É apropriado que a primeira exibição de O Novelo, longa-metragem dirigido por Claudia Pinheiro, aconteça no Festival de Cinema de Gramado. De certa forma, foi no evento gaúcho que o filme, uma adaptação da peça homônima de Nanna de Castro, começou a tomar forma – ao menos no que diz respeito ao elenco.
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Em 2017, a diretora estava em Gramado quando viu Nando Cunha vencer o prêmio de ator de curta-metragem e fazer um emocionado discurso pelo fim dos estereótipos raciais no cinema. “Nós atores negros somos mais que atores negros: somos atores comuns”, disse ele. “Podemos fazer qualquer trabalho, Romeu, Hamlet, qualquer coisa. Somos atores, somos artistas.” Na época, Pinheiro estava começando a pensar no elenco de O Novelo, uma história que percorre três décadas para contar a história de cinco irmãos. Na infância, eles foram abandonados pelo pai e tiveram de lidar com a morte precoce da mãe, que fazia tricô para sustentar a família. Muitos anos depois, já adultos, reúnem-se em um hospital para descobrir se um homem em coma é o pai deles.
O elenco da peça, encenada em 2009, era formado por homens brancos. Mas ao conhecer Nando Cunha em Gramado, a diretora e os produtores decidiram oferecer a ele o papel de Mauro, o mais velho dos irmãos. A partir da escalação do ator, a família no centro da narrativa passou a ser negra e formada, no núcleo adulto, também por Rocco Pitanga, Sérgio Menezes, Rogério Brito e Sidney Santiago Kuanza.
A história é dominada por personagens homens. Além da mãe (interpretada por Isabél Zuaa, em participação especial), as outras mulheres do filme são uma namorada e uma ex-mulher, ambas pouco desenvolvidas e sem narrativas próprias. Também autora do roteiro, Nanna de Castro disse ter buscado questionar estereótipos ligados à masculinidade, abordando temas que vão de paternidade à orientação sexual.
Para a equipe, voltar a Gramado com O Novelo na competição de longas nacionais é não apenas uma espécie de fim de ciclo como uma oportunidade de dar visibilidade ao lançamento nos cinemas, previsto para novembro. “É um filme de baixo orçamento que tem uma linguagem simples e pretende falar com um público bem amplo. O reconhecimento do festival ajuda a projetar isso”, disse a roteirista.
Por causa da pandemia, pelo segundo ano consecutivo a transmissão da competitiva nacional de Gramado será no Canal Brasil, com sessões diárias a partir das 21h30 que também terão transmissão simultânea pelos serviços de streaming Canais Globo e Globoplay + Canais ao Vivo. A exibição de O Novelo, marcada para domingo (15), será a primeira dos três longas dirigidos por mulheres na competição. Na terça-feira (17) é a vez de A Primeira Morte de Joana, de Cristiane Oliveira; e na quarta (18), a de Carro Rei, de Renata Pinheiro.
Leia os principais trechos da entrevista com Cláudia Pinheiro e Nanna de Castro:
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Nanna, como o projeto começou e porque você quis contar esta história?
Nanna De Castro: Esta história me foi encomendada por cinco atores que se incomodavam com o modo como os espetáculos [teatrais] viam o universo masculino. Eles diziam que também os homens eram caricaturados, estigmatizados, e que buscavam uma peça com um olhar mais humano sobre o universo masculino. Como tinham visto outra peça minha, me convidaram a escrever. E eu falei: “Mas por que vocês não chamam um homem para escrever isso? Eu naturalmente terei um olhar enviezado” [risos]. Mas aí fizemos uma pesquisa muito bonita. Eles reuniram vários outros homens e pude ouvir todos esses caras falarem de suas relações, suas visões, suas dores. Pesquisei muito e acabei combatendo preconceitos que eu mesma tinha. Ao desenvolver o texto, visualizei os cinco fazendo tricô e achei a imagem poderosa. É uma imagem associada ao feminino, mas que para mim tinha mais a ver com as moiras, com o fio da vida que vai sendo tecido. Quis trazer esse símbolo.
Cláudia, em que momento você chegou ao projeto e o que te atraiu nele?
Cláudia Pinheiro: Quando conheci a Nanna, ela já tinha o roteiro pronto. O que me atraiu foi essa história tão real e tão familiar. É atraente falar sobre a família, porque todo mundo tem família. A conexão com o espectador é imediata: a gente se identifica com os irmãos, com os problemas que todo mundo tem.
Como foi a escolha dos atores?
Cláudia Pinheiro: A Joisi Freire fez a seleção, e foi difícil porque lidamos com os mesmos personagens em três etapas da vida: criança, adolescente e adulto. Começamos pelos adultos, especificamente pelo Nando Cunha, e a partir daí fomos escolhendo os demais atores. Trabalhamos com muitas crianças, algumas que nunca tinham pisado em um set e outras que vinham de passarela e estúdio de fotografia. Foi um desafio construir o elenco e trabalhar com os atores de forma contínua e encontrar características que permanecessem nas diferentes fases. Fizemos esse trabalho também na preparação, realizada pelo Marcio Mehiel.
Houve algum trabalho especificamente voltado para criar intimidade entre os atores?
Cláudia Pinheiro: Fizemos muitos ensaios, vários deles em torno do tricô no caso do elenco adulto. Mas diria que o ensaio principal e fundamental na verdade não foi um ensaio. Durante a pré-produção, quando já estávamos perto de começar as filmagens, me reuni com os atores [que interpretam os irmãos adultos] para uma leitura e uma conversa. Naquele momento, eles compartilharam muitas coisas das vidas pessoais deles, e eu também. Foi um pouco como uma terapia, fundamental para formar esses laços todos.
O elenco da peça era formado por homens brancos, enquanto o do filme é formado por homens negros. Essa mudança foi por acaso ou intencional? Ela significou alguma alteração no texto?
Cláudia Pinheiro: Em 2017 eu e os produtores [Luciano Reck e Diego Freitas] fomos ao Festival de Gramado e o Nando também estava lá. Ele ganhou o prêmio de melhor ator de curta pelo filme Telentrega e fez um discurso sobre como era importante que os atores não fossem vistos pela cor, que isso não viesse já especificado. Naquele momento, estávamos bem no comecinho do projeto, começando a pensar no elenco. E a partir do que ele disse pensamos: “Por que não?”. Alguns filmes têm necessidade de um tipo físico específico, mas no nosso caso se tratava de uma pessoa. É um filme sobre uma família que poderia ser composta por qualquer pessoa. Então quando o Nando topou o convite, partimos dele para escolher os demais atores.
Nanna De Castro: Quando a Cláudia me falou que estava pensando em chamar atores negros e montar uma família negra, fui olhar o roteiro de novo. Num primeiro momento, tive essa preocupação: será preciso adaptar alguma coisa? E não precisei mexer em nada. Nada mudou porque a história é universal: a história da família, das relações, dos afetos. Então a mudança veio da Claudia e dos produtores, simplesmente porque gostaram muito do trabalho do Nando, que era um ator negro. E acho que a pergunta foi apenas essa: por que não?
Gostaria que vocês falassem um pouco sobre Jack, a namorada do irmão mais novo, que sugere que ele é gay e, num determinado momento da trama, se oferece para transar com outro homem. O que vocês buscavam com essa personagem?
Nanna De Castro: Quando você pesquisa o universo masculino, encontra uma diversidade de perfis. O objetivo é olhar essas figuras em perspectiva, colocar uma do lado da outra. Um dos irmãos é gay e não pode ser gay [por causa do preconceito], o outro não é gay mas tem de ser gay porque é sensível. Que estereótipos são esses que a gente empurra? Muitas vezes as mulheres fazem isso também. Não estou querendo defender ninguém nem fazer nenhum ativismo, são histórias que ouvi e devolvi para a tela. Existe essa mulher, existe a mulher que pratica alienação parental e existe a mulher moderna, liberada, que não tem mais amarras e questões. E os caras têm de lidar com isso também, porque antes essa postura da Jack era um privilégio masculino. Acho que são reflexões. Não há como generalizar nada, é só para observar a riqueza de papéis e posturas que homens e mulheres podem ter em uma relação.
A Nanna comentou que, no início, chegou a pensar que um dramaturgo ou roteirista homem deveria escrever essa história. Para vocês, como foi a experiência de serem mulheres em posições-chave de criação num filme sobre o universo masculino?
Nanna De Castro: Fico sempre feliz, tanto no caso da peça quanto do filme, com o fato de que os caras se enxergam, se veem. Fico muito feliz de não me verem, de não verem a autora. Todos os atores vieram me falar sobre como passaram por situações parecidas às do texto. Então minha vivência foi muito legal.
Cláudia Pinheiro: Acho que o filme traz uma aproximação muito grande com o público por dialogar com experiência pessoais de todo mundo. E acho muito legal que sejam duas mulheres falando desse universo, em cima da pesquisa feita pela Nanna e com a ajuda do elenco da peça. Por que as mulheres não podem falar disso também? Vamos mostrar o nosso ponto de vista sobre esse universo.
Saindo um pouco do tema do filme, no mês passado um incêndio destruiu um galpão que abrigava parte do acervo da Cinemateca Brasileira. Como veem este momento da cultura no Brasil e qual a importância de se preservar a memória e o cinema do país?
Nanna De Castro: No Brasil, a preservação da memória cultural é muito desconsiderada, tem pouca importância. Talvez isso esteja associado à nossa autoestima, ao nosso poder enquanto cidadão – o fato de a gente não se lembrar da história, não saber a história, não conservar a história, não amar a nossa história. Quando queima o Museu Nacional do Rio de Janeiro, quando queima a Cinemateca, dói demais. Dói imaginar que essas coisas vão se perder e que, infelizmente, para a população em geral isso ainda tem pouco valor. Trabalhamos muito pouco o valor da nossa cultura, por exemplo com as crianças.
Cláudia Pinheiro: E é justamente esta a importância de se preservar: poder ter essa história para contar. Uma história que tem a ver até com a evolução tecnológica do audiovisual. Por exemplo, na Cinemateca há uma cópia em película do meu primeiro curta. É muito dolorido quando essas coisas vão sendo queimadas.
Que conselho vocês dariam para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
Cláudia Pinheiro: Gente, vai e trabalha. Vai e faz!
Nanna De Castro: Digo o mesmo: coloquem a mão na massa. Não tem nada que segure a gente e o set está cheio de mulheres. Venham que o terreno é nosso e a praia é nossa.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema