, é ele mesmo quem conta sua história enquanto viaja até sua cidade natal, Arcoverde, em Pernambuco. Mulher no Cinema conversou com Deby (na foto acima, à esquerda) e Marianna (à direita) para saber mais sobre o filme – que também levou os prêmios de montagem, fotografia e edição de som no Cine PE.
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Danado de Bom era o único longa-metragem dirigido por mulher nesta edição do Cine PE. O que acham disso?
Marianna: Ficamos orgulhosas de nossa equipe majoritariamente feminina. Eu assino a produção, a Carolina Benevides divide comigo a produção executiva, a direção é da Deby Brennand, a montagem é da Jordana Berg e a Roberta Jansen assina como produtora associada. Recentemente houve uma movimentação, foi aberto um espaço muito importante para esse debate [sobre a mulher no audiovisual]. Acredito que estamos construindo bases para que o cinema nacional possa se tornar um ambiente mais democrático e plural, no qual mais mulheres possam ocupar espaços antes segregados. É um contraste muito interessante se pensarmos no fato de nosso personagem ser um sertanejo “cabra macho” e de suas composições serem endereçadas às mulheres através da ótica masculina. Acho que o filme cresce ainda mais visto por esse prisma.
Deby: Muitas pessoas fazem discursos simplistas para “provar” que não existe machismo no cinema. Mas acho que contra número não há argumentos. Acredito que nós mulheres estamos quebrando isso com muita propriedade. O nosso papel cresceu, mas não o suficiente.
Vocês buscaram contratar mulheres ou a equipe feminina foi algo que simplesmente aconteceu?
Marianna: Simplesmente aconteceu. Convidei as pessoas para integrar a equipe por conta de seus talentos. Jordana Berg é uma das maiores montadoras do país. Era a montadora do [diretor] Eduardo Coutinho. Carolina Benevides também era uma das suas habituais colaboradoras . Temos muitas mulheres talentosíssimas no audiovisual brasileiro. Estamos muito bem representadas.
Como surgiu a ideia de contar a história de João Silva?
Marianna: No início de 2007 a Roberta me procurou na Mariola Filmes para contar sobre o projeto. Ela havia descoberto João através de um pesquisador e estava encantada com a história desse parceiro tão importante de Gonzaga que estava no completo esquecimento. Para minha surpresa, João era o compositor de “Pagode Russo”, uma das minhas músicas favoritas de Gonzaga e que mais marcaram minha infância. De imediato, fiquei fascinada e comovida com a possibilidade de levar o projeto adiante e topei fazer o filme. Depois que conheci o João, me apaixonei ainda mais por ele e sua história, e por sua vontade de contar para o mundo quem ele era. O João tinha um desejo muito grande de ser reconhecido, de voltar para os palcos e reencontrar seu público.
Deby: A Mariana me convidou pra dirigir e marquei um encontro com João e Roberta. Me surpreendi com a personalidade complexa e contraditória dele. Me identifiquei imediatamente e percebi a enorme responsabilidade que tinha ao realizar o filme.
Danado de Bom faz uma ótima definição do João, dizendo que ele é alguém que o Brasil “conhece sem conhecer”. Qual a importância de apresentá-lo propriamente ao público?
Marianna: Queremos dizer que ele está na nossa memória musical, afetiva, no nosso inconsciente coletivo. Crescemos ouvindo e dançando suas músicas enquanto ele permaneceu escondido atrás dos interpretes de suas canções. É um recorte importante para o cinema e para a música nacional valorizar um artista que compôs mais de 3 mil canções ao longo da vida e que sabia como ninguém captar o sentimento do povo sertanejo, transformando em letras belíssimas suas dores, suas alegrias, seu cotidiano.
Deby: João foi um verdadeiro criador de palavras, um artista visionário, mesmo sem perceber isso. Ele não era uma pessoa letrada, o que já é por si só contraditório: que um compositor seja semianalfabeto. Ele aprendeu a ler e escrever o básico com uma tia. E ao longo de sua vida, foi ampliando seu vocabulário lendo placas de cidades, jornais. Quando não achava uma palavra que expressasse seu sentimento, criava uma. Ele era intuitivo e abusava dessa fonte. Percebi aí o quanto era importante contar sua história.
Em vários trechos vocês colocam as letras das músicas na tela, como se fosse um karaokê. Por quê?
Marianna: João é um compositor. Sua genialidade está na sua poesia. Usamos o recurso do videografismo para dar destaque às palavras e ajudar contar a história por esse viés, além de dar ênfase ao vocabulário sertanejo muito particular cultivado por João.
Deby: João criava palavras e senti a necessidade de passar isso para o espectador. A princípio pensei em mostrar as letras usando placas de cidades e letreiros de propaganda, mas vi que muitas das suas palavras não existiam e outras eram colocadas na linguagem do matuto “sertanejivoro”, como ele dizia. Então, junto com a montadora, achamos a melhor maneira.
João deixa clara a importância de se manter ligado ao lugar de onde veio, tanto na linguagem quanto nos temas de suas canções. Você é pernambucana e fez um filme que fala muito sobre a cultura da região. Para você, também é importante manter suas origens como parte do seu cinema?
Deby: Minhas origens são parte de mim. Mas acredito que [para] contar histórias elas não têm de necessariamente serem ligadas à minha origem. Gosto de contar histórias. Já andei por alguns lugares e, se achar algo que me mova, vou escrever sobre ou fazer um filme.
João infelizmente não viu o documentário finalizado. Pelo que conheceram dele, o que pensam que ele teria achado?
Marianna: Fomos muito felizes em poder documentar João contando sua própria história. Apesar de não ter visto o filme pronto, foi importante para ele se sentir reconhecido, homenageado, e usufruir desse sentimento durante as filmagens. Este filme era um desejo dele. Seus filhos e enteados ficaram emocionadíssimos ao verem o pai retratado na tela. Sua esposa também ficou muito orgulhosa. Não me sinto confortável em dizer o que ele teria achado, mas durante todo o processo ele sempre se mostrou muito contente.
Deby: Está sendo muito difícil para mim ter de passar por este momento sem ele. Acredito que ele estaria emocionado. Porque era o que ele queria: ser reconhecido como “artista”. Ele brincava muito comigo sobre isso. Ainda não tenho muita experiência, este é o meu primeiro longa. Mas tenho muito orgulho de ser sobre João.