A mulher no cinema em 2018

No primeiro dia de 2018, mais de 300 mulheres anunciaram a criação do Time’s Up, plano de ação para combater o assédio sexual em Hollywood e outras áreas de trabalho. Foi um recado claro: depois da avalanche de denúncias que marcou o final de 2017, elas estavam determinadas a não deixar o assunto morrer.

De certa forma, elas conseguiram. Do Globo de Ouro, em janeiro, até o Festival de Cannes, em maio, o assédio e a igualdade de gênero foram pauta frequente. A partir daí, desacelerou, mas não morreu, e chegamos a dezembro com a notícia de que Harvey Weinstein, o homem no centro das primeiras denúncias, não conseguiu derrubar as acusações contra ele e irá a julgamento no ano que vem.

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Avanço houve, mas quanto avanço? “De forma geral, ainda não vejo vontade real de fazer o que é preciso para mudar uma cultura problemática”, disse Beth Gulas, consultora especializada em entretenimento, ao jornal The New York Times. “É preciso investimento e muita energia para fazer isso acontecer, e a maioria das empresas quer uma solução rápida, quer um Band-Aid.”

Ao ler essa frase, me lembrei imediatamente da cerimônia do Oscar, que preparou clipes pró-diversidade e escalou grande número de artistas negros e latinos para subir ao palco, em um clima de nova era que contrastava brutalmente com a manutenção do status quo promovida pela entrega dos prêmios. Foi, na verdade, uma premiação muito ruim para as mulheres – e a próxima, a ser realizada em fevereiro, tem tudo para ser ainda pior. Da mesma forma, o Globo de Ouro, palco da ação mais emblemática do Time’s Up em 2018, praticamente ignorou filmes dirigidos por mulheres nas indicações para a edição de 2019.

Pode-se argumentar que os passos para frente inevitavelmente vêm acompanhados de passos para trás. Mas é importante atentar ao perigo da mudança Band-Aid, que não apenas não soluciona o problema como esconde sua real dimensão. A eleição presidencial brasileira mostrou que um número enorme de pessoas, maior do que se imaginava, não está sensibilizada às causas ligadas ao feminismo e aos direitos humanos – ou não consideram ataques a estas causas “tão graves assim”. Mostrou, também, a dificuldade de se dialogar com quem pensa diferente. Mas dialogar com quem pensa diferente, sair da bolha e falar com os não convertidos, parece ser algo que, como diz Gulag, é preciso fazer para mudar uma cultura problemática. Então como fazer isso?

Talvez seja esta a principal questão para os próximos anos. Abaixo, Mulher no Cinema relembra os principais acontecimentos e personalidades que marcaram 2018:

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Time’s Up movimenta Hollywood
Anunciado no primeiro dia do ano em carta aberta publicada em jornais internacionais, o Time’s Up é formado por cerca de 300 artistas – atrizes, roteiristas, diretoras, produtoras, executivas e agentes – e dividido em grupos de trabalho. Atua, por exemplo, na busca por mudança na legislação e pressionando organizações e empresas do entretenimento a ter 50% de mulheres em cargos de liderança, além de manter um fundo milionário para ajudar mulheres de outras profissões a se proteger e/ou defender de casos de assédio ou abuso sexual. De acordo com o grupo, mais de 3,4 mil mulheres já se beneficiaram deste dinheiro, arrecadado por doações.

O acidente de Uma Thurman
As denúncias de assédio continuaram em 2018 e envolveram artistas como Geoffrey Rush, Gerard Depardieu, Morgan Freeman, Luc Besson e Michael Douglas, entre outros. O depoimento da atriz Uma Thurman foi um dos mais fortes: ela revelou não apenas ter sido vítima de assédio do produtor Harvey Weinstein, como também ter travado uma longa e dura briga com o diretor Quentin Tarantino, com quem fez três longas. Segundo Thurman, durante as filmagens de Kill Bill (produzido por Weinstein), Tarantino a convenceu a dirigir um carro que não estava em bom estado. A atriz sofreu um acidente que causou danos permanentes, mas o diretor se recusou a deixá-la assistir às imagens da batida. A filmagem só foi obtida pela atriz recentemente, 15 anos após o ocorrido, e publicada pelo site do jornal The New York Times.

Harvey Weinstein e Bill Cosby na justiça
Após meses de denúncias, Harvey Weinstein teve de se entregar à polícia e foi indiciado por acusações de estupro e ato sexual criminoso. Embora uma das três acusações tenha sido derrubada posteriormente, o produtor ainda responde (em liberdade) pelas outras duas: estuprar uma mulher em 2014 e forçar outra mulher a fazer sexo oral em 2006. Em dezembro, um juiz de Nova York decidiu que Weinstein irá a julgamento, com a primeira audiência preliminar prevista para 7 de março. O ano de 2018 também ficou marcado pela condenação do comediante Bill Cosby por crime de abuso sexual cometido em 2004, quando drogou e estuprou Andrea Constand, uma entre dezenas de mulheres que fizeram acusações semelhantes contra ele. Por causa da condenação, Cosby foi expulso da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, responsável pela entrega do Oscar, assim como o diretor Roman Polanski, que deixou os Estados Unidos em 1978 após ser condenado pelo estupro de uma menina de 13 anos, do qual se declarou culpado. Vale lembrar, porém, que em 2003 Polanski ganhou o Oscar de direção por O Pianista.

Uma temporada de prêmios eletrizante…
Embaladas pelo #MeToo e a criação do Time’s Up, as mulheres da indústria cinematográfica americana causaram barulho ao surgir de preto no tapete vermelho do Globo de Ouro e tomar conta da cerimônia com discursos inspirados e provocações. O tema seguiu em pauta em cerimônias menos badaladas – como o prêmio do Sindicato dos Atores, o Bafta e o Spirit Awards – e o anúncio das indicações ao Oscar deu gás à sensação de avanço ao quebrar um tabu tão antigo quanto a própria premiação: pela primeira vez em 90 anos, uma mulher, Rachel Morrison, disputaria o troféu de direção de fotografia. Outras boas notícias foram anunciadas com as indicações: Greta Gerwig tornou-se a quinta mulher a concorrer ao prêmio de direção, e a primeira desde que Kathryn Bigelow finalmente ganhou a estatueta, em 2010; Dee Rees entrou para a história como a primeira mulher negra a disputar roteiro adaptado; quatro dos nove indicados ao troféu principal tinham protagonistas femininas; e títulos dirigidos por mulheres conseguiram espaço em categorias como melhor filme, animação, documentário, filme estrangeiro e curta-metragem

…com um final amargo.
Mas o balde de água fria veio na cerimônia, que premiou apenas seis mulheres – três a menos do que no ano passado e metade do número alcançado em 2016. Além disso, pelo segundo ano consecutivo nenhum longa ou curta dirigido por mulher foi premiado. E pior: ao contrário de 2016 e 2017, produtoras mulheres não levaram o troféu de melhor filme, e todas as ganhadoras com exceção das atrizes dividiram a vitória com colegas homens. Em outras palavras, nos últimos anos a premiação do Oscar se tornou mais desigual, e não o contrário. Mas só percebeu isso quem prestou atenção aos prêmios, pois, no discurso, inclusão e mudança eram palavras de ordem, com muitos artistas negros e latinos no palco, incluindo a atriz trans chilena Daniela Vega. O ativismo no Oscar ficou dentro do script e levantou uma preocupação: que a excelência de Hollywood em ações de marketing e relações públicas reduza uma discussão tão complexa quanto o assédio a mero photo op.

Duas palavras: inclusion rider
O único momento realmente potente do Oscar foi o discurso de Frances McDormand, que pediu para que todas as mulheres indicadas e sentadas na plateia se levantassem, dando uma boa perspectiva da reduzida participação feminina na premiação. Ela também terminou seu discurso com as palavras inclusion rider, divulgando para um audiência global um conceito pouco conhecido. Trata-se de uma “cláusula de inclusão” que estrelas de cinema colocam em seus contratos para exigir que a equipe do filme atinja determinado nível de diversidade. Em outras palavras, atrizes e atores com grande poder de negociação condicionam sua participação em um projeto à inclusão de mais indivíduos de grupos pouco representados na equipe e/ou elenco. Artistas como Michael B. Jordan, Brie Larson, Paul Feig, Ben Affleck e Matt Damon estão entre os que prometeram adotar a cláusula (leia a entrevista com Fanshen Cox DiGiovanni, uma das criadoras da iniciativa).

Em Cannes, a imagem do ano
A Palma de Ouro não foi entregue a um filme dirigido por mulher, mas não há dúvida de que a edição deste ano do Festival de Cannes foi marcada pelo debate sobre igualdade de gênero. A imagem mais marcante do evento, e talvez do ano, foi a da manifestação de 82 mulheres nos degraus do Théâtre Debussy, simbolizando o número de filmes dirigidos por mulheres que concorreram à Palma de Ouro em toda a história do festival. Em discurso conjunto, a presidente do júri, Cate Blanchett, e a diretora belga Agnès Varda divulgaram os alarmantes números da participação feminina em Cannes e exigiram salários e oportunidades iguais, além de ambientes de trabalho seguros. Ao protesto se seguiu a assinatura de um compromisso por maior transparência e igualdade de gênero em Cannes (uma das promessas já foi cumprida: número igual de mulheres e homens no comitê de seleção da Quinzena dos Realizadores) e uma nova reunião de mulheres nos degraus do teatro, desta vez 16 atrizes negras que lançaram o livro Noire n’est pas mon métier. Na premiação, Capharnaüm, de Nadine Labaki, ganhou o Prêmio do Júri; Lazzaro Felice, de Alice Rohrwacher, levou melhor roteiro; e a atriz Asia Argento relembrou que Cannes serviu de palco para os abusos de Weinstein (meses depois, ela seria acusada de ter abusado de um menor, o que negou). Até episódios mais ligados à moda do que ao cinema – a decisão de Blanchett de repetir um vestido usado anos atrás no Globo de Ouro, os pés descalços de Kristen Stewart no tapete vermelho – reforçaram a sensação de que Cannes 2018 foi das mulheres.

Prêmios, prêmios, prêmios
Outros festivais e premiações reconheceram filmes com direção feminina. The Miseducation of Cameron Post, de Desiree Akhavan, foi o grande vencedor de Sundance, que entregou todos os prêmios de direção para mulheres: Sara Colangelo, Alexandria Bombach, Isold Uggadottir e Sandi Tan. Em Berlim, um filme dirigido por mulher ganhou o Urso de Ouro pela segunda vez consecutiva – desta vez, Touch Me Not, primeiro longa da romena Adina Pintilie. E em Locarno, o prêmio de direção foi para a chilena Dominga Sotomayor, por Tarde para Morrer Jovem. Destaque também para a vitória de A Livraria, de Isabel Coixet, no Goya, o Oscar da Espanha, e de Reed Morano no prêmio do Sindicato dos Diretores. Por seu trabalho em The Handmaid’s Tale, ela se tornou a quarta mulher a vencer na categoria de direção de série dramática.

Prêmios para brasileiras
Diretoras brasileiras também fizeram bonito nos festivais este ano. Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos, de Renée Nader Messora e João Salaviza, recebeu o prêmio do júri na mostra Um Certo Olhar de Cannes, enquanto Bixa Travesty, de Claudia Priscilla e Kiko Goifman, ganhou melhor documentário no Teddy Awards, premiação que destaca filmes com temática LGBT no Festival de Berlim. Longas dirigidos por mulheres ganharam sete dos nove troféus competitivos da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, incluindo o principal, que foi para Las Sandinistas, de Jenny Murray. No Festival do Rio, Nader Messora levou o prêmio de direção de ficção, enquanto Susanna Lira ganhou em documentário por Torre das Donzelas. O Festival de Brasília também entregou o troféu de direção para uma mulher: Beatriz Seigner, por Los Silencios.

Diretoras negras nos cinemas
As mulheres negras são o grupo com a pior representação no cinema nacional, atrás de homens brancos, mulheres brancas e homens negros. Mas 2018 contou com a estreia comercial de dois longas dirigidos por cineastas negras: o documentário O Caso do Homem Errado, de Camila de Moraes, e a ficção Café com Canela, de Glenda Nicácio e Ary Rosa. O ano também teve o lançamento de um novo trabalho de Adelia Sampaio, a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil (Amor Maldito, de 1984). Após doze anos longe da direção, ela exibiu O Mundo de Dentro no Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. 

Mulheres negras nas bilheterias e nos prêmios
Um dos marcos do ano em Hollywood foi o sucesso de bilheteria de Pantera Negra, longa centrado em um herói masculino mas no qual o elenco feminino também teve grande destaque. Já Uma Dobra no Tempo, de Ava DuVernay, tornou-se o filme dirigido por uma mulher negra de maior bilheteria nos Estados Unidos em todos os tempos, apesar de recepção morna da crítica. DuVernay também fechou acordo milionário para desenvolver conteúdo para o braço de televisão da Warner, enquanto a produtora de Viola Davis assinou contrato com a Amazon Studios. Também em 2018, a atriz Cicely Tyson foi a primeira mulher negra a receber um Oscar honorário, e Oprah Winfrey, a primeira a receber o Globo de Ouro pelo conjunto da obra.

Fazendo história
Ainda na linha dos tabus quebrados, Rachel Morrison tornou-se a primeira mulher a ser indicada ao prêmio da Sociedade Americana de Diretores de Fotografia, que existe há 32 anos, na categoria de longa-metragem. No Emmy, a série The Marvelous Mrs. Maisel fez de Amy Sherman-Palladino a primeira mulher a ganhar, na mesma noite, os prêmios de roteiro e direção de comédia. No Brasil, a atriz e roteirista transexual Julia Katharine ganhou a segunda edição do Prêmio Helena Ignez, entregue pela Mostra de Tiradentes. 

Asiáticos em foco
Pela primeira vez em 25 anos um estúdio americano lançou um filme com elenco majoritariamente asiático ou de origem asiática: Podres de Ricos, estrelado por Constance Wu. Resultado: sucesso nas bilheterias e sequência garantida. Outra continuação que vem por aí é a de Para Todos os Garotos que Já Amei, dirigido por Susan Johnson e estrelado por Lana Condor, um dos principais lançamentos da Netflix este ano. Na TV, Sandra Oh tornou-se a primeira mulher de ascendência asiática a ser indicada ao Emmy de melhor atriz de série dramática (por Killing Eve) e também foi anunciada como apresentadora da próxima cerimônia do Globo de Ouro. Já a cineasta Domee Shi quebrou uma barreira importante na animação: seu curta-metragem, Bao, foi o primeiro produzido pela Pixar com uma mulher na direção. Ela, agora, está preparando um longa.

Mulheres na crítica
Uma alternativa ao Rotten Tomatoes só com críticas escritas por mulheres. É esta a proposta do CherryPicks, site criado pela diretora, produtora e atriz Miranda Bailey e pela autora e produtora Rebecca Odes com o objetivo de promover a igualdade de gênero no entretenimento também a partir da crítica. O site reúne apenas resenhas feitas por mulheres que englobam cinema, televisão e música.

Mudanças na Academia
Diante de mais um #OscarSoMale, a Academia renovou a tentativa de aumentar a diversidade entre seus membros, convidando um número recorde de artistas para fazer parte do grupo: 928 pessoas de 59 países, sendo 49% mulheres e 38% não brancos. A Academia também anunciou a “Action: The Academy Women’s Initiative”, parceria com o E! Entertainment e a Swarovski, cuja principal ação será a criação da Academy Gold Fellowship for Women, uma bolsa de um ano a ser concedida para cineastas ou executivas. Além de apoio financeiro, o programa oferecerá mentoria e oportunidades de networking, e terá uma versão nos Estados Unidos e outra no Reino Unido. Também será lançado o Academy Directory, um diretório para que integrantes da Academia possam se conectar umas com as outras.

Mudanças na Ancine
A Agência Nacional de Cinema perdeu a oportunidade de ser liderada por uma mulher pela primeira vez quando o presidente Michel Temer não confirmou o nome de Debora Ivanov, indicada pelo Ministério da Cultura, nomeando Christian de Castro. A agência também provocou polêmica em 2018 ao divulgar uma pontuação dada aos cineastas brasileiros com base em desempenho comercial e número de obras produzidas. No campo das boas notícias, o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual aprovou cotas para mulheres, negros e indígenas no Concurso Produção para Cinema 2018, edital que destina R$ 100 milhões a projetos de longas-metragens independentes. Resta saber qual o futuro da agência no governo de Jair Bolsonaro.

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Em 2019, o objetivo é continuar celebrando o trabalho das mulheres no audiovisual. Se você gosta do conteúdo produzido pelo Mulher no Cinema, considere ser apoiadora ou apoiador do site, contribuindo mensalmente com valores a partir de R$ 3. Feliz ano novo!


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema

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