A cineasta Cristiane Oliveira tem demonstrado talento para contar histórias sobre jovens mulheres em momentos de transformação. Depois de estrear na direção de longas com Mulher do Pai, ela agora lança A Primeira Morte de Joana, filme premiado no Festival de Gramado que chega nesta quinta-feira (4) aos cinemas.
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No centro da história está Joana (Letícia Kacperski), uma garota de 13 anos que vive em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul e acaba de perder a tia-avó, de quem era muito próxima. Intrigada pelo fato de a tia nunca ter namorado ninguém, e vivendo ela mesma o despertar sexual, Joana se lança em uma espécie de investigação ao lado da melhor amiga, Carolina (Isabela Bressane). Neste processo, aprende mais sobre os valores da comunidade onde vive, e também sobre sua mãe, Lara (Joana Vieira), e sua avó, Norma (Lisa Gertum Becker).
Ao contar essa história, escrita em parceria com a atriz e roteirista Sílvia Lourenço, Cristiane mostra os reflexos de uma sociedade conservadora e patriarcal nas relações das próprias mulheres. Explora, ainda, a complexidade dos laços familiares, também eles afetados por opressões e preconceitos. “A família é uma estrutura na qual frequentemente o conceito de cuidado se choca com o conceito de autonomia”, afirmou a diretora, em entrevista ao Mulher no Cinema. “O que seria proteção às vezes pode ser violência.”
Cristiane é uma diretora especialmente atenta à ambientação de seus filmes, nos quais a geografia gaúcha sempre funciona um pouco como personagem. Se em A Mulher do Pai ela escolheu a Vila de São Sebastião como set de filmagem, em A Primeira Morte de Joana a fictícia cidade de Lagoa dos Ventos reúne paisagens de Santo Antônio da Patrulha e principalmente de Osório, município a cerca de uma hora de Porto Alegre. Ali estão o imponente Morro da Borússia, dezenas de lagoas e um parque eólico que, no filme, está em processo de construção e em diálogo com as transformações da protagonista.
O Mulher no Cinema visitou o set de A Primeira Morte de Joana em dezembro de 2018, durante os últimos dias de filmagens em Osório. Na ocasião, o forte calor e os ruídos da estrada representavam desafios extras para a equipe formada por várias outras mulheres, incluindo a produtora Aletéia Selonk, as produtoras executivas Graziella Ferst e Gina O’Donnell, a diretora de arte Adriana Nascimento Borba, a montadora Tula Anagnostopoulos, a maquiadora Nancy Marignac e as figurinistas Isadora Fantin e Mariane Collovini.
Abaixo, leia os principais trechos da entrevista com Cristiane Oliveira, realizada em agosto de 2021, quando A Primeira Morte de Joana fez sua estreia nacional no Festival de Gramado:
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Este filme é muito marcado pelo lugar onde está ambientado. Foi a locação que te levou à história de Joana ou a história de Joana que te fez filmar naquela locação?
Primeiro veio a personagem da tia, inspirada numa pessoa que conheci: uma senhora de 70 anos, que era super ativa, ligada às artes e a diversos grupos sociais, e que faleceu aos 70 anos sem nunca ter tido um relacionamento amoroso. Isto me instigou e me deu a vontade de escrever uma história sobre coragem. O falecimento dela se deu no período em que essa região foi transformada pela chegada do parque eólico. Aos poucos fui vendo a paisagem ser pontuada por pontos brancos no horizonte, primeiro bem distante da estrada e depois cada vez mais perto, e toda a geografia ser remodelada e reconstruída. Já era uma paisagem que me afetava, porque aquele morro impõe muito respeito e contrasta com a extensão de água – mais de vinte lagoas que estão conectadas. Mas foi depois de achar a história que trouxe o cenário para ela, em especial depois de pesquisar sobre a região e reconhecer elementos da colonização alemã, que tinha tudo a ver com o filme.
Também é um filme no qual há poucos personagens masculinos, mas no qual a presença do conservadorismo e do patriarcado é constante. Fale um pouco sobre a decisão de abordar a repressão das mulheres a partir das próprias personagens mulheres.
A construção da família do filme traz os reflexos do patriarcado em nós, mas influenciado por outras opressões: o racismo, o classismo, os preconceitos relacionados à orientação sexual – tudo isso vai se cruzando na nossa formação desde cedo. Estas questões sempre se colocavam ao meu redor e me incomodavam muito. Achei na história da Joana uma forma de mergulhar nesses aspectos, de me conectar com pessoas que pesquisam sobre isso e de ver como essas opressões andam juntas e se alteram, dependendo de como se conectam. A Silvia [Lourenço, corroteirista do filme] e eu pensamos muito em como não criar novos preconceitos ao abordar preconceitos, mostrando que essas combinações são complexas e não estão relacionadas a uma determinada faixa etária ou religião. É interessante poder mergulhar em cada indivíduo e ver como isso se dá em cada um.
Por que a decisão de ambientar o filme em 2007?
Foi o ano em que se concluiu grande parte da construção da eólica, e no filme se fala justamente da inauguração. Mas na verdade não se trata de um filme realista nem mesmo no que diz respeito à geografia. O que se vê no filme tem mais a ver com o meu imaginário do que era aquele local quando a construção começou, pois hoje já há outras estradas e tudo foi remodelado. Então deslocamos um pouco da referência realista para criar uma fábula, mas mantendo conexões com a transformação daquela época. Era um momento em que vivíamos uma série de avanços nas questões ligadas aos direitos humanos, em especial nas que tocavam em gênero e orientação sexual, o que foi me motivando a desenvolver o projeto. Para mim era importante marcar o momento de esperança que se vivia, não só por causa da questão geográfica.
Quando visitei o set do filme, me lembro de a equipe do som ter vários desafios por causa do vento forte e do barulho da estrada logo em frente à casa que serve de locação principal. Como vocês resolveram essas questões? Foi preciso dublar diálogos posteriormente?
Usamos alguns acessórios para proteger os microfones do vento e também tivemos o apoio da equipe de figurino. O Raul [Locatelli, responsável pelo som direto] pediu para que as atrizes usassem um top esportivo por baixo dos figurinos, para que o microfone lapela ficasse ali dentro e já tivesse essa proteção extra e o vento não batesse diretamente. Além disso, depois que filmávamos uma cena, íamos com as atrizes para um local com menos ruído para gravar o som de um jeito mais próximo. Dessa forma tínhamos o som mais limpo para usar na finalização, mas ainda com a intensidade da cena, com as atrizes ainda “quentes”. Esse áudio gravado no set nos salvou bastante, então não foi preciso dublar nada. E aí na pós-produção toda a ambiência da cena é sempre reconstruída, misturando sons que o Raul e o Hudson [Vasconcellos, também responsável pelo som direto] captaram no set com efeitos criados em estúdio.
Quando entrevistei Raul no set, ele disse que não havia outra opção além de filmar naquela casa ao pé do morro e perto da estrada. Que casa era aquela e por que era a locação perfeita?
Encontramos a casa durante a pesquisa de locação e fizemos uma parceria com os donos para poder filmar lá. O morro é quase um personagem do filme, e a casa ao pé do morro nos dava mais possibilidade de contar isso. Se não tivéssemos aquela casa, o morro apareceria em uma inserção ou outra, como paisagem. Mas naquela casa não, a gente já tem a Joana mergulhada naquele ambiente, não só visual como sonoro também. E o mais legal é que a casa tinha a vista para a lagoa também, então as duas entidades do filme estão ali.
O filme é centrado numa família de origem alemã, mas em determinado momento a umbanda também se torna parte da narrativa. Por que quis incorporar esse elemento?
A religião influencia nossa formação, sobretudo nas questões ligadas à gênero e orientação sexual. Porém, também me interessava mostrar que mesmo dentro das religiões isso não é determinante, e que já existem movimentos de renovação dentro de todas elas. O sincretismo religioso é algo muito presente em mim. Quando era adolescente tive uma experiência na umbanda que me marcou demais, assim como a criação cristã me marcou demais. As questões religiosas estão ao redor dos brasileiros, fazem parte da nossa história. No filme, há uma contraposição entre elas. A umbanda é uma religião mais ligada à terra e aos movimentos da natureza, que traz para a Joana a força ligada ao momento de transformação. Ao mesmo tempo, ela tem a religião católica dentro da escola e a luterana dentro da família. De alguma forma, essas influências aparecem na trajetória dela.
Como foi o trabalho com as atrizes Letícia Kacperski e Isabela Bressane?
Na primeira abordagem, não entreguei o roteiro para elas. Tivemos uma conversa sobre as situações [do filme] e sugeri que elas fossem tomando nota em um caderno, como se estivessem contando por escrito a história que a gente ia fazer junto. Fui perguntando sobre como falariam em cada uma das situações e reescrevendo os diálogos junto com elas. Isso facilitou a assimilação: quando chegaram no set, aquelas palavras já eram delas. Não era um texto a ser decorado, era algo que tinham construído junto comigo desde o início. É claro que quando elas não citavam algo que era importante narrativamente, eu dava uma forcinha e a gente via se cabia ou não, se elas falariam de forma diferente ou não. Depois dessa revisão que fizemos juntas, formatei o roteiro final e entreguei a elas e a toda a equipe. Aí começou um jogo entre todos os atores num laboratório de convivência que montamos junto com a atriz Vanise Carneiro. Ela tem um trabalho muito bacana de preparação, que foi importante para criar nas meninas um clima de família e construir essa intimidade e essas relações.
Em A Mulher do Pai você também trabalhou com uma atriz jovem e com pouca experiência no cinema. Foi coincidência ou há algo que te atrai especificamente nestes atores iniciantes?
Nos dois filmes a seleção de elenco estava completamente aberta a receber pessoas inexperientes ou experientes. No caso do Joana, contamos com a produção de elenco da atriz Nadya Mendes e vimos cerca de 60 meninas, algumas só por foto, outras por vídeo e depois ao vivo. Fomos formando duplas para que eu pudesse conversar com elas e achar a dupla do filme. Tanto a Letícia quanto a Isabela tinham alguma experiência no teatro e queriam muito ser atrizes. Mas acho que o fato de ter uma atriz na seleção de elenco, uma atriz comigo no roteiro e uma atriz na preparação do elenco ajudou a chegar nesse resultado.
Seus dois longas acompanham um momento de transformação na vida de uma menina que passa, em parte, por questionar a estrutura familiar na qual estão inseridas. São famílias bem diferentes: em A Mulher do Pai, a menina é quem cuida do adulto, enquanto em A Primeira Morte de Joana a mãe cuida até demais da menina. O que te atrai nesse tema da família?
A família é uma estrutura na qual frequentemente o conceito de cuidado se choca com o conceito de autonomia, no qual o que seria proteção às vezes pode ser uma violência. Me interessa muito investigar os limites desses sentimentos. Você citou a mãe que é muito rígida, e por outro lado a gente percebe a responsabilidade que ela tem de manter a família e de como a imagem da família na comunidade é importante para ela. Ela não tem apenas uma preocupação quanto ao que acontece com a filha, mas também quanto a como o que acontece com a filha pode afetar o negócio dela. Minha intenção foi lidar com essa confusão de conceitos que envolvem o relacionamento familiar, o carinho genuíno e todas as influências opressoras e preconceitos diversos que interferem nisso. Acho a família um núcleo interessante para analisar isso porque as pessoas são sempre muito diferentes entre si, mas têm a prerrogativa de entrar na intimidade um do outro. Na sociedade em geral você pode estabelecer algum tipo de limite, mas na família, não. Você já tem a prerrogativa de entrar na intimidade dos outros, e me interessa muito investigar, nos filmes, o que se dá na intimidade.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema
Foto do topo: Gustavo Galvão