Com sustos e humor, “Nós” reflete sobre o horror que vem de dentro

Uma garota assiste a um comercial de televisão na primeira cena de Nós, novo trabalho do diretor Jordan Peele após o sucesso de Corra! (2017). O ano é 1986 e o anúncio é da iniciativa beneficente Hands Across America, segundo a qual 6 milhões de americanos dariam as mãos para formar uma linha humana de uma ponta dos Estados Unidos à outra, e assim arrecadar US$ 50 milhões para combater a pobreza. Tal iniciativa de fato existiu e contou com a participação de políticos e celebridades, mas foi um fracasso: houve “buracos” sem gente por vários quilômetros e o total arrecadado ficou em apenas US$ 15 milhões. 

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Quando o Hands Across America aparece na tela, é difícil saber qual será sua importância narrativa. Mas como Peele não costuma fazer menções gratuitas, sabe-se que ali tem algo mais. E, de fato, o comercial (que o diretor disse ter encontrado por acaso no YouTube) dá o tom do filme: combinando sustos e humor, Nós aborda o contraste entre as promessas da sociedade americana e a sociedade americana como de fato ela é.

Lupita Nyong’o interpreta Adelaide, uma mulher que viaja para a praia com o marido e os dois filhos. O lugar lhe é incômodo por trazer lembranças de uma experiência traumática vivida durante a infância, sobre a qual nunca conversou com ninguém. Conforme as memórias do passado parecem mais próximas, Adelaide tenta convencer o marido a ir embora. Mas ele só leva suas queixas a sério quando uma família de quatro pessoas, todas inteiramente vestidas de vermelho, aparece no jardim da casa. Não se trata, porém, de um grupo de invasores comuns: os quatro são exatamente iguais à família de Adelaide, e estão claramente dispostos a eliminá-los.

Nós não é um filme de terror especialmente sanguinolento, mas Peele mantém tensão quase constante. Seu estilo remonta principalmente ao de O Iluminado (1980), mas há uma enormidade de outras referências para divertir fãs de easter eggs – das camisetas usadas pelos personagens a cenários e frases emprestados de outros longas. É o tipo de produção que tende a ser analisada à exaustão, permitindo que os fãs discutam sobre o motivo de o número 11 aparecer tantas vezes ou o simbolismo dos vários coelhos em cena.

Para os menos aficcionados do terror, o atrativo será a reflexão proposta por Peele a partir do uso do duplo. Ainda que o protagonismo seja de uma família negra, Nós não está tão especificamente centrado na questão racial quanto Corra!. Aqui, o horror é usado como alegoria para abordar as múltiplas desigualdades e divisões da sociedade americana – o que, é claro, também engloba fortemente a questão racial. No país do “American way of life” e do Hands Across America, uns têm muito e outros tão pouco, uns oprimem e outros são oprimidos – mas talvez oprimissem também, fosse-lhes dada a oportunidade. “Quem são vocês?”, pergunta um personagem à líder dos dopplegängers. “Nós somos americanos”, ela responde. O espelho de Peele está virado para o público: os piores monstros, ele argumenta, às vezes estão em nós mesmos.

É uma reflexão interessante, que o diretor leva com ironia e sarcasmo (uma das sequências mais violentas, por exemplo, acontece ao som de “Good Vibrations”, dos Beach Boys) e cenas muito bem filmadas. O embate entre Adelaide e sua sombra é especialmente notável, um misto de combate e balé ao mesmo tempo bonito e brutal. O filme funciona, também, graças à excelente atuação de Lupita Nyong’o, que faz um trabalho minucioso para diferenciar as duas personagens não apenas na expressão, mas também na linguagem corporal e na voz.

Nós perde fôlego no final, quando o jogo de gato e rato entre as duas famílias torna-se um pouco repetitivo (a ação, aliás, se passa basicamente em um dia), e principalmente quando o filme assume um tom excessivamente expositivo. É interessante que tantos textos online estejam se dedicando a “explicar” o final de Nós quando o longa justamente se beneficiaria de explicar menos. Uma conclusão mais aberta elevaria a outra potência aquela que é a grande questão da trama: em um mundo tão injusto e desigual, há como separar mocinhos e vilões?

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Este filme passa no teste de Bechdel-Wallace“Nós”
[Us, EUA, 2019]
Direção: Jordan Peele
Elenco: Lupita Nyong’o, Winston Duke, Elisabeth Moss.
Duração: 116 minutos


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema

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