O que um quadro do “Caldeirão do Huck” pode dizer sobre a mulher no cinema?

Um pico de acessos muito alto e muito rápido, pouco usual para uma tarde de sábado, chamou a minha atenção durante o rotineiro acompanhamento da audiência do Mulher no Cinema neste fim de semana. Igualmente curiosa se mostrava a lista de textos mais lidos do dia: o primeiro era uma conversa com a diretora Laís Bodanzky publicada há quase um ano; o segundo, uma entrevista com Tata Amaral ainda mais antiga, de junho de 2016.

Anna Muylaert: “Sofri muitos boicotes e rasteiras machistas”
Laíz Bodanzky: “A conta sempre ficou para a mulher”
Tata Amaral: “Busco trabalhar nossa relação problemática com o passado”

Recorri ao Google por uma explicação e a encontrei em uma notícia da Gazeta do Povo sobre a edição de sábado (23) de “Quem Quer Ser um Milionário?”, quadro do Caldeirão do Huck, exibido pela Globo. O texto contava que um dos participantes, o ex-diretor de futebol do Atlético-PR Alberto Maculan, perdeu a chance de ganhar R$ 1 milhão ao errar a resposta da pergunta que valia R$ 15 mil: “Anna Muylaert, Laís Bodanzky e Tata Amaral são brasileiras consagradas em qual área?”

A princípio, achei que o ocorrido valeria um post bem-humorado nas redes sociais (Muylaert e Amaral, aliás, publicaram sobre o caso em seus perfis). Mas após ver o vídeo do programa, percebi que se tratava de um episódio sintomático.

Maculan não foi o único a não saber responder qual a área de atuação das três brasileiras – todas com carreira consolidada, filmes premiados e lançamentos recentes. Ao consultar a plateia do programa, recebeu palpites divididos, com a maioria dos presentes escolhendo “esporte” e “moda”. Decidiu ligar para o cunhado, que não conseguiu ajudar. Usou, então, o último recurso possível: eliminar metade das alternativas. Diante das categorias “cinema” e “música”, optou pela última, dizendo: “Nunca vi filme com elas.” Depois de Huck revelar a resposta correta, Maculan reforçou: “Nunca ouvi o nome delas.”

Obviamente, ninguém é obrigado a saber tudo sobre todos os assuntos, e os interesses de cada pessoa variam tanto quanto os níveis de acesso à informação e à cultura. Poderíamos especular se nomes como Bruno Barreto, Daniel Rezende, Fernando Meirelles, José Padilha, Kleber Mendonça Filho, Marcelo Gomes e Walter Salles criariam a mesma dúvida, mas outros aspectos chamam a atenção. Por exemplo, o fato de o participante ter pensado imediato e exclusivamente na possibilidade de as mulheres citadas serem atrizes, o que fica claro quando diz que “nunca viu filme com elas”. Além disso, o pico de audiência no Mulher no Cinema (e buscas como “qual a profissão de Tata Amaral?”, responsáveis por muitos acessos ao site) sugere que também um grande número de espectadores ficou intrigado com a pergunta. O que, por sua vez, mostra o poder da televisão e do cinema em fazer avançar questões relacionadas à representatividade e gênero.

O Mulher no Cinema foi criado há três anos para dar voz às profissionais do audiovisual e ajudar o público a ter contato com o trabalho delas. O site estava no ar há menos de um mês quando o programa CQC, da Bandeirantes, exibiu uma entrevista machista de Rafael Cortez com atrizes da série Orange Is The New Black. Se alguém me perguntava o motivo de criar um site sobre a mulher no cinema, era a este vídeo que eu costumava recorrer (além das estatísticas, sempre fundamentais). O vídeo do Caldeirão do Huck tem o mesmo poder de síntese para mostrar a necessidade de se falar sobre a desigualdade de gênero no cinema e destacar o trabalho das mulheres por trás das câmeras – sem esquecer de questões intrinsicamente ligadas ao tema, como a participação das mulheres negras e periféricas e a representatividade da comunidade LGBT.

Não há dúvida de que muita coisa aconteceu entre o vídeo do CQC e o do Caldeirão do Huck: o debate sobre a mulher no cinema tornou-se mais forte e mais público, e inúmeras iniciativas foram criadas para divulgar o trabalho das cineastas, combater o assédio, melhorar o acesso a financiamento, coletar dados etc. Mas qual o real alcance dessas discussões e iniciativas? A quem elas estão chegando? Sem querer, o game show da Globo mostra que, ao contrário do que as bolhas virtuais e reais às vezes possam sugerir, ainda é preciso falar mais – e com mais gente.


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema.

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