“Aquilo que Eu Nunca Perdi”: uma montagem musical

A trajetória da cantora, compositora e instrumentista Alzira E é tema do documentário Aquilo que Eu Nunca Perdi, que chega aos cinemas brasileiros em 8 de setembro. Ganhador da edição de 2021 do Festival IN-EDIT, dedicado a documentários musicais, o filme é dirigido por Marina Thomé, que acompanha Alzira E de perto há mais de 15 anos, desde que começou a fotografar seus shows. No depoimento abaixo, publicado com exclusividade pelo Mulher no Cinema, a produtora executiva Marcia Mansur fala sobre a relação da cineasta com a artista e sobre a realização de Aquilo que Eu Nunca Perdi:

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Marina conheceu Alzira no começo dos anos 2000. Junto com ela, acordes e poemas pulsantes que logo atravessaram sua imaginação. Marina partiu em busca daquela mulher grandiosa, juntando vestígios e faíscas. Queria entendê-la, revelá-la em textura cinematográfica.

Começou a fazer seus retratos e fotografar os shows. Ao longo dos anos, a parceria audiovisual se expandiu para a criação de imagens que levavam as músicas para outras interfaces, como os vídeo-cenários e a capa de álbum da CORTE, a banda de rock que Alzira passou a liderar na virada dos seus 60 anos.

Vinda do universo de folk e psicodelia dos anos 1970 de Campo Grande, Alzira cresceu em uma família de músicos e artistas, e logo começou a compor com seus irmãos e a irmã Tetê Espíndola. Aos 24 anos, mudou-se para São Paulo com suas quatro filhas e, desde então, reinventa-se, criando mundos e vozes. Suas raízes sul-matogrossenses encontraram espaço nos fluxos da urbe e enveredaram pela música underground da vanguarda paulistana.

Marina Thomé, diretora de “Aquilo que Eu Nunca Perdi” – Foto: Marcia Mansur

I am a woman, man / Uma mulher (Alzira E)

Em 2016, com sua câmera SonyVG20 e um RhodeMic acoplado, Marina pegou um ônibus no Rio de Janeiro, com destino ao mini-sítio em que Alzira vivia no centro de São Paulo. Tinham decidido começar as gravações do filme, que naquela época era ainda um sonho de ambas. Um pouco rouca, a cantora tinha chegado há pouco em casa, após apresentar-se em um show. Luzes baixas e avermelhadas compunham a atmosfera de intimidade, a proximidade de ambas revelada nas palavras e na cumplicidade do olhar. Alzira mostrou seu mapa astral para Marina, queria começar pelas estrelas. Anos depois, quando assistiu ao filme, Alzira descolou-se de si mesma: entendeu-se como uma que representa tantas. Fazer um filme sobre Alzira é falar sobre a trajetória invisibilizada das mulheres na arte e da vida feita de desejos.

Essa primeira entrevista despretensiosa atravessa todo o filme, que anos depois pôde ser produzido com equipe completa e o patrocínio do Rumos Itaú Cultural. Mas Marina ainda fez muitas outras gravações sozinha, e estava sempre a postos para sair para filmar, sempre que havia um encontro simbólico, um ensaio para um novo álbum ou uma sopa de banana da terra no fogão de Alzira.

Imagem do filme “Aquilo que Eu Nunca Perdi”, de Marina Thomé

Rio Vermelho das janelas da casa velha da Ponte… / Rio que se afunda debaixo das pontes / Que se reparte nas pedras (Alzira E / Cora Coralina)

É preciso coragem para mergulhar em Alzira E, a mulher-rio de Aquilo que eu nunca perdi. Com imagens de outros tempos, arquivos biográficos e canções inéditas esquecidas em baús, Marina montou um filme caleidoscópico, que se distorce, desfaz e remonta, assim como a arte de Alzira se reconstrói, transmuta e reencaixa, com fragmentos brilhantes.

O eixo artístico em que Alzira se (re)cria é a música. Suas canções são o coração da história e o vínculo intenso entre a imagem e o filme. O som ganha forma nas imagens e na montagem, as músicas vão e voltam no tempo, como a própria memória se monta, em uma alquimia de sentimentos.

A essência de cada música conta a história da Alzira. As canções operam na dramaturgia própria do filme, naquela tela de 86 minutos de duração. Suas músicas narram a história do filme, não pela ordem em que vieram ao mundo, mas pela colisão e acolhimento que encontram nas imagens. Os caminhos percorridos por Alzira e a poesia das músicas permeiam a obra fílmica e encadeiam-se em uma dinâmica particular, criada por meio da montagem musical.

Entre uma e outra estabilidade, há aqueles momentos divertidos em que se gira o caleidoscópio e vê-se o movimento livre das peças. Alzira canta sua verdade profunda. O rio vermelho é ela. Seu rosto é tudo o que se vê. Passa um trem, uma estrada no Pantanal, surge o mar. Crescem as matas, ao som dos sopros do metal pesado e profundo. A música, Alzira e o filme, juntos, atingem seu auge. Voam, flutuam no movimento das imagens, que se integra à plástica da música. Fragmentos fluidos se transformam em filme. Não se trata de uma tela, mas de um caleidoscópio.

A música entra em paz. Cada verso em genuíno equilíbrio matemático, do jeito que Alzira gosta. Uma declaração de amor a São Paulo, a megalópole babilônica em que ferve o caldo de Alzira, em que cresce Marina, onde elas se encontram. Na essência humana da migração, do trânsito e do calor das raízes que brotam noutro sítio.

Luzes néon coloridas e desfocadas, groove das notas de baixo que, aos 60 anos, Alzira decidiu começar a tocar. O jogo de sombras anuncia mais uma virada genuína de Alzira. Ela já disse a que veio, você pode imaginar o resto.


Marcia Mansur é antropóloga e produtora executiva de Aquilo que Eu Nunca Perdi

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