Documentário recupera trajetória de Alice Guy-Blaché, primeira cineasta da história

Alice Guy-Blaché trabalhava como secretária na companhia francesa Gaumont quando, em 1895, foi a uma das históricas exibições dos irmãos Lumière que depois seriam consideradas o marco inicial do cinema. Os filmes daquele primeiro momento eram breves registros de cenas da vida – pessoas saindo de uma fábrica, um trem chegando à estação. Mas Guy-Blaché, que era filha de um livreiro e gostava de teatro, achou que era possível fazer mais: que aquela nova invenção poderia ser usada para contar histórias.

Após a exibição, ela perguntou ao chefe, Léon Gaumont, se poderia usar equipamentos da companhia para filmar algumas cenas. Ele concordou, com a condição de que não atrapalhasse o trabalho como secretária. Foi assim que em 1896, apenas um ano depois da criação do cinema, Guy-Blaché filmou A Fada do Repolho, o primeiro filme dirigido por uma mulher e um dos primeiros filmes de ficção dirigidos por qualquer pessoa. Foi o início de uma carreira brilhante na França e nos Estados Unidos, durante a qual ela fundou seu próprio estúdio e dirigiu mais de mil curtas e longas dos mais variados gêneros cinematográficos.

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Diante de tudo isso, como é possível que o nome de Alice Guy-Blaché seja tão pouco conhecido? Se esta pioneira artista francesa nascida em 1873 foi uma das primeiras pessoas a filmar e a perceber o potencial narrativo do cinema, se ajudou a criar e a desenvolver a linguagem cinematográfica, por que os livros e cursos especializados não falam sobre ela como falam dos Lumière, de George Méliès e até do próprio Gaumont?

A americana Pamela B. Green se perguntou o mesmo quando viu Shirley McLaine falar sobre Guy-Blaché em Reel Models: The First Women of Film (2000), documentário para a TV dirigido por Susan Koch. Interessada em saber mais, Green decidiu fazer sua própria pesquisa em Be Natural: A História Não Contada da Primeira Cineasta do Mundo, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (29), com distribuição da Arteplex Filmes.

Alice Guy-Blaché no set de “A Vida de Cristo”, filme de 1906 – Foto: Divulgação

Green dedicou mais de oito anos ao documentário, seu primeiro longa-metragem, começando com um financiamento coletivo e depois contando com um amplo time de doadores que inclui o ator e diretor Robert Redford, a produtora Jamie Wolf e o fundador da Playboy, Hugh Hefner. Em entrevista por telefone ao Mulher no Cinema, a diretora definiu o período de pesquisa como uma “montanha-russa emocional”. “Tinha muita paixão, mas poucas esperanças de que iria encontrar qualquer coisa.”

Um dos primeiros achados foi uma entrevista concedida pela filha de Guy-Blaché, Simone, em 1985, e recuperada por Green após uma peregrinação por laboratórios que envolveu até colocar a fita Ampex em um forno. “Quando assisti àquela fita, pensei: ‘isso aqui é o filme”, contou a diretora. Mas descobertas preciosas continuariam sendo feitas até mesmo na pós-produção: pouco antes de Be Natural fazer sua estreia mundial no Festival de Cannes de 2018, Green teve acesso a imagens de Guy-Blaché no set de A Vida de Cristo (1906), o projeto mais ambicioso que realizou na França, um filme de 33 minutos com dezenas de figurantes e cenários.

Do começo ao fim deste processo, a diretora de Be Natural também se conectou a muita gente. “O mais emocionante foi encontrar os descendentes, as pessoas que a chamavam de ‘tia’ e guardavam fotos e cartas. Isso humanizou a Alice para mim”, disse Green. “Foram muitas descobertas, e todas me deixavam entusiasmadas porque eram novas peças que a colocavam de volta à história.”


“Os arquivistas são pessoas incansáveis, determinadas, que trabalham duro, que tiram tempo para analisar o inventário, que têm mente aberta para questionar o que está na prateleira e para olhar as novas informações que podem mudar a história do cinema. Sem essas pessoas e sem esses lugares, não há como preservar peças importantes que podem mudar o modo como encaramos o passado.”

– Pamela B. Green, diretora de ‘Be Natural’, em entrevista ao Mulher no Cinema


Be Natural, que tira seu título de uma orientação que a diretora dava aos atores (“sejam naturais”), não é o primeiro documentário sobre Guy-Blaché. Além do já mencionado filme de Susan Koch, a francesa também fora tema de Le Jardin Oublié: La vie et L’oeuvre d’Alice Guy-Blaché, produção canadense de 1996 dirigida por Marquise Lepage que contou com a participação da nora da cineasta, Roberta Blaché, e da neta, Adrienne.

O filme de Pamela B. Green é mais longo e bem acabado, mostra trechos de mais filmes, tem pesquisa mais robusta e maior apelo comercial, a começar pelo fato de ser falado em inglês e contar com a narração da atriz e diretora Jodie Foster. O timing do lançamento também é bem diferente: em meio ao crescente debate sobre a participação das mulheres no audiovisual, o interesse por histórias como a de Guy-Blaché é muito maior agora do que era na década de 1990 ou mesmo cinco anos atrás. 

Imagem do filme “The Ocean Waif” (1916), dirigido por Alice Guy-Blaché – Foto: Divulgação

O esforço que o filme faz para recuperar o lugar de Guy-Blaché na história ecoa o esforço que ela mesma fez em vida, quando percebeu que seu nome estava sendo ignorado pelos registros oficiais. Antes de morrer em 1968, aos 94 anos, a francesa se dedicou a corrigir artigos e livros (um deles, de autoria do próprio Gaumont), escrever sua autobiografia (publicada postumamente, em 1976) e a tentar encontrar seus filmes. Conseguiu ter algum sucesso, mas muitas obras só foram recuperadas depois de sua morte, e várias outras seguem perdidas.

Ao falar sobre Guy-Blaché, Be Natural evidencia o papel fundamental que historiadores, arquivistas e instituições de preservação desempenham na recuperação de uma história do cinema que seja menos branca e menos masculina. Recentemente, por exemplo, funcionários da Filmoteca Espanhola localizaram o que pode ser o primeiro filme sonoro dirigido por uma mulher no país. Trata-se de Mallorca, obra da década de 1930 doada à filmoteca em 1982 e atribuída ao diretor Francisco Aguiló Torrandell. O filme nunca fora digitalizado nem assistido até maio deste ano, quando, em plena quarentena imposta pela pandemia, os funcionários da Filmoteca apertaram o play e descobriram, nos créditos exibidos na tela, que a real autora era María Forteza.

Histórias como essa e a narrada por Be Natural são ainda mais contundentes no Brasil, dado o estado de abandono da Cinemateca Brasileira, órgão responsável pela preservação do audiovisual brasileiro. Na entrevista ao Mulher no Cinema, Green foi categórica: seu documentário simplesmente não existiria sem a ajuda dos arquivistas, a quem define como “heróis anônimos”. “São pessoas incansáveis, determinadas, que trabalham duro e se importam com os filmes como se fossem filhos delas. Que tiram tempo para analisar o inventário, que têm mente aberta para questionar o que está na prateleira e para olhar as novas informações que podem mudar a história do cinema”, afirmou. “Sem essas pessoas e sem esses lugares, não há como preservar peças importantes que podem mudar o modo como encaramos o passado.”

Alice Guy-Blaché no set, em foto sem data – Crédito: Divulgação

A diretora contou ao Mulher no Cinema que planeja criar a Fundação Alice Guy-Blaché, uma instituição que buscará doações para digitalizar mais filmes da diretora, fomentar novas pesquisas e possivelmente oferecer bolsas de estudos para jovens cineastas. Ela planeja, também, repassar parte dos fundos da futura fundação aos arquivos que guardam filmes de Guy-Blaché. “Eles precisam de fundos para existir, e nós precisamos que eles existam para que possamos ser honestos no modo como contamos a história do cinema e do mundo”, afirmou.

Blaché foi a primeira, mas não a única mulher a trabalhar como diretora nas primeiras décadas do cinema. Lois Weber (1879-1939), Ruth Ann Baldwin (1886-?), Cleo Madison (1883-1964) e Mabel Normand (1892-1930), apenas para citar algumas, estavam fazendo filmes nos Estados Unidos antes mesmo de poderem votar nas eleições. E apesar de terem realizado obras importantes, as mulheres foram perdendo espaço conforme a indústria cinematográfica se tornou maior, mais cara e mais respeitada. 

Se o trabalho destas e outras diretoras tivesse sido preservado e celebrado, será que hoje Hollywood seria mais inclusiva e menos desigual? Para a diretora de Be Natural, não há dúvida de que sim. “Não podemos mudar o modo como as mulheres foram representadas ao longo do tempo, mas se o cinema tivesse levado Alice a sério, e se seu trabalho não tivesse sido perdido, ela teria tido impacto muito maior”, opinou. “Ela teria ajudado muitas jovens mulheres, teria lhes dado coragem para atuar em uma indústria predominantemente masculina.”

Cena de uma outra versão de “A Fada do Repolho”, rodada por Alice Guy-Blaché em 1900 – Foto: Reprodução

Levar a história de Guy-Blaché ao público jovem era um dos principais objetivos de Green no desenvolvimento de Be Natural. Cofundadora da Pic Agency, empresa especializada em design para obras audiovisuais, ela utilizou muitas animações e outros recursos gráficos, tendo Saul Bass (1920-1996) e A Pantera Cor-de-Rosa como principais fontes de inspiração.

O documentário também inclui dezenas de entrevistas com artistas contemporâneos – de Ava DuVernay a Michel Hazanavicius, de Geena Davis a Peter Bogdanovich – que fazem comentários sobre a vida e a obra de Guy-Blaché. Como a maioria nunca tinha ouvido falar dela, Green ofereceu uma pasta cheia de informações e a oportunidade de os artistas assistirem aos filmes. Pouco do que é dito parece realmente relevante, mas a diretora defende a inclusão das entrevistas dizendo que todos têm motivo para estar ali. Ela citou como exemplo Andy Samberg (o Jake Peralta de Brooklyn 99), que fez esquetes de comédia para o Saturday Night Live assim como Guy-Blaché começou a carreira com filmes curtos de comédia.

“Ela representava muitos aspectos diferentes [do cinema]: era diretora, roteirista, produtora, chefe de estúdio, trabalhou com som e edição, fez curtas e longas. Queria [que o documentário tivesse] o máximo possível de pessoas que fizeram coisas que ela também fez e, assim, criar essa conexão. Além disso, o filme é para o público jovem, e embora eu não pudesse tirar a Alice do cinema mudo, podia associá-la a pessoas de hoje”, justificou Green. “Ela era a melhor, então por que não ir atrás das melhores pessoas da indústria da qual ela é mãe e incluí-las falando sobre o que viram e o que aprenderam?”.

Por ministrar aulas sobre Guy-Blaché em cursos livres, pude testemunhar várias vezes a excitação e surpresa que a obra da cineasta provoca nas pessoas, bem como a comoção causada por seus esforços para não ser esquecida. Em junho, quando Be Natural foi exibido no Espaço Itaú Play, festival online realizado pelo Espaço Itáu de Cinema, muita gente me escreveu dizendo que tinha se emocionado e até chorado durante a sessão. Então perguntei para Pamela B. Green: por que Alice Guy-Blaché provoca reações tão emocionadas? Para ela, é uma história humana, com a qual todos podem se identificar. “Trabalhamos duro, queremos construir nosso lugar no mundo, queremos reconhecimento, queremos provar que fizemos algo mesmo quando não temos a evidência material”, afirmou. “De certa forma, a história de Alice Guy-Blaché é de partir o coração.”


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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