Personagens que perdem a humanidade em meio a questões sociais brasileiras parecem ser a ideia de horror de Gabriela Amaral Almeida. Após O Animal Cordial (2018), a diretora e roteirista volta aos cinemas nesta quinta-feira (2) com A Sombra do Pai. E se no primeiro filme uma tentativa de assalto transforma um restaurante paulistano em microcosmo do país, também o novo longa aborda medos coletivos brasileiros, desta vez a partir do drama de uma família que vive na periferia de São Paulo.
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A Sombra do Pai se desenvolve em torno da tentativa da menina Dalva (Nina Medeiros), de nove anos, de trazer sua falecida mãe de volta à vida. O filme começa com o pai, o pedreiro Jorge (Julio Machado), levando alguns restos mortais do túmulo para casa – um longo rabo de cavalo trançado, dois dentes e um colar. A garota se apega às lembranças da mãe, ao contrário da irmã de Jorge, Cristina (Luciana Paes), que assumiu o papel de matriarca da casa. Apesar de ser adepta das simpatias, a tia de Dalva não é lá chegada em mexer com os mortos.
Quando Cristina se casa e vai morar com o marido, pai e filha se afundam em angústia. A história vai se desenrolando lentamente, com a atmosfera cada vez mais sombria: a comida começa a faltar na geladeira, Dalva sofre bullying na escola, o pai passa o dia todo trabalhando na construção civil. De um lado, a garota está determinada a ressuscitar sua mãe, inspirada em rituais de magia e em antigos filmes de terror que passam na TV, como Cemitério Maldito (1989). De outro lado, o pai sofre um segundo luto, desta vez no canteiro de obras onde trabalha. Jorge é novamente forçado a lidar com os pertences dos que partiram. Tanto seu lar como o local de trabalho parecem amaldiçoados, remetendo a Trabalhar Cansa (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra.
Com excelente fotografia e direção de arte, tudo o que cerca pai e filha em A Sombra do Pai tem aspecto de entulhado, quebrado, desgastado, mofado. Até que Jorge se acidenta no trabalho e uma ferida grave cresce nas suas costas. Com olheiras, lábios pálidos, emudecido e cada vez mais distante da filha, ele se assemelha a um zumbi. A transformação da enorme e nojenta ferida é intercalada com cenas de A Noite dos Mortos-Vivos (1968), clássico de George Romero (1940-2017), cineasta que utilizava o horror para abordar questões sociais. Atordoado com as pequenas bruxarias de Dalva, o agora pedreiro-zumbi força a filha a fazer um passeio “como uma família normal”, em uma cena que se afasta um pouco do sobrenatural, mas nem por isso deixa de ser menos assustadora.
Com esse segundo longa-metragem, Gabriela Amaral Almeida dá ainda mais fôlego ao cinema de terror, especialmente ao se apoiar na cultura brasileira, reinterpretando, por exemplo, a festa de São João como um cenário aterrorizante (pular a fogueira nunca chegou tão perto do Dia das Bruxas). A sacada de seu trabalho é justamente encaixar esses elementos grotescos, fantasiosos e bizarros no cotidiano de uma criança pobre que se vê obrigada a assumir logo a responsabilidade do adulto.
Apesar de sua narrativa atemporal, A Sombra do Pai estreia num momento em que o desemprego atinge 13,4 milhões de brasileiros, segundo o IBGE, e em que a indústria do cinema nacional, com a paralisia de novas verbas, passa por uma de suas maiores crises desde o governo Collor. O apelo que Gabriela faz ao sobrenatural parece ser uma saída viável dessa realidade.
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“A Sombra do Pai”
[Brasil, 2018]
Direção: Gabriela Amaral Almeida
Elenco: Nina Medeiros, Juliano Machado, Luciana Paes.
Duração: 92 minutos
Letícia Mendes é jornalista e mestranda em estudos sobre as mulheres.