Sucesso de bilheteria, prêmios internacionais, pré-indicação ao Oscar, convite para integrar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Um ano depois da estreia de Que Horas Ela Volta?, uma coisa é certa: tanto no Brasil quanto no mundo, hoje muito mais gente conhece Anna Muylaert.
Há quase três décadas trabalhando com cinema, a diretora sabe que nada aconteceu de repente. Mas também está ciente de que o último ano não foi qualquer coisa, e que é a alta a expectativa do público em relação a seu novo longa, Mãe Só Há Uma, filmado antes do furacão Que Horas Ela Volta?, mas lançado no mês passado.
“Tive de lidar com essa expectativa e o que tenho feito é justamente falar sobre ela”, disse a cineasta, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Tenho consciência de que são [filmes] muito diferentes.”
De fato, há muitas diferenças, a começar pelo custo da produção: Mãe Só Há Uma foi produzido com R$ 1,5 milhão, um terço do orçamento do filme anterior. No elenco, sai a consagrada Regina Casé e entra o novato Naomi Nero. E sem o mesmo apelo comercial, o longa deixa a diretora mais livre para experimentar.
A história é centrada em Pierre, adolescente que vai morar com a família biológica após descobrir ter sido sequestrado na maternidade – uma trama livremente inspirada no caso Pedrinho, que foi notícia em 2002. O filme, porém, propõe um debate sobre sexualidade e identidade conforme Pierre beija meninas e meninos, experimenta vestidos e começa a descobrir quem é.
Na entrevista a seguir, Muylaert fala sobre o novo filme, o impacto de Que Horas Ela Volta? em sua carreira e como o sucesso a tornou mais consciente em relação à desigualdade de gênero no cinema: “Foi quando entendi que, nesse mercado patriarcal, a mulher pode trabalhar bem, mas de antemão é vista como café com leite.”
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O sequestro na maternidade está na sinopse do filme, mas é mais o pano de fundo do que o centro da narrativa. Como você chegou à discussão da sexualidade a partir do caso Pedrinho?
Sim, o sequestro é um começo para a história. Queria falar sobre formação de identidade, sobre como alguém que perde todos os seus parâmetros e relações afetivas consegue seguir adiante. Depois que o roteiro estava pronto, entrei em contato com essa geração não binária e achei que colocar isso no filme era uma forma de aprofundar a discussão da identidade – e da dificuldade para se estabelecer essa identidade – e também de deixar o personagem mais contemporâneo [e] não um adolescente genérico.
Foi a primeira vez que você fez um longa filmado com câmera na mão. Como foi?
Acho a câmera da [diretora de fotografia] Bárbara Alvarez maravilhosa. E acho que essa filme precisava mesmo ser mais sensual, filmar menos o espaço e mais o corpo dos atores. Queria pisar fora da zona de conforto.
Quais as vantagens e desvantagens de filmar com um orçamento menor?
As vantagens são conseguir o dinheiro mais rápido, ter uma equipe menor e mais jovem e ter liberdade para experimentar coisas sob o aspecto formal – como narrativa lacunar, câmera na mão e também elenco desconhecido. As desvantagens foram poucas: senti apenas no final. Se houvesse mais dinheiro poderíamos ter feito uma finalização mais cara e ter mais dinheiro no lançamento.
Hoje, dizer que um filme é dirigido por Anna Muylaert significa algo para muito mais gente do que há um ano. Como tem sido ver o reconhecimento do seu trabalho crescer tanto?
Tem sido uma grande realização, claro. Tenho uma carreira de quase 30 anos, acho que ela é solida o suficiente para que esse sucesso não seja prejudicial para mim daqui pra frente.
Como lidar com a expectativa do público? É difícil já lançar outro filme, ainda mais se tratando de uma produção menos comercial?
Sim, tive de lidar com essa expectativa e o que tenho feito é justamente falar sobre ela. Mãe Só Há Uma fala sobre o problema em ter expectativas e também é uma quebra de expectativa. Mas como tenho consciência de que são [dois filmes] muito diferentes, acho que sei o que esperar de cada um deles – e, na verdade, as reações têm sido muito boas.
Que Horas Ela Volta? foi lançado no momento em que a discussão sobre a mulher no cinema começou a ganhar força no Brasil. O episódio no Recife, do qual você foi figura central, foi marcante e pautou boa parte do debate. Pessoalmente, você já tinha inquietações sobre a desigualdade de gênero no cinema ou também passou a dar mais atenção para o assunto recentemente, conforme se viu dentro da discussão?
Na realidade a discussão me interessou porque depois do sucesso do Que Horas Ela Volta? sofri muitos boicotes e rasteiras machistas. Foi quando entendi que, nesse mercado patriarcal, a mulher pode trabalhar bem, mas de antemão é vista como café com leite. Senti que a mulher tem o direito de ter até um certo nível de sucesso – a partir dali, se torna incômoda. Sofri algum tempo calada, antes de explodir o debate. E nesse sentido o episódio do Recife acabou sendo importante, embora por si mesmo não tenha sido nada demais. Foi muito importante para mim começar a falar.
Você foi convidada a entrar para a Academia do Oscar e ajudar a mudar a cara do grupo. Qual sua expectativa para a função de votante? Sente-se na obrigação de votar em mulheres e minorias ou livre para avaliar todos os candidatos da mesma forma?
Me sinto bem. Acho que a Academia foi inteligente em se abrir para mudanças após as severas críticas do ano passado. Espero que continue se preocupando com a representatividade tanto da mulher quanto dos negros, para que os filmes escolhidos espelhem essa representatividade. Acho que na hora de votar certamente votarei pelos filmes, mas na dúvida, claro, votarei em mulher.
Que conselho você daria às mulheres que querem ser diretoras?
O cinema é um ramo que demora muitos anos até dar frutos. É preciso arar muito tempo, então é preciso ter paixão, persistência e paciência. Alem disso, acho que vale se proteger do machismo procurando parceiras mulheres que não a surpreenderão com eventuais e inesperados boicotes – especialmente no que diz respeito a créditos. É preciso combinar bem as coisas antes, senão a mulher abre a guarda para ser abusada.
O que você pode contar sobre o documentário sobre o afastamento da presidente Dilma Rousseff, no qual está trabalhando atualmente?
Estamos eu, [a diretora] Lô Politi e [o diretor] César Charlone filmando esse período do afastamento da presidenta de dentro do Palácio do Alvorada. Estamos filmando como as ações do governo interino afetam a residência da presidenta, seus companheiros e assessores.
Tendo sido uma das principais artistas contra o impeachment, como vê a situação atual? Acredita no fim do afastamento?
Não sei dizer. Antes do impeachment se efetivar eu tinha uma forte confiança de que, diante das manifestações populares, o golpe não se concretizaria. Mas agora não sei. Acho que houve já uma acomodação. Por outro lado, se Dilma conseguir virar alguns poucos votos, ela consegue voltar. Vamos aguardar.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema