Treze anos após se mudar para os Estados Unidos, a diretora mineira Emilia Ferreira volta ao Brasil para mostrar seu primeiro longa-metragem, Entrelinhas. O filme, que está na competição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é o resultado da vontade de fazer cinema que começou em Belo Horizonte, mas floresceu no exterior.
“É um pouco a coisa do sonho americano”, explica a cineasta ao falar sobre sua trajetória. “Em Minas [ser diretora] era mais ou menos um sonho, algo no papel. Nos Estados Unidos, descobri asas para voar.”
Foram 13 anos entre a mudança de país e a estreia do filme. Nesse período, Ferreira concluiu a faculdade de jornalismo, fez cursos de cinema e trabalhou como fotógrafa e diretora de arte e abriu uma empresa de representação de artistas. Quando decidiu que era hora de se dedicar à direção, fez curtas-metragens e comerciais até chegar ao primeiro longa, inspirado no livro de aforismos The Erotic Fire of the Unattainable, de Gay Walley, que também assina o roteiro do filme.
Entrelinhas se passa em Nova York, cidade onde Ferreira vive há cerca de oito anos, e conta a história de Jacqueline, autora de uma peça teatral. Na noite de estreia, o diretor do espetáculo reflete sobre o trabalho com a escritora e questiona se foi tão manipulado por ela quanto os personagens da obra. Além da protagonista (a atriz sueco-finlandesa Irina Björklund), da diretora e da roteirista, o longa tem outras mulheres na equipe, como a produtora Suzy Davis, a diretora de fotografia Lisa Rinzler, a diretora de arte Juliana Overmeer e a cenógrafa Orly Anan, entre outras.
Ferreira, que foi uma das fundadoras do braço brasileiro da Women in Film and Television (WIFT), disse que a equipe cheia de mulheres foi algo intencional: “Mas apenas por estar curiosa para saber o que elas estavam fazendo”, afirma. “Quando recebi a lista [de possíveis profissionais] e vi que a mulherada estava mandando ver, nem cheguei a ver a lista dos homens.”
Na entrevista a seguir, Ferreira fala sobre os desafios e lições do primeiro longa-metragem, o trabalho com Björklund, a expectativa para as sessões da Mostra e a vontade de filmar no Brasil:
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Como você chegou a Entrelinhas? De que forma se envolveu com o projeto?
Quando decidi dirigir, comecei a escrever roteiros e colaborar com outros escritores. Uma amiga me apresentou para a [roteirista] Gay Walley, que por coincidência morava perto de mim. É uma mulher super boêmia, na faixa dos 50 anos, uma figura. No momento em que nos conhecemos, nos demos super bem e trocamos projetos. Ela me mostrou o roteiro de Entrelinhas e, enquanto estava lendo, eu via o filme. [O texto] combina com a voz que quero ter na minha carreira. Era um roteiro de teatro, mas decidimos adaptar para o cinema. Trabalhamos juntas por cerca de oito meses, sem parar. Ficávamos tentando entender quem era a Jacqueline. O que ela significava? Por que ia contar a história dessa forma sem estrutura, como se fosse um poema ou uma peça de música? Trabalhamos no roteiro até uma semana antes da filmagem.
Quando chegou ao set, quais foram os principais desafios?
Todo dia foi um desafio. O primeiro filme é como voltar à escola, com a diferença de que cada dia representa um semestre. Você tem de aprender muito rápido. E o que realmente aprendi é que você tem de ser sincera com você mesma sobre o roteiro que tem e sobre como vai executar esse roteiro. Falar sobre o filme e se preparar para o filme é ótimo. Mas no momento em que entra no set, você precisa executar. Não tem filosofia, não tem nada que não seja prático. Dirigir também é explorar a questão do desejo – eu quero isso, quero essa cor desse jeito, esse personagem dessa forma. Aprendi a ser mais direta e a saber expressar de forma simples o que quero.
Irina Björklund é uma atriz experiente, principalmente no cinema e na TV da Finlândia. Como foi trabalhar com ela?
Foi ótimo. Ela é muito diferente do brasileiro, e outra coisa [necessária ao diretor] é aprender a ler seus atores e tentar entender quem eles são. A Irina vem de uma cultura um pouco mais fria, então tive de aprender a lidar com ela e pedir as coisas na linguagem dela. A gente colaborou muito no roteiro, conversamos linha por linha, passamos muito tempo juntas. O que me impressionou nela e nos outros atores foi o quanto se dão aos diretores.
Há muitas mulheres na equipe do filme. Foi algo intencional ou apenas coincidência?
Foi minha intenção, mas apenas pelo fato de estar curiosa para saber o que as mulheres estavam fazendo. Quando recebi a lista [de possíveis profissionais] e vi que a mulherada estava mandando ver, nem cheguei a ver a lista dos homens. O que eu queria já estava ali. E foi meio que um efeito dominó, porque eu fechava os departamentos [e as profissionais] já tinham um time de mulheres. O respeito que todo mundo tinha no set era fora do comum. Neste projeto a gente estava dentro de uma bolha, porque fomos super respeitadas do começo ao fim.
O que nem sempre acontece quando o set tem muito mais homens.
Exatamente. Acho que por isso sou super pró-mulher: porque entendi que sou uma exceção. Entendi que essa luta é por mim, mas não só por mim. [É preciso] pensar no coletivo, nas mulheres que estão vindo ou que ainda sofrem preconceito.
Você pensa em dirigir no Brasil?
Sim. Adoraria explorar a língua portuguesa mais uma vez. Meu português está um pouco enferrujado, perdi um pouco essa conexão. Mas antes de sair do Brasil fiz uma tatuagem [um mapa do País, na parte interna do braço] e falei: “se alguém me achar inconsciente no chão, me mande de volta”. Porque não vou esquecer de onde sou, de onde venho. Então quero muito filmar aqui. Não sei como fazer, não tenho nenhuma relação por aqui ainda. Mas quem sabe?
Seu primeiro filme está chegando ao Brasil pela Mostra, como parte da competição de novos diretores. Qual a sua expectativa para as exibições no festival?
Estou morrendo de medo [risos] Porque é um filme que não tem narrativa estruturada, que explora uma psicologia mais interna, o sentimento de uma mulher. É um filme que não te satisfaz no final, mas te pede para parar e pensar. Então tenho medo [da reação do público]. Será que vão entender? Será que vão gostar? Será que vai ficar claro?
Que conselho você daria para as mulheres que querem ser diretoras?
Não desista. Fazer um filme é pegar um navio e ir para o mar. Você tem de passar pelas tempestades e segurar a onda, porque é a líder. Pode acontecer de chegar a uma ilha errada – aí faz o que tem de fazer: limpa o barco, tira os mortos, coloca as pessoas novas e segue em frente. Até chegar onde queria ir. Vai ser difícil, mas cada dia é um aprendizado.
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[Foto do topo: Aline Arruda/Agência Foto]
Excelente materia. Conheco os pais de Emilia e estou orgulhosa dela e desejo muito sucesso, ela merece.