“GLOW” usa luta livre para falar da mulher em Hollywood

Na primeira cena de GLOW, nova série original da Netflix, a personagem principal, Ruth Wilder, encara a câmera em um teste para um papel. Após dar tudo de si em um breve, mas intenso monólogo, recebe o olhar confuso da diretora de elenco: aquelas falas eram as do protagonista masculino. Ruth, então, começa novamente, agora com as partes do diálogo que cabiam ao papel feminino: “Desculpe interromper”, ela diz, “mas sua mulher está na linha dois.”

Esta cena dá o tom do que é a primeira temporada de GLOW: uma série ambientada no universo da luta livre, mas que também faz um recorrente comentário sobre as mulheres em Hollywood.

Criado por Liz Flahive e Carly Mensch, que trabalharam juntas em Nurse Jackie (2009-2015), GLOW é inspirado em um programa do mesmo nome que foi ar na televisão americana na década de 1980. A série original, cujo título é uma abreviação de Gorgeous Ladies of Wrestling (ou Lindas Mulheres da Luta Livre), durou quatro temporadas e fez sucesso combinando combates no ringue e esquetes de comédia.

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A versão de Liz e Carly conta uma história ficcional e acompanha a preparação para a filmagem do episódio piloto de GLOW. Como a maioria das atrizes – ou lutadoras – nunca pisou num ringue, é preciso que aprendam e treinem os movimentos, enquanto o diretor decadente Sam Sylvia (Marc Maron) e o produtor iniciante Bash (Chris Lowell) criam as personas de cada uma: a loira de corpo perfeito torna-se a queridinha da América; a jovem de sotaque britânico vira a nerd sexy; a menina libanesa finge ser terrorista; a cambojana, um símbolo genérico da Ásia. Em outras palavras, Sam e Bash – ou seja, os homens no comando do programa – criam personagens femininas baseadas em estereótipos e que apelem, principalmente, à imaginação do público masculino. Soa familiar?

GLOW é uma série claramente disposta a mostrar que, para as mulheres do entretenimento, muito do que se via na década de 1980 não mudou tanto assim. Ruth é o retrato da falta de oportunidade para atrizes em Hollywood: tida como comum demais, tem dificuldade para conseguir até o papel banal da secretária. Do outro lado do espectro está Debbie, a atriz de novela que, loira e linda, nunca conseguiu ser levada a sério. A princípio amigas e depois rivais, Ruth e Debbie vão parar em GLOW pelo mesmo motivo: porque o cinema e a televisão não ligam para elas.

O mesmo pode se dizer sobre suas colegas de ringue, um grupo que chama a atenção pela diversidade. A formação do elenco é a semelhança mais óbvia entre GLOW e Orange Is The New Black – e não por acaso, Jenji Kohan, criadora de Orange, é uma das produtoras executivas de GLOW, além de Carly Mensch ter trabalhado como roteirista e produtora do drama sobre a penitenciária de Litchfield. Os dois programas têm a mesma questão central: acompanhar o convívio feminino em ambientes mais comumente retratados como masculinos – em Orange, a prisão; em GLOW, o ringue.

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GLOW, porém, é uma série mais cômica e leve. Embora esboce alguns comentários sociais, não tem a mesma pretensão de discutir as relações de raça ou de representar a comunidade LGBT. Além disso, não tem grandes vilões como os guardas ou os interesses corporativos retratados em Orange Is The New Black, e mesmo o diretor machista e sem paciência vai mostrando outro lado e ganhando certo carisma com o passar dos episódios. Colabora para o tom leve o próprio universo fake da luta livre, bem como a ambientação nos anos 1980, presente nos figurinos coloridos, nos cabelos armados e na trilha sonora que inclui “The Warrior”, de Scandal e Patty Smyth, e “Stir It Up”, de Patti LaBelle, entre outros hits que devem agradar aos nostálgicos. Uma cena sobre um teste de gravidez, no qual a personagem espera longamente pelo resultado, também observa a passagem do tempo com bom humor.

No centro da trama, Alison Brie rende boas risadas, seja encarnando uma soviética durona ou encenando uma luta sozinha (talvez a melhor sequência de toda a temporada). Ruth começa a série como uma personagem quase patética, humilhada pelas injustiças do mercado e por suas próprias escolhas equivocadas. Mas sua paixão e comprometimento com o trabalho se mostram comoventes, e é interessante acompanhar como ela encontra forças em um ambiente profissional tão distante do qual sonhava. No papel de Debbie, Betty Gilpin também se destaca, dando profundidade a uma mulher subestimada por todos, inclusive pelo marido, e que troca uma vida aparentemente perfeita pela excitação dos ringues.

Ruth e Debbie chegaram à luta livre por causa do descaso de Hollywood com as mulheres. Mas, como muitas de suas companheiras, também se encontraram ali. GLOW não ignora que o esporte alimenta o imaginário dos homens, mas subverte a ideia de que as mulheres são apenas corpos a serem vistos. Em meio a estereótipos ofensivos e golpes coreografados, elas se descobrem, crescem, ficam mais fortes. Vale lembrar que todos os episódios da primeira temporada tem ao menos uma mulher na direção ou no roteiro. Coincidência?

Veja o trailer de GLOW:

https://www.youtube.com/watch?v=-LKFqyeFpoE


Este filme passa no teste de Bechdel-Wallace. Clique para saber mais.“Glow”
Série original da Netflix
Criada por: Liz Flahive e Carly Mensch
Elenco: Alison Brie, Betty Gilpin, Marc Maron, Britney Young.
Episódios na primeira temporada: 10

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