Não é difícil entender porque Variety, o segundo longa-metragem da cineasta americana Bette Gordon, tornou-se um marco do cinema feminista quando chegou às telas, em 1983. Ao contar a história de Christine, funcionária de uma sala pornô que passa a seguir e observar um cliente de forma obsessiva, o filme ofereceu algo inovador: o ponto de vista de uma mulher sobre pornografia, sexualidade e voyeurismo.
Mais difícil é entender como, trinta anos depois, Variety continua inovador. Se nesse período a indústria pornográfica mudou radicalmente, passando das salas para a internet, o mesmo não pode ser dito sobre o cinema no que diz respeito à igualdade de gênero. Filmes que oferecem a perspectiva feminina sobre sexo continuam raros, principalmente os feitos por mulheres. E os obstáculos no caminho das diretoras não são muito diferentes dos que Gordon enfrentou décadas atrás.
“Temos mais consciência de que as mulheres querem aumentar sua participação, mas não acho que os números realmente mudaram”, disse a diretora, em entrevista ao Mulher no Cinema. Para ela, a situação é “abominável”, sobretudo no que diz respeito à direção. “[A profissão] é vista como tão dominada por homens e tão tecnológica que as mulheres foram barradas.”
Gordon concedeu a entrevista durante a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, da qual foi jurada e tema de uma miniretrospectiva, com a exibição de três de seus filmes – além de Variety, Handsome Harry (2009) e O Afogamento (2016). Ser convidada para a comemoração dos 40 anos do festival foi, segundo ela, “fantástico”. “É muito importante ir a outros lugares, entender outras culturas, levar algo para a minha experiência e trazer algo para os brasileiros.”
Ainda que não seja conhecida pelo grande público no Brasil, Gordon é um importante nome do cinema independente americano, famosa pela exploração de temas como violência, poder e, é claro, sexualidade. Aos 66 anos, sua obra faz parte da coleção permanente do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), do Centro George Pompidou, em Paris, e do Instituto Britânico de Cinema, em Londres, entre outras instituições.
Na entrevista a seguir, Gordon fala sobre Variety, seu trabalho como professora da Universidade de Columbia, em Nova York, e a “assustadora” percepção de que o equilíbrio de gênero da sala de aula não se mantém no mercado. “Por que o mundo está tão atrasado?”, questionou. “Como podemos estar tão atrasados quando precisamos alcançar a ideia de que raça e gênero não podem ser obstáculos?”
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Variety foi um filme inovador ao explorar a sexualidade e o voyeurismo sob a perspectiva da mulher. Trinta anos depois, essa perspectiva ainda é bastante rara. Como você vê o filme hoje? Fizemos progresso na sociedade e nas telas?
Essa pergunta é tão difícil! Acho que as questões que me interessaram em Variety ainda me interessam. A questão do desejo e do prazer para a mulher não costuma ser discutida nos filmes, então ainda podemos explorá-la. Meu segundo longa, Luminous Motion (1998), é sobre uma mulher e seu filho, que vivem na estrada, meio como Bonnie e Clyde. Ele quer ficar com ela para sempre, mas eventualmente aquilo tem de acabar. [A história] é sobre sexualidade e maternidade, porque tinha me tornado mãe e começado a fazer perguntas: que tipo de vida sexual uma mãe pode ter? A mãe é julgada de forma diferente do pai? E [o tema está presente] até em Handsome Harry (2009), no qual não observo mulheres diretamente. Estava observando homens, mas pelos meus olhos, buscando uma fisicalidade que escondia um lado interno mais emocional. Acho que pude ver o que talvez um diretor homem não pudesse ver. Então certamente as questões de gênero, sexualidade e desejo continuarão me intrigando. Nunca podemos exaurir um assunto. Há tantas formas de continuarmos falando sobre as coisas. Sempre temos mais trabalho a fazer.
Do lançamento de Variety para cá, a pornografia migrou das salas de cinema para os sites na internet. Essa mudança foi libertadora para as mulheres de alguma forma?
Não sei. Acho que a internet é opressiva para todas as pessoas. É uma ótima ferramenta se você precisa encontrar informações ou se conectar a pessoas de países diferentes. Mas também é muito opressiva, porque cria uma identidade falsa, permite anonimato para que as pessoam digam coisas cruéis e [espalhem] discurso de ódio. Por outro lado, quando explorei a pornografia estava interessada não apenas na pornografia, mas no mecanismo da imagem, em como a imagem cinematográfica apresentava o feminino. E no olhar, no real significado do voyeurismo e do observar. Essa exploração ainda existe, não importa se você vê a imagem no computador, no cinema ou em um anúncio. A questão de para quem nós olhamos, com que olhos, de que modo a cultura estruturou o modo como entendemos a posição das mulheres na representação. Ainda é interessante pensar sobre a representação da sexualidade em todas as formas, em qualquer forma.
As mulheres ainda são minoria por trás das câmeras, particularmente como diretoras. De quando você começou, nos anos 1970, até agora, as cineastas enfrentam mais desafios ou menos?
[Pausa] Acho que estamos mais cientes. Temos mais consciência de que as mulheres querem aumentar sua participação. Mas não acho que os números realmente mudaram, ao menos não nos Estados Unidos. Por exemplo, dos 250 filmes com maior bilheteria, 1% ou 2% são dirigidos por mulheres [o percentual chegou a 9% na pesquisa mais recente, mas o fato de o índice ser igual ao de 1998 indica pouco avanço]. É pior do que [os índices registrados] nos negócios, é pior do que na política. É abominável. A direção é vista como tão dominada por homens e tão tecnológica que as mulheres foram barradas. Na televisão elas estão começando a entrar mais, talvez porque há tantos episódios nas séries. Nos Estados Unidos, estamos tentando dizer: se são 13 episódios, podemos ter mais de um terço, podemos ter metade [com direção feminina]? Talvez as oportunidades apareçam porque há muita necessidade de conteúdo. Não vejo progresso, mas imagino que possivelmente no futuro teremos uma maior representação de mulheres em frente e por trás [das câmeras], em todas as áreas do cinema. No futuro, espero que tenhamos. Mas, nesse momento, não vejo isso acontecer.
Seu filme mais recente, O Afogamento, foi financiado com a ajuda de uma campanha de financiamento coletivo no site Kickstarter. Acha que o crowdfunding é uma boa ferramenta para o cinema independente?
Na verdade, não arrecadei dinheiro para financiar todo o filme. Já tinha o dinheiro, mas o Kickstarter me ajudou no período de dois meses entre a pré-produção e o dia em que a quantia estaria no banco. Foi uma ótima ferramenta para pedir que as pessoas me ajudassem a chegar ao primeiro dia [de trabalho]. Mas também devo dizer que minha filha trabalha no Kickstarter. Ela ajuda as pessoas a entender qual a melhor forma de usar o crowdsourcing, não apenas no caso de um filme mas de qualquer ideia, de qualquer coisa que seja criativa. É sobre criatividade e é muito importante.
Você também é professora na Universidade de Columbia. Pode contar um pouco sobre suas aulas e sobre o tipo de conhecimento que procura dividir com seus alunos?
Em Columbia temos um programa para alunos que já cursaram a universidade. Eles podem ter estudado administração, psicologia, artes e agora estão comprometidos com essa coisa chamada cinema. Não há muito trabalho por aí, então quando alguém decide ser, por exemplo, diretor, precisa entender que não existe um caminho. Você nunca sabe, é uma aposta. Mas eu ensino direção. Ensino os alunos a pensarem na visualização, no modo como podem transformar em imagem o que está no papel, no que significa ser um pensador visual e em como traduzimos a psicologia do personagem que está na palavra no comportamento que está na tela. Não é algo óbvio. As pessoas estão tão acostumadas a ler que não pensam em imagens. Pensamos em palavras. Quando éramos crianças e não tínhamos linguagem, usávamos nossa imaginação para ver. Mas como a linguagem tornou-se o modo pelo qual nos comunicamos, temos que nos treinar novamente para aprender a ver a imagem – a entender o quadro, o que está no quadro, o que não está e como a composição pode te ajudar a criar significado. Não são só os atores, as atuações e o roteiro, é o meio visual do cinema. Entender essa linguagem pode levar muito tempo. Fazer isso bem, pode levar uma vida inteira, não apenas um ou dois filmes. Então é isso que ensino.
Há algo que possa ser feito nas universidades para melhorar a igualdade de gênero no cinema?
Veja, 50% dos nossos alunos são mulheres e alguns dos nossos melhores filmes são feitos por mulheres. Nos nossos festivais, buscamos ter uma representação igual entre diretores homens e mulheres. Então é assustador que, no momento em que [os estudantes] deixam a universidade, isso não se traduza para o mundo. O mundo precisa acompanhar pensadores inovadores como nós e outras pessoas. Por que o mundo está tão atrasado? Por que os Estados Unidos estão tão atrás de outros países que já foram liderados por mulheres? Como podemos estar tão atrasados quando precisamos alcançar a ideia de que raça e gênero não podem ser obstáculos? Espero que isso aconteça, mas muitas vezes me preocupo. Às vezes olho ao redor e penso que estamos indo para trás, e não avançando.
Que conselho você daria para as mulheres que querem ser diretoras?
Tenacidade – nunca desistam. Clareza – sejam claras, muito claras em relação ao que querem fazer. E sempre continuem olhando em frente. Não se preocupem com o que está acontecendo à sua direita, não se preocupem com o que está acontecendo à sua esquerda, não julguem a si mesmas pelo que as outras pessoas estão fazendo. Mantenham-se verdadeiras em relação à ideia que vocês têm e à paixão pela ideia. Se conseguirem se imaginar fazendo, vão chegar lá.
* Foto do topo: Claudio Pedroso/Agência Foto
* Agradecimento: Juliana Deodoro