O mundo precisa de uma nova versão de As Panteras? Esta pergunta se apresentou logo no momento em que um reboot moderno da franquia foi anunciado, e segue valendo agora que o longa-metragem, escrito e dirigido por Elizabeth Banks, chegou aos cinemas brasileiros.
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Do ponto de vista comercial, é fácil entender a volta de As Panteras. Por um lado, um filme de ação centrado em mulheres tem o potencial de atender à forte demanda por maior protagonismo feminino nas telas. Por outro, trata-se de um blockbuster baseado em material que teve sucesso no passado (a série dos anos 1970 e os longas lançados em 2000 e 2003) e já é conhecido do público, requisito fundamental em uma indústria obcecada por não correr riscos (como muito bem escreveu Martin Scorsese).
Ao mesmo tempo, alguns cuidados se apresentavam como essenciais para que o reboot dialogasse com os novos tempos. Uma cena em que uma personagem dança pela casa de calcinha e camiseta sem motivo algum, como a do filme lançado em 2000, não cairia bem no momento em que discussões sobre o male gaze e a sexualização dos corpos femininos nas telas estão não apenas nas universidades, mas também nas redes sociais. Nesse sentido, repaginar As Panteras apresentava um desafio: tanto a série quanto os filmes deixam clara a competência das agentes, mas também utilizam sua beleza e sensualidade como parte da premissa.
Tal desafio ficou a cargo de Banks, atriz e diretora bastante envolvida nas discussões sobre a mulher no cinema e que estourou nas bilheterias com seu primeiro longa-metragem, A Escolha Perfeita 2 (2015). Em As Panteras, ela voltou a escalar atrizes jovens e de diferentes origens – Kristen Stewart, Ella Balinska e Naomi Scott – e adotou uma série de medidas para dar tom mais feminista à franquia. Por exemplo: o personagem de Bosley, que até então era um indivíduo (homem) que orientava (chefiava) as Panteras, tornou-se uma espécie de patente. “É mais ou menos a mesma coisa que tenente”, explica Banks, que interpreta uma de várias e vários Bosleys que aparecem no filme. Até a voz masculina de Charlie, o dono da agência secreta, é colocada em xeque para que o foco na igualdade de gênero ganhe mais força.
Banks, aliás, não é nada tímida na hora de passar a mensagem. “Acho que as mulheres podem fazer o que quiser” é literalmente a primeira frase do filme, que ao longo de 118 minutos também inclui uma montagem de garotas pelo mundo e uma subtrama na qual as Panteras ajudam uma ativista pelos direitos das mulheres, fornecendo itens como pílulas anticoncepcionais e absorventes. Além disso, há a sugestão de que uma das Panteras é lésbica ou bissexual e, salvo por um breve flerte entre uma das agentes e um cientista, os interesses românticos são deixados de lado para que a amizade entre as protagonistas seja a principal história de amor.
E qual a trama, afinal de contas? No novo As Panteras, Sabina (Stewart) e Jane (Balinska) são apenas duas de muitas profissionais contratadas pela agência de Charlie Townsend, que agora tem atuação internacional. As duas não se bicam muito (Sabina é piadista, Jane é séria), mas trabalham juntas para impedir que uma nova tecnologia caia nas mãos erradas e seja usada para o mal. Trata-se de uma espécie de Google Home ou Alexa capaz de resolver todos os problemas energéticos do mundo, mas com um defeito de fabricação que também causa explosões e mortes (o filme não se preocupa muito em explicar, então vamos em frente).
Uma das responsáveis pela criação do aparelho é Elena (Scott), que faz tudo o que pode para sensibilizar seus superiores quanto ao perigo de lançá-lo no mercado. Sem sucesso, ela busca a ajuda da agência Townsend, torna-se alvo de um assassino e passa a ser protegida por Sabina e Jane. Completa-se, então, o trio de Panteras, e tem início a missão que envolve muitas viagens, muitas cenas de perseguição e combate, muitas trocas de roupa e também algumas reviravoltas (nenhuma delas muito convincente).
Pela descrição acima já se percebe que o roteiro segue a linha de qualquer outra produção hollywoodiana. O cenário internacional, por exemplo, me remeteu a MIB: Homens de Preto – Internacional e a Homem Aranha – Longe de Casa, apenas para citar filmes que chegaram aos cinemas em 2019. A cena em que alguém recomenda que uma das Panteras não se esqueça de sorrir me lembrou Capitã Marvel, outro filme deste ano, enquanto a sequência na qual tentam roubar o tal Google Home assassino parece sair de Oito Mulheres e um Segredo (2018), assim como os closets de roupas e gadgets. A própria personagem de Naomi Scott, uma expert em tecnologia que vira espiã quase por acaso, me pareceu um misto da personagem de Tessa Thompson no novo MIB com as de Kate McKinnon e Mila Kunis em Meu Ex é um Espião (2018).
Reclamar da falta de originalidade narrativa e estética de Hollywood é chover no molhado. Mas o fato de o novo As Panteras ter me feito lembrar de tantos outros filmes recentes é um sinal de que também o chamado “empoderamento feminino” é vítima da padronização e da eliminação do risco que rege a maior indústria de cinema do mundo. Na ânsia de pegar carona (e ganhar dinheiro) na genuína demanda por representatividade e igualdade de gênero, o cinema comercial americano está disposto a fazer mudanças superficiais, mas não a de fato pensar em histórias protagonizadas por mulheres que tragam algo de novo, que sejam únicas e ao mesmo tempo universais, que tenham personalidade e envolvam personagens que vão além de tipos ou do que se convencionou chamar de “mulheres fortes”.
Em que pesem as claras boas intenções de Banks, As Panteras sofre do mesmo problema. Escalou-se uma atriz negra para o trio principal, Bosley virou Bosleys, saíram as danças de calcinha e os pares românticos, entraram os discursos e imagens inspiracionais óbvias. Mas o que de fato há de novo no novo As Panteras? Em última instância, ainda é um filme hollywoodiano genérico e sem personalidade no qual três mulheres lindas combatem o crime impecavelmente vestidas e maquiadas. Há, inclusive, um momento em que uma das Panteras está impecavelmente vestida e maquiada mesmo enquanto é mantida em cativeiro! As outras duas chegam para resgatá-la, mas antes vão para a pista de dança com seus microvestidos brilhantes.
Vejam, ver estrelas em roupas glamurosas é tão divertido para mim quanto para qualquer outra pessoa. Mas fico pensando se novidade, novidade mesmo, não seria criar Panteras menos confinadas aos irreais padrões de beleza que Hollywood ajuda a construir. Se novidade, novidade mesmo, não seria investir tempo, dinheiro e energia em um bom roteiro, ao invés de usar girl power como suposto diferencial para entregar mais do mesmo.
Pode-se argumentar que aí não seriam As Panteras, que a diversão da franquia está justamente na fórmula leve e na ideia de que uma mulher pode quebrar o braço de um bandido e ainda assim ser linda e feminina. Mas então volto à pergunta inicial: precisamos desse tipo de história? Ou, em outras palavras: é nela que devemos investir? É ela que vai realmente mudar o jogo? Que um filme como As Panteras seja considerado um avanço na representação feminina no cinema só mostra o quão baixo é o ponto de partida.
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“As Panteras”
[Charlie’s Angels, EUA, 2019]
Direção: Elizabeth Banks
Elenco: Kristen Stewart, Ella Balinska, Naomi Scott
Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema