Depois de mais de 20 anos de carreira no teatro, a atriz mineira Grace Passô vive a interessante experiência de ser descoberta por outras plateias na tela do cinema. Premiada pelo trabalho em Praça Paris (2018), de Lucia Murat, ela agora estrela Temporada, filme dirigido por André Novais Oliveira que foi o grande ganhador do Festival de Brasília e chegou aos cinemas na quinta-feira (17).
Estreias: Os filmes escritos, dirigidos e estrelados por mulheres que chegam às salas
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Temporada é uma produção da empresa mineira Filmes de Plástico e foi rodado na periferia de Contagem com um elenco formado por atores com diferentes níveis de experiência. Grace Passô interpreta Juliana, uma mulher recém-chegada à cidade que começa a trabalhar no controle de endemias, visitando moradores da periferia para verificar se há focos de proliferação de mosquitos. Vivendo longe do marido, que ainda não se transferiu para Contagem, Juliana conhece pessoas, faz novos amigos e passa por grandes transformações.
“Não haveria possiblidade de a personagem deste filme não ser mulher”, opinou a atriz, em entrevista ao Mulher no Cinema. “As transformações vão construindo independência. Juliana vive um momento de se ver mais, de autocuidado. Pelo encontro com outras pessoas, vai reconfigurar sua vida e seu olhar para o mundo.”
A estreia de Temporada ocorreu na mesma semana em que a atriz foi homenageada pela Mostra de Cinema de Tiradentes, uma das mais importantes do país. E se este tipo de prêmio geralmente celebra o trabalho já realizado por um artista, a organização do festival buscou olhar também para o que “ainda virá” de Grace Passô nas telas. A atriz já tem novos trabalhos pela frente, como No Coração do Mundo, de Gabriel e Maurílio Martins, e um filme com o diretor Cristiano Burlan.
Na entrevista a seguir, Grace Passô fala sobre Temporada, a homenagem em Tiradentes e a força do trabalho feito por artistas negros no Brasil: “A arte preta é um farol para a arte brasileira.”
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Juliana é uma mulher que passa por grandes transformações, mas de forma mais interna, sem que as emoções sejam verbalizadas. Como construiu a personagem?
Na minha cabeça, não haveria possibilidade de a personagem deste filme não ser mulher, porque são transformações que vão construindo independência. Ela vive um momento de construção, de se ver mais, de autocuidado. O ângulo que se prioriza é o dela, de como ela, por meio do encontro com outras pessoas, vai reconfigurar sua vida e seu olhar para o mundo. Acho muito simbólico a personagem ser uma mulher do nosso tempo. Desde o início, entendi que ela falava pouco e observava muito. Fui me colocando nas situações, que são próximas das que vivi e das que pessoas próximas viveram: mudar de espaço, de cidade, de relações, de trabalho. Uma das qualidades de Temporada, para mim, é buscar referências muito próximas do nosso universo – do André, da Filmes de Plástico, meu. Essa mulher poderia ser minha mãe, ou eu mesma. Tudo o que esse filme levanta é do meu universo também: do cabelo ao carro, tudo é muito próximo. Então a construção foi por muita conversa e por um mergulho nas dimensões das cenas.
“No teatro, me aproximei das funções de criação por gostar delas, mas também para criar espaço para mim. Uma parte considerável da arte no Brasil é muito elitizada e acaba olhando para os corpos de forma elitizada também. Me aproximar das funções conceptivas me fez criar um campo para existir plenamente da forma que acredito.”
A cidade também é personagem do filme, não só as paisagens externas mas as próprias casas das pessoas, o entulho no quintal etc. Este cenário informou seu trabalho de alguma forma?
Sem dúvida. Não à toa os planos duram muito tempo – na contramão, talvez, da tendência do cinema de mercado. Esse filme convida a de fato estar. Você fica com aqueles personagens e com aquela paisagem. Você fica olhando muito tempo para o esgoto, para a vista do terraço. Sinto no roteiro as estratégias para esse convite. E isso tem a ver com o fato de que o filme é produzido, gestado e concebido por gente de lá, daquela paisagem. Não são astronautas ou colonizadores que chegaram para explorar aquela imagem e torná-la algo que não é. É quase uma exposição escancarada do que aquele espaço é e do que aquelas pessoas são.
É um filme sobre pessoas comuns, no sentido de que nada de extraordinário acontece com elas além da própria vida, que já é o extraordinário. Você gosta de interpretar personagens assim?
Gosto. [Esses personagens] são tão parte da minha vida que até esqueço [que existe] o contrário. Quando comecei a escrever teatro, tinha acabado de me formar e todos os exercícios que tinha feito eram com personagens russos, ingleses. Claro, eles não têm nacionalidade. Mas gosto de uma frase da pesquisadora Leda Maria Martins que diz: “nenhuma obra é universal”. À medida em que esses clássicos nos formam, aprendemos que são universais porque têm a capacidade de ir além do tamanho das terras e de alcançar o inconsciente coletivo. Mas ela está querendo dizer que uma obra sempre é a perspectiva de um lugar. Nenhuma obra, nenhuma saga heróica falará sobre tudo. Quando comecei a escrever teatro, tive um desejo, na época quase inconsciente, de criar dentro do meu universo simbólico. Escrever sobre um lixeiro, por exemplo, era muito profundo, significava muito para mim. Escrevi com o desejo de que a arte não fosse algo a ser conquistado, mas que eu conseguisse colocar as coisas do meu universo simbólico na arte que fosse fazer.
“A produção de maior potência na arte brasileira, hoje, tem sido feita por artistas negros. A produção negra é um grande farol para a arte brasileira: traz assunto, consistência, noção do gesto político, mudança de perspectivas na estrutura da arte. É um olhar que vem na contramão de certas noções de beleza que pareciam estáveis, que traz contundência no sentido de discutir e de mudar o público.”
Após tantos anos de carreira no teatro, tem sido interessante ser descoberta por uma nova plateia com seus trabalhos no cinema?
Acho massa. Sinto que estou continuando a trabalhar, mas de outro modo. No teatro, me aproximei das funções de criação, como dramaturgia e direção, por gostar delas, mas também para criar espaço para mim. Uma parte considerável da arte no Brasil é muito elitizada e acaba olhando para os corpos de forma elitizada também. Me aproximar das funções conceptivas me fez criar um campo para existir plenamente da forma que acredito. Ou seja, não só esperar as pessoas me chamarem para alguma coisa, mas poder criar essas coisas e imprimir um olhar sobre a sociedade. Não sei porque não fiz cinema antes, acho que porque estava fazendo outras coisas. A aproximação com a Filmes de Plástico significa muito: é um tipo de cinema que me interessa.
As mulheres negras ainda são pouco representadas no cinema brasileiro. Na sua experiência, tanto em relação ao que você faz quanto ao que você assiste, vê diferença entre ser uma mulher negra no teatro e ser uma mulher negra no cinema no Brasil?
Para mim, a produção de maior potência na arte brasileira, hoje, tem sido feita por artistas negros. A produção negra é um grande farol para a arte brasileira: traz assunto, consistência, noção do gesto político, mudança de perspectivas na estrutura da arte. É um olhar que vem na contramão de certas noções de beleza que pareciam estáveis, que traz contundência no sentido de discutir e de mudar o público. O que a arte preta vem fazendo, também, é trazer um público mais preto para esse circuito de arte. E está trazendo discussões que rolam há muito tempo entre a galera preta. Por exemplo: o que é ser uma atriz preta no Brasil? É exatamente ser uma mulher negra no Brasil. Existe um imaginário, um recorte de cinema brasileiro extremamente limitador para pessoas como eu, que é reflexo direto do racismo estrutural do país. Durante muito tempo, seja na televisão ou no cinema, sempre me chamaram para os mesmos personagens, que são ligados à subserviência. E não digo em questão de profissão. A questão é que esses personagens, quando são escritos por meio de um olhar que não é preto, de modo geral são subservientes à trama: mulheres que não amam, ou que têm o tamanho da consciência branca em relação ao racismo que vivem. Aprendi desde muito cedo a tentar me proteger desse olhar, que é um pouco o que as mulheres negras fazem. Não à toa comecei a escrever: foi também uma proteção minha.
Isso tem melhorado ou ainda não?
Existe um respeito pelo meu trabalho, mas dos roteiros que recebo, talvez 80% sejam de pessoas que estão começando a exercitar outro olhar. Mas isso ainda é muito fraco, porque o racismo brasileiro é de um silenciamento muito profundo e longo. Mesmo as pessoas bem intencionadas, digamos assim, estão muito aquém da discussão que acontece entre as militâncias. Existe uma tentativa de escrever personagens que vão além do modo como se convencionalmente se representa uma mulher negra na ficção. Mas é ainda muito frágil, muito distante quando não é feito por pessoas negras. Ainda é uma ideia muito limitada do que o meu corpo pode fazer, o que tem a ver com o fato de eu ser negra, mas também mulher, gorda, tudo. Existe a frase clássica de que a arte não imita a vida, ela é a vida. Então os filmes, de modo geral, são o que a sociedade é.
“No contexto de homenagem há um universo do nosso tempo. Acho normal que consigam me ver na perspectiva do futuro, porque quem traz um olhar para o futuro para a arte, hoje, no Brasil, são os pretos e as pretas.”
Este ano você é a homenageada da Mostra de Cinema de Tiradentes, e no comunicado à imprensa a organização justifica assim a escolha do seu nome: “Num tempo em que muita gente não vê futuro adiante, decidimos apontar algum futuro pelo que ainda virá dessa atriz”. É como se dissessem que as suas perspectivas e as da sua carreira são as perspectivas do cinema brasileiro e de todos nós. Como entende essa frase?
Estava conversando com uma amiga sobre o lugar da homenagem e chegamos à uma conclusão que adoro: sou uma boa desculpa. É claro que trabalho há 22 anos com teatro e fico muito feliz com o caminho que tenho. Escolhi a maioria dos meus trabalhos, venho de uma família de operários, na qual ninguém trabalhava com arte, e de fato isso é uma grande vitória. Me sinto como alguém que traçou um caminho raro: trabalho em lugares diferentes, com grupos diferentes e em circuitos diferentes, mas com coisas nas quais acredito. E não fico esperando convites: como a maioria das mulheres brasileiras, sou uma pessoa que vai atrás para criar seu campo existencial. Se parar para pensar, é isso. Sou mulher, negra, brasileira, estou completamente fora dos padrões que a mídia criou para a ilusão da mulher. Quando falo “boa desculpa”, é no sentido de que muitas mulheres no Brasil fazem isso, não só na arte. Muitas mulheres negras tem essa saga na vida. Nosso país foi construído com isso, a força da mulher é essencial. E em relação às mulheres negras isso é nítido, tanto que as reflexões que vêm desse universo nos dão perspectiva de futuro. Tenho dificuldade com a palavra “representar”, mas, beleza, acho que de alguma forma acabo representando uma força dessa perspectiva da mulher brasileira. Estou representando o que a força e a inteligência preta vêm trazendo para a arte.
Então quando você diz “boa desculpa” não é em um sentido pejorativo, e sim no de a homenagem a você representar algo maior do que você.
Isso, de não estar ali só por minha causa. Claro que estou ali por mim, pelo trabalho que faço, não escolheram qualquer pessoa. Mas estou ali, também, por uma construção que vêm muito além de mim. Nesse contexto de homenagem há todo um universo do nosso tempo. Isso que você leu [a justificativa] tem a ver com o que falei: a arte preta é um farol, vem com algo muito forte, contundente e necessário para a sociedade inteira. Então acho normal que consigam me ver nessa perspectiva do futuro, porque quem traz um olhar para o futuro para a arte, hoje, no Brasil, são os pretos e as pretas. Sinto que estou representando isso e a homenagem, para mim, triplica.
Que conselho você daria para as mulheres que querem ser atrizes?
Acho que a atuação é um trabalho de inteligência e de experiência do corpo. A inteligência da atuação é a da escuta: quem atua, escuta e vê. É um grande observador, sempre. E a ideia de atuação passa por uma trajetória de conhecimento do seu próprio corpo, de pensar nele na sua dimensão maior: não só a imagem que se cria para o mundo, mas a [parte] de dentro. Se quer ser atriz, tem de mergulhar no universo da arte que a toca e a afeta. E se não tem acesso à arte, vá bolando estratégias para acessá-la. A arte está em todo lugar, é sempre um cantinho de resistência em seus lugares – dos mais elitizados às pessoas com maior vulnerabilidade. Então é tentar mergulhar na arte e na sensibilidade. É estudar e expandir esse campo de percepção mais sensível, pois através da expansão dessa sensibilidade, dessa outra língua que é a arte, é possível você se aproximar do que quiser.
Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema
Foto do topo: Leo Lara/Universo Produção