Pelo título brasileiro, Bergman – 100 anos pode parecer um documentário um tanto quanto óbvio, criado sob medida para a comemoração do centenário de nascimento do diretor sueco Ingmar Bergman (1918-2007). Mas o filme de Jane Magnusson se distancia do formato convencional ao eleger o ano de 1957 como fio condutor e ao abordar tanto a genialidade quanto as características nada admiráveis de um dos maiores cineastas da história.
Foi em 1957 que Bergman, então com 39 anos, lançou duas de suas maiores obras-primas, O Sétimo Selo e Morangos Silvestres, além de dirigir seu primeiro filme para a televisão e quatro peças de teatro, incluindo uma montagem de cinco horas de Peer Gynt, de Henrik Ibsen (1828-1906). Na vida pessoal, sofria de úlcera, tinha seis filhos aos quais dava pouca atenção (ele ainda teria mais três) e estava casado com a escritora Gun Grut (1916-1971), mas se relacionando com outras mulheres, um comportamento que repetiu várias vezes e em vários casamentos (foram cinco no total).
Magnusson, que também é diretora de Trespassing Bergman (2013), não fica estritamente presa aos acontecimentos de 1957 (como o título em inglês, A Year in the Life, ou um ano em uma vida, parece sugerir). O filme, ao contrário, aborda diferentes momentos da trajetória do diretor, mas sempre busca remontá-los ao recorte escolhido. Na tese de Magnusson, 1957 foi crucial na vida e obra de Bergman por ditar o ritmo e a qualidade de produção que definiriam a carreira do artista. Neste sentido, o melhor título é o sueco: Ett Ar, Ett Liv, ou “um ano, uma vida”. Com este foco e idas e vindas narrativas, a diretora evita um formato excessivamente linear ou uma abordagem genérica demais da história de Bergman.
A cineasta também rejeita a tentação de só ficar no elogio ao gênio. Ela recupera, por exemplo, um trecho nunca publicado da autobiografia de Bergman na qual relata grave episódio de agressão à namorada Karin Lannby; informações sobre a simpatia do diretor pelo nazismo, que só teria deixado de apoiar em 1946; e relatos de comportamento abusivo que aumentou conforme ele acumulou poder sem limites no meio artístico da Suécia. Não há acusação de assédio contra Bergman e a maior parte das histórias são contadas em tom de anedota (a da briga com o ator Thorsten Flinck é uma notável exceção), mas os tempos de #MeToo e as discussões sobre maus-tratos no set pairam sobre todo o filme.
Por fim, o documentário acerta ao explorar a figura misteriosa do cineasta e mostrar como seus próprios relatos são duvidosos. O filme exibe, pela primeira vez, uma entrevista concedida nos anos 1980 (e nunca exibida por interferência de Bergman) na qual seu irmão mais velho afirma que fora ele a vítima dos ataques violentos do pai – e não Ingmar, como este contara várias vezes. Outro momento mostra a atriz Bibi Andersson oferecendo versão radicalmente diferente da contada pelo diretor sobre sua experiência com a terapia. Confiar em Bergman, sugere Magnusson, é pouco recomendável: “Só há um lugar onde é possível encontrá-lo: seus filmes.”
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“Bergman – 100 Anos”
[Bergman – Ett ar, Ett Liv, Suécia/Noruega, 2018]
Direção: Jane Magnusson
Duração: 117 minutos
Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema.