Laís Bodanzky tem motivos para sorrir: seu quarto longa-metragem, Como Nossos Pais, chega às salas nesta quinta-feira (31) embalado por seis prêmios conquistados no último fim de semana no Festival de Gramado, incluindo filme e direção.
Quando recebeu o Mulher no Cinema para uma entrevista em sua produtora, a Buriti, Laís ainda não tinha sido premiada, mas longas risadas já permeavam a conversa. Para além da simpatia da diretora e da excitação natural do lançamento, a sensação é de que ela sabe do potencial do filme, que estreou no Festival de Berlim, foi vendido para ao menos dez países e está em perfeita sintonia com as discussões sobre a mulher hoje, inclusive no que diz respeito ao audiovisual.
Como Nossos Pais conta a história de Rosa (Maria Ribeiro, premiada em Gramado), que deixou de lado o sonho de ser dramaturga após o nascimento das duas filhas, enquanto o marido seguiu com sua carreira de antropólogo. A partir de uma revelação bombástica feita pela mãe (Clarisse Abujamra, também reconhecida pelo júri do festival), ela começa a questionar diferentes aspectos de sua vida: o casamento, a profissão, a maternidade.
O projeto reflete o desejo de Laís de falar sobre a mulher, alimentado pelo documentário Mulheres Olímpicas (2013), que dirigiu para o canal ESPN, e pelo fortalecimento das discussões sobre a participação feminina no cinema. Dos quatro longas da carreira, este é o primeiro em que a diretora fala sobre a geração dela, depois de focar em jovens em O Bicho de Sete Cabeças (2000) e As Melhores Coisas do Mundo (2010) e em idosos em Chega de Saudade (2007).
Leia os principais trechos da entrevista com Laís Bodanzky:
+
Você é uma cineasta que fala muito bem sobre temas que não têm a ver com a sua vida – adolescência, terceira idade, reabilitação de drogas. Por que, neste momento, escolheu falar do seu próprio universo?
É difícil responder exatamente. Amigos e até jornalistas brincavam: “Você já falou da adolescência e da terceira idade, quando vai falar da sua geração?”. Sempre levei como brincadeira, mas em certo momento me deu vontade de falar da minha geração e do meu ponto de vista. Fiquei com esse desejo de falar sobre o que é ser mulher hoje. Iniciei o projeto há uns quatro anos, um pouco sem saber o que [ia fazer]. Foi antes desse novo movimento feminista, mas acho que eu e tantas outras mulheres talvez já estivéssemos com vontade de falar sobre isso. Acho que já estava no ar, mas não formalizado em discursos, movimentos, atitudes. [Esse interesse] começou lá trás, quando fui convidada para fazer um documentário sobre a memória olímpica para a ESPN. Me deram tema livre e eu disse que queria falar da participação das mulheres nas Olimpíada. Foi uma preparação para o Como Nossos Pais, pois o mundo do esporte é um microcosmo da sociedade. Foi interessantíssimo analisar como no início as mulheres eram proibidas de participar, e hoje as vemos igualando e até passando o número de medalhas [dos homens] em uma velocidade muito rápida. Cem anos parece muito, mas é tempo recente quando falamos da história da humanidade. É difícil mudar hábitos e pensamentos arcaicos, mas [a situação] já começou a mudar e está mudando numa velocidade estrondosa. Vejo na minha própria vida que está muito diferente ser mulher hoje do que há 20 anos, do que há um ano ou do que na semana passada.
Em que sentido?
Está mais gostoso [risos] Porque as mulheres, além de conquistarem espaços para falar, também estão sendo ouvidas. Você falar e ninguém ouvir é de uma opressão…essa opressão invisível da mulher é das coisas mais enlouquecedoras que existem. E o pior é quando acontece entre mulheres. Acho que a diferença, hoje, é que a mulher está muito mais solidária à outra mulher. Por isso está mais gostoso. Por exemplo, estava curtindo o carnaval de São Paulo com duas amigas e chegou um grupo de homens de uma forma um pouquinho agressiva, bem deselegante. A gente estava se saindo super bem, mas um grupo de meninas atrás da gente perguntou: “Está tudo bem? Estão precisando de ajuda?” [risos] Então parece que você tem uma rede de proteção, que você não está sozinha nesse mundão. Só essa sensação já faz com que seja mais fácil sair na rua. Outro exemplo é no trabalho. Dirigi dois episódios da série Psi, da HBO, criada pelo Contardo Calligaris. A diretora da HBO no Brasil me contou que na primeira lista de diretores só havia homens. E ela disse: “Contardo, você que é um homem que discute tanto o papel da mulher na sociedade, não vai colocar uma diretora?” Então ele também estava no automático, reproduzindo um comportamento do qual ele mesmo discorda. E aí chamou a Tata Amaral e eu. Mas foi preciso uma outra mulher observar e tomar uma atitude para mudar essa história.
Isso me leva a uma cena do seu filme, na qual a Rosa diz que gostaria muito que a peça que ela escreveu fosse dirigida por uma mulher. Esta passagem me fez pensar que as discussões sobre a mulher no audiovisual, que tem ganhado muita força, também tiveram certa influência no seu filme. É verdade?
Sim, muito. É um movimento de pensar a mulher na dramaturgia, na direção, que são funções-chaves para apresentar o discurso para a sociedade. Acho muito interessante o movimento das mulheres críticas de cinema [que se reuniram no coletivo Elviras], porque se sempre são os homens que fazem as críticas, que chance a gente tem de ter um novo olhar sobre aquele tema? Não é que o filme tem de falar sempre sobre a mulher, mas só o fato de ter uma mulher escrevendo…
Já é uma outra voz.
Sim. A gente começa a ver que estamos reproduzindo a visão masculina. O movimento do audiovisual foi perguntar: por que não temos mulheres no roteiro e na direção se há tantas mulheres no backstage, secretariando os homens? Por que a gente não está no centro? Onde acontece o funil? E se percebeu que, quando o júri analisa projetos em um edital, só há homens. Agora a Ancine acatou que os jurados sejam metade homens e metade mulheres. [Estas comissões] têm de ser um espelho da sociedade, senão a gente fica patinando. E nesse sentido acho que a grande questão do audiovisual brasileiro já não é nem mais a participação das mulheres. É também. Mas o que chamou mais a atenção nas pesquisas foi que, se há poucas mulheres nessa posições-chaves, as mulheres negras não existem. Se é difícil ser mulher no Brasil, ser mulher negra é impossível. A verdade é essa – e eu, enquanto mulher, nunca tinha percebido isso. Então também estou me colocando, também estou num exercício de conhecer, de assistir os curtas, agora já sei quem é tal diretora e se vai ter um evento, chama [para participar]. Precisa ir acontecendo, e daqui a pouco as mulheres negras estarão no centro do holofote.
Não costumo perguntar às diretoras sobre trabalho e família porque essa questão nunca é feita para homens. Mas é um ponto importante do seu filme, e muitas mulheres do audiovisual se identificarão com a dificuldade da Rosa de seguir na carreira artística tendo duas filhas. Este ano, por exemplo, um abaixo-assinado internacional pediu que o Festival de Cannes ofereça mais apoio às mães. Então queria saber de você: como lidou com essa questão?
De chegar ao quarto longa-metragem sendo mãe…
Isso.
Ah, não é fácil. Não é nada fácil. É algo que acho que vai mudar, e espero que mude, mas de certa forma a mulher acha que tem de ser a supermãe. Ela faz tudo, e mesmo se vai ter babá, é ela quem contrata, quem paga. Você vira uma administradora da empresa do lar, que é uma empresa mesmo, ainda por cima se você tem mais de um filho. Na minha vida não foi assim, mas noto que para os homens o mundo é um hotel cinco estrelas: você chega, abre a geladeira e tem tudo, a roupa está lavada e passada no armário, e se resolve fazer o almoço no fim de semana, nossa, ele é incrível, sensacional. Se vai ao supermercado, nossa, ajudou tanto [risos]. Ainda tem esse movimento de que, quando os homens começam a participar, fica aquele confete. Acho que tem de ter um pouco de confete no sentido de as mulheres dizerem: nós queremos este homem, o legal é quando faz. Mas tudo tem limite: chega uma hora que o que esse homem está fazendo nada mais é do que a obrigação dele. Esse homem incrível e maravilhoso nada mais é do que uma mulher comum. Acho que novas gerações estão crescendo com esse novo conceito de homem. Mas é mudança de hábito. É complexo [risos].
Você é uma referência para muitas diretoras, e uma das razões de eu ter criado o Mulher no Cinema foi por achar importante que as mulheres vejam outras mulheres nessas posições para que elas mesmas possam…
[Interrompe com um aperto de mão] Amooooooooo! [Risos]
[Risos] Mas você, quando começou, tinha referências de diretoras mulheres? Porque os cursos de cinema, por exemplo, muitas vezes nem incluem filmes delas no currículo.
Sempre tive na minha cabeça duas mulheres brasileiras. Uma foi a Suzana Amaral, que esteve no Festival de Berlim [com A Hora da Estrela, de 1985] e isso para mim foi muito importante. Lembro de assistir ao filme em uma sala comercial – amei e nunca me esqueci de que a diretora era mulher. Depois conheci a Suzana e as histórias dela são engraçadíssimas, ela tem não sei quantos filhos e foi fazer cinema depois de eles crescerem. Foi a forma como ela conseguiu. A outra referência era a Tizuka Yamasaki. Eu olhava para ela e pensava: “Que interessante, dá para fazer cinema com essa postura, com essa atitude”. Lembro de que, quando fiz Bicho de Sete Cabeças, houve um encontro de cineastas brasileiras em Paris. Foram várias mulheres e quando a gente entrou no avião, alguém da tripulação reconheceu a Tizuka e foi dizer que adorava o trabalho dela. Fiquei olhando aquilo e pensei: “Nossa, que legal uma cineasta mulher sendo reconhecida assim, num lugar tão do cotidiano, que não é na área do cinema”. Lembro que gostei de ver isso, sabe? E me lembro de ela contar histórias de que estava no set de filmagem logo após ter filho, que estava com ele no colo, dando mamá e falando “ação”. Quando fiz o Bicho contei para uma amiga que estava programando rodar grávida. Ela tinha acabado de ter filho e me disse: “Não faça isso de jeito nenhum”. Porque a gente acha que gravidez é simples, mas não é. Ela disse que eu não ia ter cabeça para dirigir, que não ia aguentar o set, que ia estar exausta. E eu disse: “tá bom, não vou fazer” [risos] E não fiz. Minha primeira filha nasceu em 2002, ou seja, fiz o lançamento e engravidei. E quando encontrei minha amiga, agradeci [o conselho].
Para você foi melhor ter suas duas filhas nos intervalos entre os filmes?
Foi. Porque [durante a filmagem] fico com o emocional a flor da pele, emagreço…imagina fazer ultrassom, ir ao médico, comprar roupinha, fazer jejum para saber se a sua taxa de açúcar está ok [risos] Nesse sentido somos diferentes. Quando pedimos igualdade de gênero, é igualdade respeitando as diferenças. É óbvio que um homem vai carregar essa cadeira com mais facilidade do que eu. Os marcos do corpo, a passagem do tempo…a sensação é diferente para a mulher e para o homem. Talvez por isso a mulher muitas vezes tenha uma visão macro, uma compreensão geral maior do que a do homem que vive um dia após outro dia e não tem ciclos tão marcados. Não sei, não estudei tanto para dizer, só sei que é diferente. Mas nem por isso não podemos ter o mesmo espaço, os mesmos direitos, os mesmos reconhecimentos, as mesmas divisões de tarefas. A conta sempre ficou para a mulher. Essa é a grande mudança [que precisa ocorrer].
Que conselho você daria para as mulheres que querem ser diretoras?
O mesmo que dou para os homens [risos] Às vezes fico pensando em como nunca me passou pela cabeça que não poderia dirigir porque sou mulher. Simplesmente fui fazendo, não parei para pensar, não foi uma questão para mim. Acho que às vezes, no cinema, a gente se bloqueia [pensando]: “Ah, não me acho capaz”, “ah, vou fazer faculdade de Administração ou Publicidade para depois fazer cinema”. Você quer fazer cinema? Corta caminho: vai fazer cinema. Você quer ser diretor ou diretora? Então você tem de ter um discurso: quem é você? Sobre o que você quer falar? Que histórias você quer contar? E faça. Mesmo que seja com um celular – exercite a narrativa, ponha a mão na massa. Muitas vezes sinto que as pessoas ficam na teoria, no quero aprender para depois fazer. E se aprende pesquisando e estudando, mas também se aprende muito fazendo. Então não tenha medo. Não tenha medo de errar e de fazer. Mas faça bem feito: não queira fazer um filme Cinemascope com um celular. Se é celular, entenda a plataforma. E mais importante do que a plataforma ou o equipamento, é o discurso. A grande dica, para mim, é: o que você tem a dizer para o mundo? E diga!
Veja o trailer de Como Nossos Pais:
Foto do topo: Laís Bodanzky no Festival de Gramado – Diego Vara/Pressphoto