Todo ano a comunidade cristã ortodoxa da Macedônia no Norte realiza um ritual para celebrar o dia da Epifania do Senhor: em 19 de janeiro, um padre joga uma cruz de madeira nas águas de um rio, os homens nadam em busca dela, e quem recuperá-la terá boa sorte. Mas em janeiro de 2014, um pequeno escândalo abalou a celebração da Epifania no vilarejo de Stip. Pela primeira vez, uma mulher pulou no rio e pegou a cruz, causando reação violenta entre os demais participantes e revolta em diferentes setores da sociedade.
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Este caso real é a inspiração de Deus É Mulher e Seu Nome É Petúnia, quinto longa-metragem da diretora Teona Strugar Mitevska, que foi exibido em competição no Festival de Berlim e está em cartaz no Brasil. Em seu primeiro papel no cinema, a atriz Zorica Nusheva interpreta Petúnia, uma jovem de 32 anos formada em História que não consegue emprego. Morando com os pais e sufocada pelas constantes instruções e comentários depreciativos da mãe, ela leva uma vida sem perspectivas até o momento em que decide pular no rio. O ato de desobediência desperta algo em Petúnia, que se recusa a devolver a cruz, apesar das ameaças dos participantes, dos protestos do público e dos apelos do padre e da polícia.
A partir da trajetória de Petúnia, a diretora pôde abordar aspectos políticos e sociais da Macedônia, algo muito presente em sua obra. “Era uma oportunidade imperdível de falar sobre a cultura do macho, o patriarcado, as mulheres, a sociedade, o Estado, os dogmas religiosos, todos esses elementos que, de uma forma ou de outra, são parte do nosso aprisionamento”, afirmou, em entrevista por Skype ao Mulher no Cinema.
A história chegou até Teona a por meio de sua irmã, Labina Mitevska, com quem fundou a produtora Sisters and Brother Mitevski (e que inclui o irmão delas, Vuk). Labina viu a notícia em um jornal, assumiu a produção do longa e também o papel de uma jornalista que faz de tudo para cobrir o caso. A equipe de Deus É Mulher e Seu Nome É Petúnia inclui muitas mulheres de diferentes partes da Europa, já que o filme é uma coprodução da Macedônia com Bélgica, França, Croácia e Eslovênia.
Leia os principais trechos da entrevista com Teona Strugar Mitevska:
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O que a fez querer levar este caso real ao cinema?
Estou sempre procurando conteúdo, coisas com as quais me identifique. E acredito que o cinema não pode existir separado da política. Não estou dizendo que todos os filmes devem ser políticos, mas acho que é nosso dever fazer um comentário sobre o mundo em que vivemos. Esta história veio de forma muito natural porque a partir do ato desta mulher era possível falar de muitas coisas. Era uma oportunidade imperdível de falar sobre a cultura do macho, o patriarcado, as mulheres, a sociedade, o Estado, os dogmas religiosos, todos esses elementos que, de uma forma ou de outra, são parte do nosso aprisionamento.
Você tinha a percepção de que esta história ecoaria em outros lugares, como no Brasil por exemplo, onde ela dialoga muito com o momento social e político?
De forma alguma. Há algum tempo atrás, acho que quando tinha 40 anos [ela tem 45], fiquei pensando sobre o que era importante para mim e que direção queria tomar nos meus próximos filmes. A resposta foi: mulheres. É isso o que eu sei e é isso que me toca de forma pessoal. E acho que vivemos um momento excitante. Quer dizer, não posso dizer ao certo, porque a história vai para lá e para cá. Mas acho excitante que estejamos falando mais abertamente do que nunca sobre muitas questões importantes. Espero que não retornemos à escuridão após tudo isso. Ou talvez estejamos na escuridão agora e tentando sair dela, considerando o que está acontecendo aqui, nos Balcãs, no Brasil, nos Estados Unidos, em muitos lugares. O que está acontecendo no seu país me deixa muito triste. Espero que na próxima eleição vocês consigam tirá-lo [Jair Bolsonaro] do poder.
“Quando fomos rodar o filme, há cerca de dois anos e meio, muita gente questionou. Os locais tiveram uma reação bem radical e a Igreja não quis nada com a gente. Entramos em contato e eles disseram: ‘Não queremos ter nada a ver com vocês porque Deus existe e ele é um homem.'”
No caso específico que o filme retrata, houve alguma mudança? Depois de a menina ter recuperado a cruz, eles passaram a permitir que mulheres participem do ritual, por exemplo?
Imediatamente depois, ficou pior. Na época, ela questionou se estava escrito em algum lugar que mulheres estavam proibidas de participar. E não estava, então eles de fato colocaram a proibição por escrito. Quando fomos rodar o filme, há cerca de dois anos e meio, muita gente questionou: “por que fazer um filme sobre aquela louca?”. Os locais tiveram uma reação bem radical e a Igreja não quis nada com a gente. Entramos em contato e eles disseram: “Não queremos ter nada a ver com vocês porque Deus existe e ele é um homem.”
Verdade?
Sim. Mas decidimos seguir em frente e filmar no lugar onde o caso aconteceu, porque sabíamos que no mínimo levantaríamos algumas questões. No começo, ninguém aceitava, mas no final metade da cidade já estava direta ou indiretamente envolvida na filmagem. E depois, em janeiro de 2019, uma mulher pulou novamente e pegou a cruz. E eles deixaram que ela ficasse com a cruz sem problema nenhum! A timeline é incrível: há cinco anos a primeira mulher pula, dois anos e meio depois nós rodamos o filme e em 2019 a segunda mulher pula e fica tudo certo. Foi um progresso incrível. Por outro lado, a história da primeira mulher é muito triste. A vida dela ficou impossível, ela não conseguia sair na rua sem ser xingada. Teve de sair do país e agora vive em Londres.
O que você buscava na atriz que interpretaria esta jovem?
Acredito que os atores têm de ter algo que pertence apenas a eles. Algo natural, que vem de dentro [e tem a ver com o personagem]. No caso de Zorica, foi a força. Reconheci nela uma força quieta que simplesmente não dá para criar. Ela é uma atriz talentosa e que trabalha muito duro. Quando escrevi o roteiro, não tinha definido nenhum aspecto físico da personagem, então depois que a escalei, adaptei o roteiro, adicionei alguns elementos que tinham a ver com ela e sua história pessoal. O trabalho com atores é um trabalho de afinação – especialmente com ela, que está em todas as cenas do filme. É preciso ter cuidado para encontrar a forma certa de exteriorizar o que ela sente, pois é muito fácil ir longe demais ou não ir longe o suficiente. Sempre dizemos que a montagem encontra a música e a respiração do filme, mas acho que o mesmo pode ser dito sobre as atuações. A respiração de Petúnia é a respiração do filme e trabalhamos muito para encontrar essa respiração.
A segunda metade do filme se passa em um único cenário, a delegacia. Como foi filmar nesta locação única e construir esse clima claustrofóbico no qual a personagem se insere?
Primeiro, devo dizer que adoro restrições. Talvez isso venha do fato de eu ser mulher: quando você não está no topo da escala, precisa encontrar outras soluções. Estando nesta indústria e vivendo neste mundo, aprendi muito sobre isso. Mas, inicialmente, quando escrevemos o filme [Teona é autora do roteiro junto com Elma Tataragic], a ideia não era concentrar a segunda parte em um só espaço. Foi minha irmã quem leu o roteiro e disse: quando entrar na delegacia, não saia mais. Fizemos um novo rascunho e achamos que ficou interessante. Porque além da coisa da restrição, quando você coloca todos esses elementos juntos – a Igreja, o Estado e o indivíduo -, a aposta fica mais alta. Tratamos a delegacia como se fosse o Inferno de Dante. O espaço ficada cada vez menor, e mostramos isso através dos elementos cinematográficos: enquadramento, closes, mise-en-scène. Ela se torna cada vez mais prisioneira, e você vai junto com ela.
Minha próxima pergunta era justamente sobre os enquadramentos, pois você muitas vezes mostra os personagens de costas ou passando em frente a câmera, além de pessoas com partes do corpo cortadas, por exemplo. Fale um pouco sobre estas escolhas.
Foi simples: cortamos as cabeças dos homens [risos] Os homens deste filme são como abelhas ao redor da protagonista, tentando cobri-la. A sombra de um personagem sempre tem a ver com dominação, e também esta coisa de passar em frente da câmera. As escolhas variam a cada cena, mas todas foram pensadas para intensificar a experiência e a vida interna de Petúnia. Me preocupo bastante com isso, trabalho muito a mise-en-scène. Trabalho muito em encontrar a forma certa de filmar uma cena ou mesmo em responder à mais simples das perguntas: onde colocar a câmera? Sei que algumas pessoas vão dizer que é possível colocar a câmera em muitos lugares, mas eu acredito que só existe um jeito certo de contar a história do meu jeito. Você contará diferente, e achará o seu jeito. Mas para mim é assim. Às vezes, é quase matemático. Uma cena lida com sensações, mas também precisa ser parte do conjunto, se relacionar com o que veio antes e com o que virá depois. A cena precisa se encaixar no quebra-cabeça do filme. De novo: é encontrar a música. E é algo que eu adoro fazer. Mas às vezes também acontecem alguns milagres.
Por exemplo?
A cena em que Petúnia toca um dos policiais através de um vidro foi pura improvisação, e filmada em apenas dois takes. Ensaiamos a cena várias vezes, mas eu nunca soube em que lugar ela aconteceria. É algo incomum no meu trabalho, pois acho a locação muito importante. É o contexto da história, e o lugar onde você coloca dois personagens pode dizer muito. Mas nessa cena, eu não sabia. Às vezes você não sabe. Então decidi tentar na hora. Geralmente sou muito precisa e planejada, mas fico feliz em ter dado a mim mesma a possibilidade de não saber. Isso é muito importante. E aí coloquei aquele vidro entre eles, e ficou como a impossibilidade de se tocarem. Os dois são vítimas, os dois são prisioneiros, mas é a mulher quem tem coragem de lutar. Filmamos e algo simplesmente aconteceu. É muito bonito quando acontecem coisas assim.
“Trabalho muito em encontrar a forma certa de filmar a cena ou mesmo em responder à mais simples das perguntas: onde colocar a câmera? Algumas pessoas dirão que é possível colocar a câmera em muitos lugares, mas acredito que só existe um jeito certo de contar a história do meu jeito.”
Você disse que gosta de fazer filmes políticos, e seus filmes vão muito bem nos festivais internacionais. Mas gostaria de saber: como é a recepção do seu trabalho no seu país? O filme causou a mesma comoção quanto o fato no qual se baseou, por exemplo?
Esta é uma grande frustração para mim: ser reconhecida na minha comunidade. Consigo financiamento na Macedônia, pois no sistema de coprodução europeu você tem de começar [captando] no seu país. Geralmente é uma luta, mas eu me viro. E sim, recebo críticas por ser muito politizada. Mas o que posso dizer? Vá se foder! [risos] De que adianta [fazer filmes] se não expressar minha opinião? Petúnia quase não aconteceu, porque o governo teve muitos problemas com meu trabalho anterior. E devo dizer, também, que quando o filme foi lançado, em março, as duas primeiras críticas, escritas por mulheres, foram muito negativas. Uma disse que eu não deveria fazer filmes nunca mais e a outra, que eu estava ofendendo os jornalistas do país. E claro que estava! Depois tivemos críticas boas, mas é difícil. Porém, imagino que seja assim em todos os lugares. Como foi a recepção do filme do Kleber? [Ela se refere a Bacurau, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles]
O público gostou muito, teve boa bilheteria. A crítica também. O governo, acho que não tanto.
Ah, mas o público gostou. Que bom. Acho que às vezes o filme também ganha importância com o tempo. Lançamos Petúnia nos cinemas em março, mas agora estamos levando-o às escolas e a resposta tem sido incrível. É isso: nem sempre é fácil, mas tenho a sorte de ter uma ótima equipe. Trabalho com minha irmã e com muitas mulheres de toda a Europa. E vamos fazendo nossos filmes.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema