Realizada por mulheres, ‘P-Valley’ quer mostrar strippers sob nova perspectiva

Quando a série P-Valley fizer sua estreia mundial neste domingo (12), a americana Katori Hall poderá comemorar a concretização de um trabalho de dez anos. Criadora, roteirista, produtora e showrunner do programa, exibido no Brasil pela plataforma Starzplay, Hall buscou retratar o universo dos clubes de striptease a partir de uma ótica pouco explorada pelo cinema e a televisão: a das mulheres.

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A série de oito episódios (liberados aos domingos pelo Starzplay) se relaciona com a juventude de Hall em Memphis, no estado americano do Tennessee, onde clubes de striptease abrigavam comemorações, aniversários e chá de bebês. Anos mais tarde, já adulta, uma aula de pole dancing lhe mostrou que o trabalho das dançarinas era mais difícil do que parecia. Interessada em escrever sobre elas, Hall começou uma pesquisa que levou seis anos e incluiu entrevistas com mais 40 mulheres em dezenas de clubes no sul dos Estados Unidos.

O primeiro fruto desse trabalho foi a peça Pussy Valley, que estreou em 2015 e teve boas críticas, mas foi considerada longa demais pela própria Hall. Uma série de televisão pareceu um caminho natural para explorar melhor as múltiplas histórias e personagens, e em 2016 ela começou a trabalhar na adaptação para a emissora americana Starz. Após quatro anos de desenvolvimento, P-Valley chega às telas para dialogar com produções como Harlots (2017-2019), série sobre um bordel do século 18 criada por Alison Newman e Moira Buffini, e As Golpistas, filme de Lorene Scafaria inspirado na história real de um grupo de strippers em Nova York. Em todas as obras, mulheres ocupam posições criativas-chave e o protagonismo é das dançarinas que historicamente serviram como pano de fundo para histórias sobre homens e contadas por homens.

“A imagem típica é a do Tony Soprano [personagem da série Família Soprano] em um clube, olhando para uma mulher cujo rosto está fora de quadro”, disse Katori Hall, em entrevista por telefone ao Mulher no Cinema e a outros veículos de Brasil e Espanha. “Imagens assim estavam a serviço da história do homem, então queria inverter o ponto de vista: mostrar o olhar das mulheres, o lado que foi pouco e mal representado.”

Imagem da série “P-Valley”, criada por Katori Hall, exibida pela Starzplay

Segundo Katori, acertar o tom era tão fundamental que ela e seu time de sete roteiristas recomeçaram a escrita mais de uma vez. Esta foi uma das razões para P-Valley ter levado quatro anos para estrear – a outra foi o longo processo de escolha do elenco, que levou quase oito meses e é majoritariamente formado por artistas negros. 

A ação se concentra no Pynk, um clube de Chucalissa, cidade fictícia localizada no Delta do Mississippi. A casa é comandada por Uncle Clifford (Nicco Annan, que também assumiu o papel no teatro), pessoa não-binária que usa pronomes femininos, e a principal atração é a dançarina Mercedes (Brandee Evans). No momento em que Mercedes se prepara para deixar o Pynk e abrir uma academia, uma novata chega ao clube: a misteriosa Autumn Night (Elarica Johnson), que usa identidade falsa para fugir de um passado traumático.

Definida pela criadora como “um noir no Delta”, P-Valley transita entre o drama e o suspense e opta por uma estética de videoclipe que mescla cenas noturnas e as cores neon do Pynk com locações externas de Atlanta, onde grande parte das filmagens foi feita. Há muitos personagens e tramas envolvendo, por exemplo, as dificuldades financeiras do clube, as negociações secretas para instalar um cassino na cidade, as agressões domésticas sofrida por uma das dançarinas e os conflitos de Mercedes com a mãe, uma pastora que rejeita a profissão da filha, mas não tem pudor em gastar o dinheiro que ela ganha.

Para Hall, mostrar a vida das mulheres fora do palco era fundamental para humanizá-las. A julgar pelos quatro primeiros episódios, P-Valley encara o Pynk e os clubes de striptease em geral como espaços que podem tanto explorar quanto libertar as mulheres. A nudez é frequente e as cenas íntimas também, mas o pole dancing é por vezes tratado como esporte e as dançarinas, como atletas que treinam duro.

Ao Mulher no Cinema, Hall afirmou que não queria reproduzir imagens hipersexualizadas de mulheres negras, frequentes no cinema e na televisão. “Como eu mesma sou uma mulher negra, fui inundada por estas imagens, principalmente nos clipes de hip hop”, disse. “Ao mesmo tempo, queria honrar o fato de que a indústria do desejo existe, e que as mulheres que participam dela – seja por escolha própria ou porque foram forçadas a isso – têm histórias que merecem ser contadas. Pensei que havia uma maneira de representar essa perspectiva de forma respeitosa e com bom gosto, que não ficasse presa a estereótipos.”

A criadora e showrunner Katori Hall com a diretora Kimberly Peirce no set de “P-Valley”

“Queria honrar o fato de que a indústria do desejo existe, e que as mulheres que participam dela – seja por escolha própria ou porque foram forçadas a isso – têm histórias que merecem ser contadas. Pensei que havia uma maneira de representar essa perspectiva de forma respeitosa e com bom gosto, que não ficasse presa a estereótipos e imagens hipersexualizadas.”
– Katori Hall, showrunner


Uma das decisões que ela tomou foi contratar apenas cineastas mulheres, a começar pela canadense Karena Evans, conhecida por videoclipes do rapper Drake, que estabeleceu o estilo visual e narrativo de P-Valley na direção do episódio de estreia. Além dela, foram contratadas Kimberly Peirce (Meninos Não Choram), Millicent Shelton (da série Black-ish), Tamra Davis (Billy Madison: Um Herdeiro Bobalhão), Geeta V. Patel (Meet the Patels), Tasha Smith (When Love Kilss: The Falicia Blakely Story), Sydney Freeland (Deidra e Laney Assaltam um Trem) e Barbara Brown (da série Scream Queens).

Quatro dos oito episódios tiveram Nancy Schreiber na direção de fotografia (nos outros quatro, o cargo foi de Richard J. Vialet) e, segundo Hall, foi estabelecido uma espécie de “código de conduta” para definir como o universo de P-Valley deveria ser “articulado visualmente”. “Da posição ao movimento da câmera, buscamos não focar demais em nenhuma parte do corpo das mulheres, e sim na experiência delas”, afirmou, destacando a frequência de closes no rosto que buscam “colocar o espectador na cabeça da personagem”.

Também por telefone, a atriz Brandee Evans afirmou ao Mulher no Cinema que as sequências íntimas foram coreografadas e que o elenco pôde contar com coordenadores de intimidade, profissionais que supervisionam cenas de nudez e sexo e que ganharam espaço em Hollywood após o caso Harvey Weinstein. Além disso, ela disse ter tido liberdade para estabelecer o que lhe deixava desconfortável. “Houve muita conversa não só durante as filmagens, mas também durante os ensaios e até mesmo antes de os ensaios começarem. Em determinado momento falei: ‘Pessoal, juro que estou bem. Fiquem tranquilos que aviso se houver problema.'”

Enquanto muitas atrizes veteranas tiveram poucas oportunidades de trabalhar com cineastas mulheres, Evans colaborou com oito diretoras diferentes já no primeiro projeto de destaque. “Nem sei como vou fazer quando estiver em um set só com homens”, brincou. “Ter mulheres na direção me deixou confortável para ser mais autêntica e correr mais riscos. Não tinha medo de nada porque sabia que elas estavam lá para me ajudar.”

Brandee Evans como Mercedes em cena da série “P-Valley”

“Quando li o roteiro, era como se estivesse ouvindo Memphis, minha casa, um amigo, um parente. O pessoal está animado em ver um trailer com atores que se parecem com eles, uma cidade que se parece com a deles. Muitas representações do sul dos Estados Unidos no cinema e na TV não são autênticas, e estou feliz que pessoas no Brasil e no mundo inteiro possam ver o que é o sul de verdade.”
– Brandee Evans, atriz


Também nascida em Memphis, Evans trocou a carreira de professora de inglês para ser dançarina e coreógrafa, uma experiência que lhe permitiu fazer a maior parte de suas cenas em P-Valley. Criadora de uma série de aulas intituladas Hip Hop in Heels (ou hip hop de salto alto), na qual encorajava mulheres a ganhar confiança a partir da dança, a atriz têm outras semelhanças com sua personagem: é filha de pastor e teve o que definiu como “relacionamento tóxico” com a mãe durante a juventude.

Para ela, o principal atrativo do roteiro foi a linguagem – o modo como os diálogos de P-Valley usam gírias e registros orais tipicamente sulistas. “Enquanto lia o texto, era como se estivesse ouvindo Memphis, ouvindo minha casa, um amigo, um parente”, afirmou a atriz, que mora em Los Angeles, mas irá à cidade natal para assistir à estreia. “O pessoal está super animado porque está vendo um trailer com atores que se parecem com eles, uma cidade que se parece com a deles. Muitas representações do sul no cinema e na TV não são autênticas, e estou feliz que pessoas no Brasil e no mundo inteiro possam ver o que é o sul de verdade.”

A região é elemento central na obra de Hall, que definiu a si mesma como “alguém que escreve mais sobre lugar do que sobre raça”. “Estou sempre focada no sul, que é um lugar muito mal compreendido”, afirmou. “Mas é claro que a história do sul é a história dos Estados Unidos, ou seja, é a história da escravidão. Estou escrevendo sobre um lugar, mas acabo escrevendo sobre raça porque há um problema histórico de racismo que ainda estamos tentando desmantelar, algo que ficou claro nos recentes protestos que tomaram o país e o mundo.”

P-Valley não tem a violência policial como tema principal, mas dialoga com as discussões que se seguiram ao assassinato de George Floyd pela polícia de Minneapolis em maio. Ao contar as histórias que giram em torno do Pynk, a série toca em temas como racismo, colorismo e o modo como desigualdades raciais, sociais e econômicas estão relacionadas. “No momento em que tanta gente no mundo está tentando se educar, acho que P-Valley pode somar ao debate”, disse a intérprete de Mercedes. “Espero que a série ajude as pessoas a pararem de julgar o livro pela capa e a se conhecerem melhor.”


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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