“O Peso do Passado” é clichê policial com mulher protagonista

O rosto quase irreconhecível da atriz Nicole Kidman foi a imagem mais usada na divulgação mundial de O Peso do Passado, filme que estreia nesta quinta-feira (17) nos cinemas brasileiros e é o primeiro longa-metragem da diretora Karyn Kusama desde o intrigante The Invitation (2015).

É este rosto, também, que dá início ao filme e nos apresenta à personagem Erin Bell, uma investigadora da polícia de Los Angeles que parece ter cometido todo tipo de abuso contra si mesma e a própria saúde. Exagerou no álcool ou no cigarro (ou nos dois, ou em outras drogas), passou noites em claro, não adotou nenhum tipo de hábito saudável nem deu a mínima importância para isso.

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Quando a encontramos pela primeira vez, Erin deixa seu carro claramente debilitada e se dirige à cena de um assassinato sem ser convidada pelos outros policiais. A vítima, um homem não identificado, tem uma tatuagem no pescoço e notas de dinheiro manchadas de tinta roxa, elementos que remetem a Silas (Toby Kebbell), criminoso com quem Erin se envolveu há muitos anos.

A partir daí, entende-se que as marcas do rosto de Erin são principalmente de culpa e trauma, o tal peso do passado do título em português (o original, em inglês, é Destroyer, ou destruidora). Acompanhada de Chris (Sebastian Stan), um agente do FBI, ela se infiltrou na gangue de Silas e participou de um assalto que terminou em tragédia. Encontrar e prender o bandido, portanto, é fazer um acerto de contas.

Erin é uma personagem raramente interpretada por mulheres no cinema comercial americano, não apenas pela profissão e por fugir ao padrão de beleza imposto às atrizes, mas principalmente pela falta de simpatia, ou likability, o termo em inglês muito usado não apenas para falar de mulheres fictícias como também reais. Apontou-se, por exemplo, que Hillary Clinton seria unlikable demais para se eleger presidente dos Estados Unidos, e o mesmo se faz agora com Elizabeth Warren, pré-candidata democrata ao mesmo posto.

Livrar a protagonista da pressão de ser simpática aos olhos do público é um ponto interessante do filme: Erin nunca sorri, lida mal com as pessoas, não tenta convencer ninguém de suas próprias qualidades e, conforme a narrativa avança, distancia-se cada vez mais de qualquer imagem convencional ou unidimensional de heroísmo. Mas entregar um papel tradicionalmente masculino a uma mulher não basta para garantir novidade à trama, e embora tenhamos visto poucas personagens como Erin, certamente já vimos inúmeros filmes como (e melhores do que) O Peso do Passado – só os estrelados por Clint Eastwood, por exemplo, já dariam uma lista.

Isso faz com muitas cenas e subtramas tenham gosto de repetição, sobretudo as que envolvem a filha adolescente de Erin. Negligenciada pela mãe, ela começa a enveredar pelos caminhos de sempre (rebeldia, namorados mais velhos, identidade falsa, bares suspeitos), assim como o próprio filme. Algumas marcas de estilo de Kusama, que funcionaram bem nos trabalhos mais ligados ao terror, aqui parecem pretensiosos e fora de lugar – um copo de café visto de cima, um skate que sobe ao ar e volta ao chão em câmera lenta. 

Também falta ritmo ao filme, sobretudo por causa das escolhas do roteiro escrito por Phil Hay (marido de Kusama) e Matt Manfredi. Não contente em remeter ao passado nos reencontros do presente, o filme é permeado por cenas de flashbacks que começam pontuais, mas tomam conta da narrativa justamente quando ela começa a esquentar. Após boas cenas de ação, Erin finalmente chega à alguém que pode levá-la até Silas – mas o presente é suspenso para que o filme conte (e mostre) a preparação e a realização do roubo de anos atrás. De certa forma, é como se os roteiristas e a diretora não soubessem ao certo qual história contar: a do acerto de contas com o passado ou a do próprio passado. Como não se decidem, nenhuma das duas é contada como deveria, e a trama se arrasta até a costumeira solução-reviravolta (que, aliás, se sustenta bastante mal).

Kidman, por sua vez, se mostra muito comprometida e entregue ao papel. Atuando em absolutamente todas as cenas, ela consegue convencer em um papel difícil. Mas é de se pensar se o visual criado pelo maquiador Bill Corso ajuda ou atrapalha a atriz. Popular em Hollywood, esse tipo de caracterização busca apagar os traços de celebridade e transformar o ator em outra “pessoa”, mas por vezes acaba fazendo o contrário: nos convidando a procurar o que sobrou do rosto conhecido por baixo do disfarce. Alguns espectadores verão apenas Erin, mas outros verão Nicole Kidman de maquiagem, e acreditarão menos ao invés de acreditar mais.

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Este filme passa no teste de Bechdel-Wallace. Clique para saber mais.“O Peso do Passado”
[Destroyer, EUA, 2018]
Direção: Karyn Kusama
Elenco: Nicole Kidman, Sebastian Stan, Tatiana Maslany.
Duração: 121 minutos


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema

 

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