Hilda tem mais de 60 anos e, depois de criar dois filhos homens, decide adotar uma menina. Lia, 14, é a jovem indicada para adoção.
A história da relação dessas duas mulheres deu à roteirista Thais Fujinaga o primeiro lugar na edição de estreia do Cabíria, prêmio dedicado a roteiros com personagens relevantes e complexas.
O Filho Plantado foi escolhido entre 165 inscritos e Fujinaga conta com a vitória (mais o prêmio de R$ 10 mil) para seguir no “caminho difícil” de levar o filme – seu primeiro longa – até os cinemas.
Nascida em São Paulo e formada em audiovisual pela ECA-USP, desde 2008 Fujinaga atua como professora de roteiro em cursos organizados pelo Sesc, Secretaria Municipal de Cultura e Academia Internacional de Cinema.
Como roteirista e diretora, lançou curtas como L (2011) e Os Irmãos Mai (2003), que participaram de festivais nacionais e internacionais, incluindo o de Berlim. Fujinaga também assinou o roteiro do longa A Cidade Onde Envelheço, de Marília Rocha.
Mulher no Cinema conversou com ela para saber mais sobre o roteiro premiado e discutir a importância de se ter mais personagens femininas bem desenvolvidas no cinema:
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Conte um pouco sobre O Filho Plantado, ganhador do Cabíria.
O filme é um drama sobre uma mulher de mais de 60 anos que, depois de já ter criado dois filhos homens, decide adotar uma menina, uma adolescente. O roteiro começa com imagens do cotidiano solitário e rarefeito dessa mulher, a Hilda, que está preparando a sua casa pra receber alguém que nós, como espectadores, não sabemos ainda quem é. Até que ela recebe um telefonema de alguém que diz “encontramos sua filha”.
A partir dai, vemos nascer a relação de Hilda e Lia, que tem 14 anos e é a indicada para adoção pelo Juizado da Infância e da Juventude. As duas passam a se relacionar no abrigo onde Lia mora com outras 20 crianças e adolescentes, dentre os quais está Joca, seu irmão mais velho. Quando entramos no espaço do abrigo, passamos a acompanhar também o cotidiano dos irmãos na casa, o forte vínculo de afeto e proteção mútua que os dois mantêm mesmo vivendo em companhia de tantas outras crianças. O drama deles surge com força, confronta e relativiza o drama “desdramatizado” da mulher.
Já na primeira visita de Hilda ao abrigo, Lia apresenta Joca e deixa claro que só aceitará ser adotada junto com o irmão. Hilda nega a proposta e se espanta com a atitude impositiva de Lia. Aos poucos, ficamos sabendo que Joca irá completar 18 anos e terá de deixar o abrigo, mesmo sem ter pra onde ir. A progressão do conflito se apoia nesse triângulo formado por Hilda, que tenta conquistar Lia, e Joca, que tenta conquistar Hilda. Cada um vive o limite entre querer ajudar o outro, mas precisar sobretudo cuidar de si próprio.
Quais são os próximos passos para o filme chegar às telas?
A versão que mandei para o Cabíria estava entre o primeiro e o segundo tratamento. Agora o roteiro já está próximo de uma versão final, pronto pra ser enviado para os editais de produção. É um caminho difícil, mesmo que o cenário tenha melhorado muito nos últimos anos. A cada edição os editais têm mais e mais inscritos e a quantidade de contemplados se mantém a mesma. É um funil apertado, mas vamos tentar! Nesse caminho, estou junto com o produtor Max Eluard, da Avoa Filmes, e com a Luara Oliveira e o Alexandre Taira, que são coprodutores pela Lusco Fusco Filmes.
Acha que a vitória no Cabíria vai ajudar nesse processo?
O Cabíria certamente já está ajudando no processo de viabilizar o filme. Não somente pelo prêmio em dinheiro, mas por dar visibilidade ao projeto. Quando formos inscrevê-lo em editais, essa “carreira prévia” do roteiro fortalece a defesa do filme.
Qual a importância de se ter boas personagens femininas?
Acredito que boas personagens, no geral, nos ajudam a desenvolver empatia pelo outro. Fazem com que compartilhemos uma vivência, uma visão de mundo, um olhar para tudo aquilo que é diferente e, no entanto, pode nos tocar. Quando essas boas personagens são mulheres, o filme vai gerar esse movimento em relação à esse gênero específico. E isso é fundamental porque vivemos em um mundo machista, em que mulheres morrem diariamente simplesmente por serem mulheres. Existe uma disparidade gritante de representação de gênero no audiovisual mundial. Precisamos aumentar e qualificar a presença da mulher nas telas, contar suas histórias, sua dores, sua vitórias. Isso contribui para a construção de uma sociedade mais igual, contribui para combater a visão da mulher como objeto do olhar e ação de um homem e contribui para que as crianças cresçam vendo nas personagens femininas possibilidades de escolhas futuras.
Muitas mulheres que são diretoras e roteiristas dizem que esse é o jeito mais fácil de conseguir trabalhar: escrever seus próprios filmes e não ter de depender de ser contratada numa indústria em que são minoria. Essa foi sua experiência?
No meu caso, eu não escolhi escrever para poder dirigir. A especialização em roteiro veio do gosto por essa forma de escrita, mesmo. Tive o previlégio de ter iniciado minha trajetória como diretora e roteirista na universidade, em um ambiente relativamente aberto à participação da mulher nas funções de direção e roteiro. Talvez por ter estudado junto a um grupo em que a quantidade de graduandos era praticamente a mesma entre mulheres e homens e, principalmente por ter tido a sorte de estar na turma de mulheres talentosas e que se impunham como cabeças de equipe com muita segurança, não percebi logo essa disparidade de gênero presente na nossa área.
Mas, ao olhar a realidade mais ampla do mercado, tanto nacional quanto mundial, é evidente a falta de espaço da mulher nas produções, especialmente nas funções de chefia citadas. Essa desigualdade, acredito, é um reflexo da desigualdade presente em todos os setores da nossa sociedade, em que a mulher ainda é vista como menos capaz que os homens no desempenho de determinadas atividades. Ainda que eu não tenha sofrido de forma direta com o machismo presente na área audiovisual – porque, como eu disse, a minha experiência nasce de uma situação que envolve privilégio e um pouco de sorte -, cada vez mais tomo consciência da importância de discutirmos essas disparidades e acharmos meios de resolvê-las.
Você fez filmes sobre mulheres e homens. Sente-sem mais confortável escrevendo para um dos dois ou não há diferença?
Realizei quatro curtas e apenas um, Os Irmãos Mai, tem protagonistas masculinos. É o único que veio menos de uma vivência pessoal do que da vontade de observar a dinâmica da relação entre dois irmãos imigrantes dos quais me aproximei por conta de um curta anterior, chamado L. O prazer da escrita existiu em igual medida em todos esses trabalhos, inclusive no que tange a construção das personagens. Os Irmãos Mai não tem um trabalho de aprofundamento psicológico das personagens. O filme é sobre o embate entre dois meninos e a cidade de São Paulo, que os repele. Ou seja, o conflito é muito mais exterior que interior.
Já no caso do O Filho Plantado, por ser um longa e por trabalhar o conflito de maneira diferente, todas as personagens precisam ter maior densidade. Entre elas, a que mais sinto facilidade de caracterizar é a Hilda, uma senhora branca de classe média. Com certeza tenho essa facilidade porque essa personagem está mais próxima de mim, tem muito da minha mãe nela, por exemplo. Já a Lia tem um pouco de mim e das minhas irmãs, mas muita coisa tive que buscar em outros lugares. Construir a Lia e o Joca tem sido mais difícil, a verdade dessas personagens nasce de uma mistura muito maior de referências, pesquisa de campo, invenções e até de suposições. Mas tanto no caso da Lia, quanto no caso do Joca, tento essa aproximação me colocando na situação de conflito mesmo, pensando como é viver tendo prazo correndo contra você. Lia tem um prazo pra se tornar atleta profissional, ou seu tempo vai passar. Joca tem um prazo pra achar um lar, ou vai parar na rua. Eu também tenho meus prazos, que são outros, mas geram um mesmo tipo de sentimento em relação a vida.