A trajetória de Kika Sena certamente a preparou para protagonizar Paloma, filme dirigido por Marcelo Gomes que faz sua estreia nacional nesta segunda-feira (10) no Festival do Rio. Aos 28 anos, ela é formada em Artes Cênicas e cursa mestrado na mesma área, tem carreira como atriz e diretora de teatro e trabalha, também, como arte-educadora, poeta e performer. Apesar de experiente, Kika ainda está se acostumando a ver a si mesma na tela grande. “É impressionante, às vezes até inacreditável”, afirmou, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Tenho dificuldade de me reconhecer nesse lugar e de acolher a repercussão que o meu trabalho tem causado. É difícil entender esse sentimento de ocupação de espaço.”
Depoimento: Leia o texto de Kika Sena sobre a experiência de atuar em Paloma
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Antes de ser escalada para Paloma, Kika via o cinema como um objetivo impossível. Nascida no município alagoano de Marechal Deodoro, desde a infância ela sonhava em ser atriz, inspirada mais pelas novelas do que pelos filmes. “As referências que chegavam eram sempre sudestinas ou estrangeiras, e não havia escola de teatro na minha cidade”, contou. Mais tarde, quando já atuava nos palcos, afirmar-se como travesti fez com que as ofertas de trabalho diminuíssem. Para criar suas próprias oportunidades, ela assumiu uma posição de atriz-autora que também pretende desempenhar nas telas. “Quero ser diretora de cinema, mas ainda preciso me profissionalizar, compreender melhor”, afirmou.
Kika foi escolhida para o papel de Paloma em um processo de seleção de elenco que envolveu testes virtuais e presenciais, além de conversas com Marcelo Gomes, diretor de filmes como Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) e Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar (2019). Naquele momento, a atriz sabia pouco sobre o projeto: apenas que contava a história de Paloma, uma mulher trans que vivia com a filha, Jenifer, e o companheiro, Zé, com quem sonhava em se casar na igreja.
Trata-se de um caso verdadeiro, que chamou a atenção de Gomes em uma notícia de jornal. Para desenvolver o roteiro, ele teve uma série de conversas com mulheres trans no agreste pernambucano, inclusive a Paloma real – que Kika, ao contrário, nunca chegou a conhecer. Sua atuação foi construída a partir de conversas com o diretor e no trabalho com a preparadora de elenco Sílvia Lourenço, além da inspiração que buscou em casa. “Fazendo os recortes de raça, classe, gênero e escolaridade, encontrei a principal referência de Paloma em minha mãe: uma mulher preta, mãe, interiorana, semianalfabeta, nordestina e com muitos sonhos”, escreveu Kika em texto publicado pelo Mulher no Cinema em junho, quando o filme fez sua estreia mundial no Festival de Munique.
O jeito sonhador de Paloma dá o tom de um filme que, embora romântico, não esconde a violência e intolerância que há 13 anos coloca o Brasil no topo da lista de países que mais matam pessoas trans e travestis, divulgada pela organização Transgender Europe (TGEU). O longa estimula a reflexão sobre diferentes aspectos da vida de uma pessoa trans – das relações de trabalho ao prazer sexual, passando por casamento, maternidade e direito à família, palavra tão citada no atual momento político brasileiro.
Uma das reflexões mais interessantes é inerente à premissa, ou seja, ao fato de uma mulher trans sonhar com algo tão tradicional e heteronormativo quanto casar na igreja, de véu e grinalda. O estranhamento causado pelo desejo de Paloma aponta para o risco de generalização da experiência trans, e uma das principais qualidades do filme é contar a história de uma mulher específica em circunstâncias específicas, não de um grupo. “As pessoas são diversas em qualquer contexto”, afirmou Kika. “Paloma não está querendo representar todas as travestis, não está querendo levantar uma bandeira de que ser travesti é assim, assado. Não: ser a Paloma, mulher preta, travesti, pernambucana, do sertão de Saloá é assim e assado.”
Além de duas sessões no Festival do Rio, em 10 e 11 de outubro, Paloma também será exibido na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, que começa no fim do mês. Depois, em 10 de novembro, o filme estreará no circuito comercial. Abaixo, assista ou leia a entrevista com Kika Sena:
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Quando o filme estreou no Festival de Munique, você disse a seguinte frase à imprensa alemã: “Achava que o cinema era um lugar impossível de eu estar”. Por que você achava que o cinema era um lugar impossível de estar, e como é estar em um lugar que parecia impossível para você?
Nasci numa família pobre e periférica na cidade de Marechal Deodoro. Desde criança sonhava em ser atriz e me inspirava muito nas novelas. O cinema era impossível para mim porque não conseguia ver referências que me representassem nele, a começar pelo meu território. As referências que chegavam eram sempre sudestinas ou estrangeiras, e não havia escola de teatro na minha cidade. [Estar atuando no cinema] É impressionante, às vezes até inacreditável. Tenho dificuldade de me reconhecer nesse lugar e de acolher a repercussão que meu trabalho tem causado. É difícil entender esse sentimento de ocupação de espaço, então ainda estou me reconhecendo. Agora, com a estreia do filme, estou maturando um pouco mais essa ideia.
A primeira coisa que pensei ao assistir ao filme foi que este trabalho deve ter exigido uma relação de muita confiança entre você e o diretor. Por ele ser um homem cis e você, uma mulher trans; por ser o seu corpo na tela; por você ser uma ativista e entender o impacto de o seu corpo estar na tela; e por ser sua estreia no cinema, um universo novo para você. Foi mesmo preciso criar essa confiança? E se sim, como ela se construiu?
Foi uma relação de total entrega, acho que não só da minha parte. Quem sou eu para falar pelo Marcelo, mas ele precisou confiar muito em mim, porque também era a primeira experiência de trabalho dele com pessoas trans. Sinto que fui muito acolhida não só pelo Marcelo, mas por toda a equipe. Ele criou um território de muita confiança para que eu pudesse me entregar, e para que nenhum evento externo atrapalhasse minha performance. Houve muito profissionalismo e respeito, e isso fez com que durante as gravações eu fosse me sentindo a vontade para estar ali, para colocar meu corpo em cena. Comecei a construir minha relação com o Marcelo desde o primeiro encontro por videochamada. Ele me indicou alguns livros para que pudesse me familiarizar com a temática que ele estava trabalhando, das mulheres trans nordestinas e sertanejas, e também comentou muito sobre o modo como ele trabalha e me sugeriu que assistisse alguns dos seus filmes. Acho que isso também possibilitou a confiança nesse trabalho.
No texto que você escreveu para o Mulher no Cinema sobre a experiência de trabalhar no filme, você destacou a importância da preparação com a Sílvia Lourenço. Como foi esta preparação?
Logo após o resultado da seleção, continuei ensaiando com pessoas que estavam fazendo testes. Ali eu já estava me preparando, porque estava conhecendo pessoas que possivelmente estariam comigo em cena. Quando chego em Crato [no Ceará] para ensaiar, encontro a Silvinha e a gente começa uma relação de amizade. Acho que apostar numa relação afetiva com as pessoas com quem estou trabalhando e me predispor a confiar nelas faz com que me sinta muito mais a vontade. Sou muito desconfiada, e a desconfiança é necessária, pois sou uma mulher trans, preta e nordestina, que já levou muita rasteira da vida. Ainda assim, me predisponho a confiar nas pessoas para que o trabalho aconteça, e foi assim com a Silvinha. A gente saía juntas, bebia juntas. Acredito que isso também fazia parte da preparação, porque estávamos construindo uma relação íntima.
Ensaiamos seis dias por semana, durante oito horas por dia, pelo período de um mês, aproximadamente. E como o Marcelo não tinha me passado o roteiro, eu ia descobrindo na hora. A Silvinha trazia uma cena que o Marcelo queria que a gente ensaiasse e eu ia experimentando até encontrar esse corpo, essa história. Nem o Marcelo, nem a Silvinha me mostraram a verdadeira Paloma. Acho que foi uma estratégia deles para que eu não criasse nenhum tipo de vício ou imitação. Me senti super engrandecida, porque pude construir a minha própria Paloma, obviamente com as dicas deles. O Marcelo comentava muito comigo sobre a prosódia, o modo de fala. Ele sempre pedia: “Não caia no lugar de imitar o sotaque”. Nesse momento me voltei muito para a minha mãe, que carrega no sotaque várias expressões que trouxe para a Paloma. Então foi uma troca entre Marcelo, Silvinha e eu, para que a gente conseguisse montar essa estrutura que é a Paloma.
No texto para o Mulher no Cinema você também escreveu que sua mãe foi a chave para que você encontrasse a Paloma. De que forma ela te ajudou, para além do modo de falar?
A minha mãe também é muito religiosa. Paloma tem um catolicismo inveterado, minha mãe é macumbeira. Como mãe solo, mulher preta e muito religiosa, com seus santos e orixás, ela serviu de inspiração no sentido do que ela desejava, do que percebo que ela esperava para ela. Que é isso: ser validada enquanto mulher pela sociedade, a partir da relação com um homem. Lembro de minha mãe ser chamada de puta, de rapariga, simplesmente por ser mãe solo. Foi nesse lugar que peguei emprestada a minha mãe para construir Paloma. Por que um homem é tão importante na vida de uma mulher nordestina, sertaneja? Entendi que tem essa validação, que no caso da Paloma ela espera [obter] através da Igreja, mas ainda assim na relação com um homem.
Paloma causa certo estranhamento ao mostrar uma mulher trans que sonha com o casamento religioso, em usar vestido branco, véu e grinalda, ou seja, em seguir um caminho tido como tradicional e heteronormativo. Ao assistir ao filme, me perguntei se esse estranhamento também não apontava para um outro tipo de generalização que eu estava fazendo da experiência trans. Nesse sentido, é importante que a mulher trans que vemos na tela possa ser uma mulher trans e não as mulheres trans ou todas as mulheres trans?
Eu também me peguei nesse lugar de julgamento da Paloma, de crítica às escolhas dela. Estava tentando criar uma Paloma que tivesse a ver com os meus ideais e, na época, casamento era algo que não queria para a minha vida, muito menos com um homem, muito menos na igreja. Quando me afasto das minhas ideias, ou do que eu espero da Paloma, consigo compreendê-la melhor. É muito mais importante enquanto discurso, enquanto narrativa, a gente pegar uma única experiência para falar sobre ela, só a experiência dela, do que pegar uma travesti ou uma mulher trans e tentar representar todo um grupo de pessoas que nunca vai ser representado. Assim como na cisgeneridade e na heterossexualidade, as pessoas são diversas em qualquer contexto.
Acho importante que a história de Paloma não caia no que a [escritora nigeriana] Chimamanda [Ngozi Adichie] chama de “perigo da história única”. Paloma não está querendo representar todas as travestis. Ninguém que fez Paloma estava pensando nisso. Pelo contrário, a Paloma está se representando e por isso corre atrás do sonho dela, por isso não dá importância para as críticas ou os obstáculos que aparecem. Ela não está querendo levantar uma bandeira de que ser travesti é assim, assado. Não: ser a Paloma, mulher preta, travesti, pernambucana, do sertão de Saloá é assim e assado. Acho que a escolha dessa narrativa vai mesmo causar estranhamento – causou em mim e acho que vai causar no público. Normalmente espera-se que na história de uma mulher trans todas as violências sejam denunciadas e que ela represente todo um grupo. Mas, no fim das contas, se formos parar para pensar em representação e representatividade, Paloma representa muito mais do que só a travestilidade. Ela está ali carregando muitas histórias [inclusive do] que a cisgeneridade deseja.
O filme toca em vários temas, como casamento, maternidade, família, prazer e rede de apoio, e toca também na questão do trabalho. Paloma trabalha na colheita do mamão e há várias cenas dela neste ambiente – trabalhando, sendo tratada injustamente pelo chefe, correndo para pegar o transporte etc. Em uma entrevista à imprensa alemã, Marcelo disse que o filme se desenvolve em uma sociedade capitalista no qual “o corpo de Paloma é apto para trabalhar, mas inapto para sonhar”. Gostaria que você comentasse um pouco este aspecto do filme.
É uma pergunta difícil de comentar, mas que ao mesmo tempo está ali na nossa cara. Os números de pessoas trans e não binárias empregadas formalmente são baixíssimos. Mesmo assim, esse corpo está trabalhando, e está trabalhando a serviço da sociedade que o mata. O que estou querendo dizer com isso? Estou querendo dizer que a prostituição é uma realidade, um emprego, um caminho forçado. Para além desse lugar do trabalho no campo, independente do local que seja, esse corpo, que em sua maioria é preto, serve para servir o outro – que é o um, que é o que se denomina como primeiro, como pessoa, que é o corpo branco, em sua maioria homem e cisgênero. Então, para mim, este espaço do trabalho que a Paloma ocupa denuncia a exploração mesmo. Se pensarmos no contexto brasileiro de forma geral, sem segmentar para a travestilidade, são as pessoas pretas que estão ali servindo de mão de obra. Afinal de contas, se o pão está na padaria às 7h é porque alguém teve de acordar às 5h, ou antes, para que esse pão ficasse pronto. E esse alguém normalmente é periférico e é preto, alguém que para poder estar lá teve de abdicar de vários sonhos.
Paloma começou a ser filmado nas eleições de 2018 e passará no Festival do Rio durante a campanha do segundo turno. Por um lado, há a esperança de que Jair Bolsonaro seja derrotado; por outro, o primeiro turno deixou claro que, mesmo se houver derrota, o bolsonarismo seguirá forte na sociedade brasileira. Como você vê o momento do lançamento?
Não sei o que esperar de repercussão neste momento político. Acho que a geografia do espaço determina muito como as pessoas vão receber o filme. A gente gravou no Ceará, e se o Nordeste é uma região aparentemente menos conservadora no sentido do bolsonarismo, então acho que Paloma vai afetar positivamente as pessoas. Outra coisa importante é que, no primeiro turno, duas travestis foram eleitas deputadas federais: Erika Hilton [PSol-SP] e Duda Salabert [PDT-MG]. Isto me dá esperança de que o filme possa ser bem recebido. As pessoas mais conservadoras talvez saiam um pouco frustradas com as cenas de sexo. Sabemos da hipocrisia do povo brasileiro, que faz com que não queiram receber [cenas de sexo envolvendo pessoas trans] no cinema, mas procurem esses corpos para o sexo em outros lugares. Talvez alguns cortes que o Marcelo colocou em cena provoquem esse público a tecer discurso de ódio. Ao mesmo tempo, não deixa de ser um tipo de afetação que o filme causa nas pessoas. Positiva ou negativamente, acredito que Paloma vai despertar a mente de um monte de gente. Principalmente porque é um filme sobre uma travesti preta e nordestina com uma travesti preta e nordestina ocupando a tela do cinema praticamente o tempo inteiro. As pessoas que assistirem ao filme, que ouvirem falar do filme, vão ter uma travesti preta e periférica reverberando na sua mente, na sua forma de pensar o mundo. Independente do contexto político, acho que esse filme é capaz de romper alguns paradigmas.
Discute-se bastante sobre a importância de artistas trans serem contratados para interpretar personagens trans, o que é fundamental. Mas devemos caminhar também em direção a um audiovisual no qual artistas trans possam ir além dos personagens e narrativas trans? Ou seja, um audiovisual no qual a atriz trans é uma atriz e a diretora travesti é uma diretora e todas podem contar as histórias que quiserem, sobre qualquer tema? Como você vê essa questão?
Ah, eu vejo isso tudo, acho que a resposta está na pergunta. Ainda estamos no momento de reivindicar espaço na TV, no teatro e no cinema – porque esse espaço é nosso. Já houve um tempo em que as mulheres cis tiveram de lugar pelo espaço delas no teatro, quando eram proibidas de trabalhar e os homens cis interpretavam mulheres. Agora é a nossa vez de brigar por esse espaço. Se não fizermos isso, continuaremos sem trabalho, continuaremos tendo como possibilidade apenas os subempregos ou talvez precisemos voltar para as ruas. Em relação à interpretação de cisgereridade ou de histórias outras, somos formadas para atuar e capazes de desenvolver qualquer papel, independente de gênero. A [atriz e dramaturga] Renata de Carvalho propõe que durante 30 anos as pessoas cis deixem os papéis trans para as pessoas trans. Acho que, durante esse processo de 30 anos, a gente pode e deve fazer testes para papéis cis. Somos capacitadas para isso, que também não é algo novo, mas sobre o qual se fala pouco. Eu inclusive já interpretei a projeção de uma ovelha humanizada, então imagina o que a gente pode fazer. Se sou capaz de interpretar a projeção de uma ovelha humanizada, sou capaz de interpretar uma mulher cisgênera no cinema e no teatro [risos].
Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
Antes, daria um conselho para as pessoas que fazem cinema: deem possibilidades, procurem escrever histórias sobre mulheres, abram espaço, cedam caminhos para que possamos ocupar esse território. Só pude interpretar Paloma porque houve um teste e uma história que eu pudesse contar. Então para as pessoas que fazem cinema, digo isso. E para as mulheres que querem trabalhar no cinema, para as travestis, digo que não desistam, que corram atrás dos sonhos e que não se sintam incapazes de ocupar este lugar.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema.