Para marcar o Dia Nacional do Documentário Brasileiro, comemorado em 7 de agosto, e estimular os espectadores a conhecerem o trabalho de mais documentaristas brasileiras, o Mulher no Cinema perguntou a várias cineastas: qual documentário brasileiro dirigido por uma mulher você recomenda e por quê? Elas puderam escolher filmes de qualquer ano, de curta ou longa-metragem. O texto abaixo é de Tatiana Lohmann, diretora de Slam: Voz de Levante (2018), entre outros:
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“Escolhi falar de Entre a Luz e a Sombra (2009), de Luciana Burlamaqui, porque esses dias assisti a Cuba e o Cameraman, de Jon Alpert. Luciana Burlamaqui é discípula dele, e ter visto o filme (só tinha assistido um filme mais curto de Jon, e há muitos anos) me fez lembrar de Entre a Luz e A Sombra. Creio que me fez entender melhor o filme, ou os caminhos que a diretora escolheu pra contar essa história.
Começo pelo fio que o Jon me trouxe. Pra quem não conhece, Jon Alpert é um jornalista premiado, alguém de quem ouvi falar pela primeira vez sob a alcunha de vídeorreporter – um cara que sozinho, com sua câmera e bastante ousadia, vem documentando grandes acontecimentos da história mundial desde os anos 1970, inclusive conflitos armados. Jon é um jornalista cujo olho é a câmera e parece adentrar qualquer situação já com ela em punho, o que gera um material vivo, onde a composição formal das imagens é sacrificada em função de um acesso direto às pessoas e situações, valorizando mais as relações que se estabelecem com as pessoas do que a estetização da imagem. Bom, essa é a minha percepção, e embora eu tenha trabalhado muito dessa maneira, filmando, produzindo e fazendo som sozinha, tenho um pendor pela composição fotográfica cuidadosa, um desejo de produzir imagens mais ‘simbólicas’ em contraponto a essa captação mais ‘crua’ da realidade. Mas reconheço que estar sozinha em campo, munida da câmera e de genuíno interesse pelas histórias que se documenta, permite um acesso muito particular, uma relação pessoa a pessoa, íntima.
Pensando nisso foi que lembrei de Entre a Luz e A Sombra, um filme que “investiga a violência e a natureza humana a partir da história de personagens que tiveram seus destinos cruzados no complexo Carandiru”, diz a sinopse. E ainda: “Ao longo de sete anos o documentário acompanha os passos da dupla de rappers 509-E, formada por Dexter e Afro-X dentro do presídio; da atriz Sophie Bisilliat, que dedica sua vida para humanizar o sistema carcerário; e de um juiz que acredita em um meio de ressocialização mais digno para os prisioneiros”. O filme aborda essas histórias e esse campo temático espinhoso com intimidade, de perto.
Ao lembrar do filme, percebi que ele me marcou – apesar de ter demorado pra me deixar fisgar por ele, pois o modo de abordar as situações, que me lembrava uma grande reportagem, não me seduziu de cara. Mas depois de atravessar as suas duas horas e meia de duração, impossível não ser tocada pela narrativa que dá conta, através da história dramática destas pessoas, de abordar o desumano sistema carcerário brasileiro, num escopo que passa pela rebelião do Carandiru, pela criação do Primeiro Comando da Capital (PCC) e pelo fim do presídio. Os sete anos anos durante os quais a diretora acompanhou a história, por um momento me pareceram resultar num filme longo demais. Mas ao final reconheci que, por nos colocar em contato com uma curva narrativa tão longa, particularmente nas trajetórias de Dexter e Sophia (que me parecem os personagens centrais), permite chegar numa complexidade que integra muitas nuances. Sem julgar, entre a luz e a sombra. Muito humano.
Olhando agora algumas matérias sobre o filme, percebo, surpresa, que todas falam dele como um documentário sobre violência e sistema prisional. Mas ficou forte na minha memória a relação entre Dexter e Sophia. O filme também é uma história de amor, marcada pela desigualdade de contextos de classe e raciais. Ela, uma mulher branca de classe média alta. Ele, um homem negro criado na favela. Ela livre, ele preso. O rompimento dos dois é revelador de um choque de culturas. Sophia certamente foi criada para não aceitar um homem que a tratasse de maneira machista ou até mesmo violenta; para Dexter, a maneira como ele trata Sophia não deve destoar em nada da persona que ele precisou encarnar pra se tornar um ‘bandido bom’, como se diz a certa hora no filme, e sobreviver na cadeia. Achei curioso que esta camada da narrativa tenha merecido menos atenção da critica – pelo menos as que eu encontrei. Me parece um dos aspectos muito reveladores de contradições cruéis da sociedade brasileira que o filme traz. E uma feliz escolha da diretora, ela mesma branca, provavelmente de classe média, que pôde abordar um universo que lhe é estranho pela mediação de uma personagem que se relaciona com este universo por um prisma cultural semelhante.”