“Dizem que todos os pervertidos sexuais têm mau caráter. Dizem, eu sei. Você acredita? Acredito sim. No aspecto físico ela era uma adolescente sem espinhas. E ele? Espere, quero falar mais dela. Muito bem, espinhas então. Isso não é tudo. Quando ela me falava de sexo, debaixo da figueira, eu começava a rir inevitavelmente. Que coisa saberia do sexo aquela adolescente limpinha?”.
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Este é um trecho de O Unicórnio, primeira ficção escrita pela paulista Hilda Hilst (1930-2004), publicada no livro Fluxo-floema (lançado em 1970 e republicado em 2003 pela editora Globo). O diretor e roteirista Eduardo Nunes, de Sudoeste (2011), transformou essa obra e a novela Matamoros [Da Fantasia], que está em Tu Não Te Moves de Ti (1980), também de Hilda, no longa-metragem Unicórnio, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (16). No lugar de uma adaptação cinematográfica tradicional, Nunes optou por fazer uma homenagem extremamente poética.
Isto porque, segundo o próprio cineasta afirmou em entrevistas, não é possível transpor Hilda Hilst para as telas do modo clássico. Ao invés disso, Unicórnio oferece uma série de experiências sensoriais envolvendo a descoberta da sexualidade da mulher com a natureza, o que acaba tendo maior impacto com a belíssima fotografia do filme, feita por Mauro Pinheiro Jr. As sensações são bem desenvolvidas desde a cena inicial, de uma romã sendo aberta em uma analogia da menstruação, àquelas em que o corpo dialoga com a água e com a terra úmida. Há de se destacar também o trabalho das produtoras Fernanda Reznik e Izabella Faya e a escolha do cenário idílico de Teresópolis, no Rio de Janeiro.
Unicórnio se passa em dois tempos diferentes, porém não claramente simultâneos: um deles é ambientado em uma espécie de hospício, no qual a jovem Maria (Barbara Luz) conversa com o pai (Zé Carlos Machado); o outro, em uma casa num campo, em que um homem (Lee Taylor) surge e interfere na rotina de Maria e sua mãe (Patricia Pillar), que vivem sozinhas. É um elenco pequeno e fica a impressão de ser um filme delicado, pensado e poetizado por todos da equipe.
Obviamente há a presença do animal mitológico do título, que representa principalmente a pureza, a virgindade. Segundo a lenda, só as mulheres virgens conseguem domá-lo. É uma forma fabulosa de mostrar como a personagem Maria, aos 13 anos, lida com o mundo como qualquer adolescente que está na transição de menina para mulher. Maria não tem certeza sobre seus desejos, é muito confusa e frustrada em relação à beleza da mãe, e em momentos tende para a violência. Apesar de bonito, seu universo é muito limitado, sendo a presença da natureza e a influência materna os únicos parâmetros.
O diretor declarou que Maria é, de certa forma, uma representação de Hilda, por conta de suas opiniões sobre temas como a fé e as relações humanas. Unicórnio, portanto, é uma leitura bem pessoal do cineasta sobre a obra da autora, e sua maior força está em homenagear uma escritora que revelou de forma tão bela a sexualidade das mulheres. Uma escritora que, segundo a professora Eliane Robert Moraes, “instaurou uma fenda na paisagem literária do país”.
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“Unicórnio”
[Brasil, 2017]
Direção: Eduardo Nunes
Elenco: Barbara Luz, Patricia Pillar, Lee Taylor.
Duração: 122 minutos
Letícia Mendes é jornalista e mestranda em estudos sobre as mulheres.