A Suíça marcou forte presença na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo: dono de uma seção especial, o país esteve representado por mais de 40 filmes e cerca de 25 diretores e produtores que vieram ao Brasil especialmente para o festival. À frente desta delegação estava Catherine Ann Berger, diretora da Swiss Films, a agência de cinema suíça, que fez uma balanço positivo da experiência – e não apenas do ponto de vista profissional.
“Me senti muito inspirada por São Paulo, uma cidade visionária, aberta, moderna, com uma arquitetura incrível”, afirmou, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Acho que é importante para nós, europeus, olhar tudo isso e falar: ‘uau, pense grande, siga sua visão’. Voltarei para casa com um novo ânimo paulistano“, completou, usando a palavra em português.
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Ampliar o foco do cinema suíço para além da Europa tem sido uma das principais ações de Berger desde que assumiu a direção da Swiss Films, em 2013. Em parte, trata-se de uma tentativa de compensar a suspensão das negociações para a entrada da Suíça no Creative Europe, fundo europeu para produção e distribuição de filmes. Tal suspensão aconteceu em 2014 e foi consequência de um referendo popular suíço que definiu limites para a imigração e violou o princípio de livre movimentação de pessoas pregado por outros acordos da União Europeia.
Berger e sua equipe tiveram de pensar em outras formas de ajudar os filmes suíços a circular, incluindo a aproximação com países latino-americanos e o investimento no video on demand. Na entrevista ao Mulher no Cinema, a diretora da Swiss Films também se mostrou interessada em modelos de produção que buscam alternativas ao financiamento público e em questões relacionadas à igualdade de gênero. Tal debate tem ganhado força na Suíça, onde mulheres representam cerca de 34% dos roteiristas e diretores, proporção que está acima da média da Europa, mas abaixo das registradas na Noruega, na Suécia e na França. Entre as iniciativas recentes estão a adoção da igualdade de gênero como critério do regulamento oficial de financiamento cinematográfico do Ministério da Cultura, e a criação da Swiss Women’s Audiovisual Network, conhecida como Swan, uma associação de profissionais que tem mais de 1,2 mil integrantes em seu grupo no Facebook.
Na entrevista a seguir, Berger fala sobre o trabalho à frente da Swiss Films, as possibilidade de colaboração com o Brasil, o escândalo Harvey Weinstein e a importância de mulheres assumirem posições de chefia como a dela: “Precisamos de mulheres em todas as posições, não só atrás das câmeras, mas também nas instituições.”
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A Suíça teve grande destaque na Mostra deste ano. Como foi a experiência?
Foi fantástica. Tivemos mais de 40 filmes [na programação] e cerca de 25 diretores e produtores vieram para São Paulo, uma delegação bastante grande. Foi uma ótima experiência primeiro por causa dos debates após as sessões, que são importantes para os diretores entrarem em contato com a plateia e saberem como os brasileiros veem seus filmes. Além disso, visitamos produtoras e locais de filmagem para entender como a indústria brasileira funciona, e como equilibra com [produções para] o cinema, a televisão e a publicidade. Nossa indústria é bem menor, mas é bom ter uma ideia de como as empresas trabalham em outras partes do mundo. Nosso sistema é muito baseado no financiamento público e, pelo que me disseram, vocês têm bastante subsídios por aqui. Mas as produtoras têm um lado mais comercial também.
Você vê possibilidades de coprodução entre países tão distantes e culturalmente diferentes?
No ano passado fizemos um programa como este [da Mostra] em Guadalajara, que resultou em um acordo de coprodução entre a Suíça e o México. Este acordo prevê coprodução com terceiros, então o Brasil poderia entrar por esta via. Não é evidente que podemos trabalhar juntos, no entanto, dois documentários suíços que estão na Mostra tiveram filmagens aqui, o Favela Olímpica e o Eu Sou a Gentrificação: Memórias de Um Canalha. Nessas visitas que fizemos por São Paulo, percebi que muitos cineastas se sentiram inspirados pela cidade e pela arquitetura. Eventos [como o Foco Suíça da Mostra] têm o lado da indústria: a troca, o trabalho, as ideias. Mas também há uma parte importante que é a da inspiração, a coisa de apenas seguir o fluxo e ver o que acontece daqui dois ou três anos.
Desde que você assumiu a direção da Swiss Films, em 2013, quais têm sido seus principais desafios e objetivos?
Uma votação suíça sobre imigração que aconteceu em 2014 teve um efeito enorme sobre nós, infelizmente. O resultado desta votação foi ficarmos de fora da Creative Europe, um fundo europeu para distribuição, produção, programas educacionais e de outros tipos também. Isso nos afetou muito. Criamos outro programa para compensar essa perda, então parte dos fundos que teriam ido para o Creative Europe foram separados para acesso direto dos suíços. Mas continuamos sem fazer parte desta comunidade europeia mais ampla.
E fazer parte dela ajuda o filme a circular pela Europa.
Sim, a viajar. Tivemos de encontrar ideias criativas para compensar. Uma das coisas que fizemos foi tentar pensar mais nos lugares fora da Europa. Por isso fomos a Guadalajara e por isso estamos na Mostra. Também criamos um apoio a distribuidores não europeus e para o video on demand. Sabemos que nem todos os filmes poderão ser vistos no cinema, mas podemos ajudá-los a serem vistos em plataformas de VOD pelo mundo.
Quais as iniciativas da Suíça no que diz respeito à igualdade de gênero no cinema?
O Ministério da Cultura começou uma iniciativa segundo a qual, se dois roteiros submetidos [em um edital de financiamento] têm igual qualidade, deve-se dar preferência ao que é de uma mulher. Um estudo mostrou que neste momento em que os primeiros tratamentos são submetidos, a proporção de homens e mulheres é igual. Entre os que conseguem apoio para desenvolver o roteiro, a diferença aumenta; e entre os que de fato são produzidos, aumenta mais ainda. E não sabemos exatamente porque isso acontece: se começa metade-metade, porque termina tão desigual? Além disso, os salários das mulheres são menores do que os dos homens, mesmo que muitos filmes de diretoras tenham feito sucesso nas bilheterias. Então esta nova iniciativa federal quer coletar mais dados e melhorar a questão do financiamento, deixando claro para as comissões [de avaliação] que precisamos de mais diretoras, roteiristas e produtoras contando suas histórias. Nos últimos anos temos tido muitas diretoras mulheres se destacando, e vai ser interessante acompanhá-las.
Em seu perfil no Twitter você tem compartilhado muitos textos sobre o caso Harvey Weinstein, que escancarou o assédio no cinema. Na sua opinião, o que pode ser feito para que de fato exista uma mudança na indústria, ou seja, para impedir que esse debate enfraqueça e nada aconteça?
Não acho que isso vai acontecer. Não dá para saber, mas vejo como uma avalanche: o debate começou no cinema, já está acontecendo no teatro e na política, e acho que o próximo setor será o das finanças. Já consigo ver, até nos meus próprios círculos, que as mulheres têm falado mais abertamente sobre suas experiências e dividindo-as com outras mulheres. Este passo é muito importante porque significa vencer a vergonha. Aquele sentimento de “talvez eu não tenha agido certo, talvez eu devesse ter feito isso ou aquilo”. É importante vencer esse sentimento e perceber que muitas mulheres passaram pelo mesmo. É preciso reconhecer as histórias individuais, mas também os padrões. O que também teremos de discutir é o papel dos agentes, inclusive mulheres. É outro padrão: “Estou ganhando dinheiro com essa atriz, então vou mandá-la para esse teste, sei que algo pode acontecer, mas precisamos que ela pegue esse trabalho para crescer na carreira e minha empresa existir”. Teremos que falar sobre isso, sobre nosso próprio papel em manter as coisas dessa forma. Acho que precisamos de um código de conduta. O trabalho nesta área pede que os artistas expressem seus sentimentos e há muitas histórias íntimas, mas assim que alguém sai daquele papel, precisa saber que está em um ambiente seguro e de respeito. E precisamos que muito mais homens se manifestem, dizendo que viram, que não falaram nada e que não acham certo. Acho que vamos ver isso no próximo Oscar. A Academia é só a ponta do iceberg, mas terá de tomar uma posição clara. E acho que o próximo Oscar vai ser muito diferente e mostrar que algo aconteceu.
Em que sentido? De expulsar outros acusados de assédio e abuso sexual?
Sim.
Você acha que um outro passo importante é ter mais mulheres em posições como a sua?
Com certeza. É claro, é claro. Precisamos de empoderamento, precisamos de mulheres em todas as posições – não só por trás das câmeras, não só como diretoras, mas também nas instituições. Veja o que a Renata [de Almeida, diretora da Mostra] tem feito. Fiquei muito impressionada. Tenho grande respeito pelo trabalho duro que ela faz – e que faz com graça e humanidade. Sem dúvida precisamos de mais mulheres nessas posições.
Que conselho você daria para mulheres que querem trabalhar no audiovisual?
Primeiro, consiga o máximo de experiência possível. Tente muitas coisas, porque assim descobrirá o que tem a ver com você e quais são seus pontos fortes. Em segundo lugar, mantenha-se fiel a si mesma. Temos um certo instinto, sabemos quando nosso coração está batendo, o que nos deixa confortável, o que nos inspira, os lugares e equipes que nos permitem crescer e expandir nossa visão. E finalmente: se não der certo, não é o fim do mundo. Se você achar que está sendo muito difícil ou por qualquer outra razão…há dezenas de razões: você não encontra uma porta, não acha a posição certa, algo acontece na sua família e você decide que precisa de um salário fixo. Não é o fim do mundo – e pode ser que você se encontre no cinema de novo quando tiver 60 anos. Olhe para a Agnès Varda e como ela não é convencional. Uma diretora que está na nossa delegação, a Alice Schmidt, tem pouco mais de 60 anos e está na Mostra com seu segundo longa-metragem, A Garota do Lago Änzie. É tão inspirador perceber que você pode pegar uma câmera aos 70 anos e fazer algo que toca muita gente. Então são três conselhos: experimente muito e seja fiel a você mesma, mas não fique arrasada se não der certo.
Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema.
Foto do topo: Mario Miranda Filho/agenciafoto.com.br