Betsy West sobre “A Juíza”: “Há algo universal em Ruth Bader Ginsburg”

O documentário A Juíza está em cartaz aos cinemas brasileiros depois de concorrer ao Oscar e da estreia de Suprema, um filme de ficção bastante inferior, mas com a mesma protagonista: Ruth Bader Ginsburg, 86 anos, a mais célebre integrante da atual Suprema Corte dos Estados Unidos. Indicada em 1993, no governo Bill Clinton, ela foi a segunda das quatro mulheres que chegaram ao tribunal e ganhou notoriedade pelas várias vezes em que discordou publicamente das decisões dos colegas. Nos últimos anos, o perfil liberal e uma longa carreira de combate à desigualdade de gênero a transformaram em uma espécie de ícone pop.

Crítica: A Juíza faz retrato carinhoso de Ruth Bader Ginsburg
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Seu reconhecimento não é tão grande no Brasil, mas isso não impede que os espectadores se inspirem com o documentário: “Há algo de muito básico e universal na história de Ruth Bader Ginsburg, uma mulher que enfrentou e superou enormes desafios usando seu intelecto, sua determinação e seu senso de humor”, afirmou a diretora Betsy West, em entrevista por Skype ao Mulher no Cinema. “Espero que as pessoas assistam ao filme e, talvez, percebam que ele se relaciona com questões que as mulheres brasileiras estão enfrentando.”

Os paralelos sem dúvida existem, e A Juíza também ganha relevância no momento em que a Suprema Corte americana é alvo de especial atenção. Após assumir a presidência, Donald Trump já nomeou os juízes Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh, e eventuais novas nomeações provavelmente tornariam a corte mais conservadora. Isso poderia ajudar o movimento anti-aborto a conseguir um objetivo de décadas: reverter a histórica decisão de Roe vs. Wade, que legalizou a prática nos Estados Unidos em 1973. Neste cenário, Ginsburg é não apenas um voto crucial como uma figura que representa, ela mesma, a longa luta pelos direitos das mulheres.

Ruth Bader Ginsburg, a juíza que tornou-se ícone pop nos EUA

Para contar a história da juíza, West e Cohen navegam entre as batalhas legais que marcaram sua carreira e os memes que a tornaram em uma octagenária superstar. Jornalistas com longo trabalho na televisão (Cohen já tinha feito documentários para o cinema, enquanto West dirige seu primeiro longa), elas só entrevistaram Bader Ginsburg formalmente uma vez, mas durante meses tiveram amplo acesso à juíza em eventos oficiais e não oficiais, acompanhando-a tanto na Corte e em palestras quanto à ópera e à academia. 

Leia os principais trechos da entrevista com Betsy West:

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Qual a reação da juíza quando vocês propuseram fazer um documentário sobre ela?
Inicialmente ela respondeu: “ainda não”. Isso foi no começo de 2015. Ela já tinha 82 ou 83 anos, mas pensamos: ao menos ela não disse “não”. Alguns meses depois, escrevemos para ela com uma lista de pessoas que gostaríamos de começar a entrevistar. Ela respondeu que só poderia falar conosco dali a dois anos, mas nos deu novos nomes para considerarmos para entrevistas. Naquele momento ela abriu uma porta para nós, então fomos atrás de financiamento. Três lugares nos recusaram, mas a CNN Films entendeu que só conseguiríamos o acesso que precisávamos se começássemos a filmar. Então eles financiaram o desenvolvimento inicial, filmamos algumas entrevistas e, depois de assistirem, eles decidiram financiar todo o projeto. No total, foram quase três anos de trabalho, de janeiro de 2015 a outubro de 2017.

Os memes sobre figuras da política e da justiça são engraçados, mas também podem causar certa distração em relação a um tema essencialmente sério. No caso de Ruth Bader Ginsburg, foi desafiador encontrar o tom certo para falar do ícone pop e, ao mesmo tempo, mostrar sua real contribuição para a luta pelos direitos das mulheres?
Acho que [os memes] foram uma grande vantagem, porque nos deram certo alívio cômico [risos]. Na verdade, em primeiro lugar eles nos deram um ponto de entrada para esta história, que é séria, importante e significativa, e que as pessoas não conheciam. Muitas vezes nos esquecemos que, nos anos 1970, a discriminação estava nas leis, e que Ruth Bader Ginsburg fez uma verdadeira revolução. Há uma história séria no coração do filme: queríamos mostrar sua brilhante estratégia, que foi encontrar casos que pudessem apelar aos nove ministros homens da Suprema Corte. Este foi o motivo de fazermos o filme. Ao mesmo tempo, trata-se de uma pessoa incrível, que tornou-se uma superstar e está curtindo a vida de celebridade aos 80 e poucos anos. É algo engraçado, e acho que um filme sério pode ganhar algo com o humor. Desde que, como você diz, a piada não tome conta. Para nós, foi uma forma de contar uma história pessoal e nos divertir um pouco.

Ruth Bader Ginsburg em cena de “A Juíza” – Foto: Magnolia Pictures/CNN Films

O cinema e o jornalismo nem sempre colocam o foco em pessoas como Ruth Bader Ginsburg, que buscam mudar o sistema de dentro dele, e não se rebelando contra ele de forma mais tradicional, digamos. Este perfil diferente atraiu vocês?
Ela realmente não é uma protagonista típica: é intelectual, introvertida, reservada, quieta, não é a alma da festa. Decidimos nos aproveitar de quem ela é, porque este é o apelo dela. Ela não está lutando da forma como talvez esperássemos: é um outro tipo de heroína. Nos anos 1970, muitas mulheres estavam protestando nas ruas, fazendo barulho quanto à igualdade de gênero, e de forma muito eficaz. Ruth Bader Ginsburg afirma que o movimento das mulheres a ajudou: teria sido mais difícil fazer o que ela fez sem as mulheres nas ruas. Então ela não desaprova [os protestos], apenas opera de outra forma. Ela usou as habilidades que tinha – o cérebro e o conhecimento legal – para criar mudança nas cortes, enquanto outras pessoas estavam criando mudança de outras formas. Acho que, para seguirmos adiante, precisamos de todos os tipos de liderança.

Vocês se propuseram a ter uma equipe com muitas mulheres ou apenas aconteceu?
Foi algo deliberado. Na hora de escolher a diretora de fotografia, realmente queríamos uma mulher. Queríamos ir até a Suprema Corte com uma mulher para filmar uma pessoa tão importante do movimento das mulheres. Então escolhemos Claudia Raschke. Isso foi escalonando: chamamos a Carla Gutierrez para a montagem, a Miriam Cutler para compôr a trilha sonora…Não foi difícil encontrar mulheres talentosas e todas estavam muito motivadas em contar a história de Ruth Bader Ginsburg, o que trouxe muita energia ao projeto.

Quais reações vocês costumam ouvir dos homens da plateia?
Muitos homens nos agradecem pelo retrato de Marty D. Ginsburg [marido de Ruth Bader Ginsburg, que morreu em 2010], dizendo que muitas das histórias que envolvem mulheres hoje têm os homens como vilões – e com razão. Mas nesta história o homem apoiou sua mulher e, nas palavras dela mesma, a ajudou a fazer o que ela fez. Ruth Bader Ginsburg ajudou Marty no começo da carreira dele, e ele se tornou um advogado importante. Mas quando ele viu o que ela estava fazendo nos anos 1970 e o impacto que aquilo poderia ter, percebeu que a carreira dela era mais importante do que a dele. Então ele assumiu as responsabilidades da casa e a encorajou a cada passo. Ele se orgulhava dela, não se sentia ameaçado por ela. 

Ruth Bader Ginsburg não é uma personalidade muito conhecida no Brasil. Por que o público brasileiro deve ir ao cinema para saber mais sobre a trajetória dela?
A recepção internacional do filme me surpreendeu: ele passou na Europa, no Japão, em Israel, está no streaming na África…Embora eu não espere que as pessoas entendam ou se interessem pelo sistema político dos Estados Unidos, há algo muito básico e universal na história de Ruth Bader Ginsburg, uma mulher que enfrentou e superou enormes desafios – usando seu intelecto, sua determinação e seu senso de humor. É uma história que lida com questões legais, mas também é uma história humana. Então não é preciso ter grande familiaridade com a Suprema Corte americana. Fui ao Brasil recentemente exibir o filme e foi muito legal ouvir adolescentes falarem sobre o quanto tinham gostado. Elas não sabiam nada sobre Ruth Bader Ginsburg, mas mesmo assim tiraram algo do filme. Espero que as pessoas assistam e, talvez, percebam que ele também se relaciona com algumas das questões que as mulheres brasileiras estão enfrentando.

A Suprema Corte americana está no centro das atenções, conforme leis antiaborto são aprovadas em vários estados com o claro propósito de tentar reverter a decisão de Roe vs. Wade. Ao mesmo tempo, hoje há um número recorde de mulheres no congresso dos EUA. Como vê este momento da sociedade americana no que diz respeito aos direitos das mulheres?
Certamente cresceu a atenção e a tensão em relação à Suprema Corte, por causa do que aconteceu politicamente [a eleição de Donald Trump à presidência], e o papel de Ruth Bader Ginsburg na Corte é muito importante. Em geral, as mulheres americanas estão mobilizadas. A eleição de Trump iniciou uma avalanche de protestos, tanto contra as atitudes dele quanto contra algumas das políticas que ele representa. Isto se deu tanto nas marchas de mulheres como nas eleições legislativas do ano passado, que elegeram este número recorde de mulheres na Câmara e no Senado. Temos um longo caminho até a representação igualitária, mas avançamos muito e acho que estaremos igualmente energizadas na eleição presidencial. E no meio de tudo isso também temos o movimento Me Too. Terminamos o filme antes de o movimento ter realmente decolado, e ele afetou a recepção das pessoas. Acho que conhecer a história de Ruth Bader Ginsburg foi inspirador para muitas mulheres. É como olhar para trás, ver como avançamos e analisar as estratégias para avançarmos mais.

Manifestantes protestam contra a nova e dura lei de aborto do estado americano da Geórgia – Foto: Elijah Nouvelage/Getty Images/AFP

Como foi a experiência de concorrer ao Oscar? Acompanho você e a Julie no Twitter e tive a impressão de que se divertiram bastante na temporada de prêmios. [Risos]
[Risos] Foi uma loucura! Eu não sabia o que era a campanha para o Oscar até estar no meio dela. Basicamente, você é convidada a participar de muitos eventos, outros prêmios, debates, apresentações…é um pouco louco, mas muito divertido. Foi fantástico conhecer os outros cineastas, e como nos víamos em tantos eventos, acabamos ficando amigos. Também conhecemos muitas pessoas do cinema que não teríamos a oportunidade de conhecer. E quando dizíamos que éramos as diretoras do filme sobre a Ruth Bader Ginsburg, todos nos perguntavam como ela estava, porque naquele momento ela estava internada, tinha feito uma cirurgia. Acabamos comprando um cartão de melhoras para ela, que foi assinado por um monte de gente de Hollywood. Ninguém disse “não” para nós, todo mundo assinou: Bradley Cooper, Lady Gaga, Steven Spielberg, Spike Lee escreveu “para a juíza do Brooklyn”. Todo mundo ficou super feliz em assinar. E era legal ter uma desculpa para ir até a Glenn Close e falar: “Você gostaria de assinar esse cartão?” [risos] Foi uma experiência muito divertida.

Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
É preciso ter muita determinação e entender como dar um passo atrás do outro e não se desmotivar. Quando Ruth Bader Ginsburg nos disse que ainda não queria ser filmada, poderíamos ter desanimado e pensado: “Ela tem mais de 80 anos, se não for agora, quando vai ser?”. Mas preferimos pensar que ela tinha dito ainda não, e não de jeito nenhum. E aí pensamos em uma forma eficaz de abordá-la novamente depois de um tempo, sem incomodá-la. Então é preciso determinação, estratégia e dar um passo após o outro. Tente ter uma atitude otimista: se você realmente quer fazer filmes, vai encontrar uma forma de fazer filmes.


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema

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