A mulher no cinema em 2017

Será que lembraremos de 2017 como o ano em que tudo mudou? As discussões sobre a igualdade de gênero no audiovisual vêm se fortalecendo há algum tempo, mas atingiram um novo patamar no último mês de setembro, quando o escândalo Harvey Weinstein deu início a uma avalanche de denúncias de assédio que abalaram Hollywood e outras cinematografias.

Leia também: Diretoras brasileiras escolhem os melhores filmes do ano
Top 10: Os melhores filmes do ano dirigidos por mulheres ou sobre mulheres
Especiais: 2017, o ano em que descobrimos a obra de Margaret Atwood

Tantas vozes uniram-se ao coro por mudança que a sensação é a de que não há mais volta: que ficou para trás o mundo no qual um homem que se gabou de assediar mulheres pode ser eleito presidente. Ao mesmo tempo, há que se lembrar que Hollywood é famosa por reviver carreiras que pareciam destruídas e, principalmente, que a cultura do assédio está intimamente ligada à desigualdade entre homens e mulheres que acompanha o cinema durante toda a sua história.

Como escreveu a crítica Manohla Dargis no jornal americano The New York Times: “As mulheres ajudaram a construir esta indústria, mas há muito tempo ela é um empreendimento de dominação masculina que sistematicamente trata as mulheres como inferiores aos homens. É uma indústria que historicamente explora sexualmente as atrizes jovens e coloca selo de validade nas mais velhas. É uma indústria que constantemente nega emprego para diretoras mulheres e que trata a plateia feminina como um nicho, um problema ou algo para se pensar depois.”

Em outras palavras, acabar com o assédio em Hollywood vai além das excelentes reportagens investigativas, dos bem-vindos movimentos no Twitter e até mesmo das justas punições anunciadas para os acusados. A demissão de um ator de um filme ou série de televisão é importante, mas o que acontece depois? Estúdios e produtoras se distanciam do acusado, mas que medidas são tomadas para que tal comportamento não volte a acontecer?

Acabar com o assédio na indústria cinematográfica passa necessariamente por acabar com a desigualdade de gênero. Passa por equilibrar salários e poder de negociação, passa por contratar mais mulheres em todas as posições de trabalho (sobretudo às de liderança), passa por melhorar a qualidade da representação feminina na tela e por pensar com mais respeito nas mulheres da plateia – que, aliás, são responsáveis pela compra de metade dos ingressos.

2017 sinaliza que falar sobre igualdade de gênero tem dado resultado, mas também que o caminho é longo. Abaixo, Mulher no Cinema relembra os principais acontecimentos que marcaram o ano:

+

#MeToo
Ashley Judd, Asia Argento, Mira Sorvino, Rosana Arquette, Lupita Nyong’o, Salma Hayek, Angelina Jolie, Cara Delevingne, Eva Green, Gwyneth Paltrow, Heather Graham, Kate Beckinsale, Léa Seydoux, Lena Headey, Rose McGowan e Julianne Moore são apenas algumas das personalidades que revelaram ter sido vítimas de assédio ou estupro. A campanha online #MeToo convidou profissionais de todas as profissões a mostrar como tais casos são comuns, enquanto a revista Time elegeu as mulheres que “quebraram o silêncio” como sua “pessoa do ano”. Algumas iniciativas de mudança incluem o disque-denúncia criado pela Women in Film, organização americana com braços em vários países, e a instauração da Comissão sobre Assédio Sexual e Avanço da Igualdade no Local de Trabalho, proposta por executivas da indústria cinematográfica e liderada pela professora e advogada Anita Hill. Que venham outras.

O recado de Mulher-Maravilha
A expectativa era gigante: raro filme baseado em quadrinhos protagonizado e dirigido por mulheres (Gal Gadot e Patty Jenkins, respectivamente), Mulher-Maravilha precisava de um sucesso inequívoco para poder abrir caminho a outras profissionais e mais produções do gênero. E o recado foi bem dado. Entre os muitos recordes batidos, Mulher-Maravilha tornou-se o filme dirigido por mulher de maior bilheteria nos Estados Unidos em todos os tempos; o filme de live-action dirigido por mulher com maior bilheteria global; e o campeão de faturamento entre os filmes de origem de super-herói, ultrapassando Homem-Aranha (2002). A sequência, é claro, já está garantida.

De olho nos blockbusters
Ainda é cedo para dizer se o sucesso de Mulher-Maravilha vai realmente aumentar a presença de mulheres por trás das câmeras nos filmes de heróis. Mas três projetos importantes foram anunciados em 2017: a versão live-action de Mulan, que será dirigida por Niki Caro; Capitã Marvel, que ficou a cargo de Anna Boden e Ryan Fleck; e Silver Sable and Black Cat, que reunirá as personagens Gata Negra e Sabre de Prata e terá direção de Gina Prince-Bythewood.

Mulheres negras no topo das bilheterias
Falando em produções populares, dois filmes centrados em mulheres negras ganharam lugar de destaque entre os maiores sucessos do ano. Inspirado na história real de cientistas pioneiras da Nasa, Estrelas Além do Tempo ficou em primeiro lugar nas bilheterias americanas, ganhou o principal prêmio do Sindicato dos Atores e teve faturamento superior a de blockbusters como Jason Bourne, Star Trek: Sem Fronteiras e X-Men: Apocalipse, todos de 2016. Já a comédia Viagem das Garotas, que acompanha quatro amigas em férias em Nova Orleans, tornou-se o primeiro filme escrito, produzido, dirigido e estrelado por pessoas negras a bater a marca de US$ 100 milhões nas bilheterias americanas.

Fazendo história
Mulheres negras também quebraram uma série de recordes e tabus em 2017. No Oscar, por exemplo, foram vários marcos: pela primeira vez, três atrizes negras foram indicadas na mesma categoria; Viola Davis tornou-se a primeira atriz negra a receber três indicações ao prêmio; Ava DuVernay, a primeira diretora negra a ser indicada ao Oscar de documentário; e Joi McMillon, a primeira mulher negra indicada na categoria de edição. Ela não levou o Oscar, mas venceu o Independent Spirit Awards, principal premiação do cinema independente americano. No Emmy, Lena Waithe tornou-se a primeira mulher negra a ganhar na categoria de roteiro de série de comédia. E no Globo de Ouro, Tracee Ellis Ross foi a primeira mulher negra a vencer na categoria de atriz de série de comédia desde 1983. Viva!

Mais prêmios e recordes
A maravilhosa Agnès Varda recebeu um merecido Oscar honorário, na primeira vez em que a homenagem foi entregue a uma diretora mulher, enquanto Rachel Morrison (de Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississippi) tornou-se a primeira mulher a ganhar o prêmio de direção de fotografia do New York Film Critics Circle, grupo que reúne críticos de cinema baseados em Nova York. Dirigido por Greta Gerwig, Lady Bird: Hora de Voar tornou-se o filme mais bem avaliado da história do Rotten Tomatoes, site americano que agrega críticas de cinema. E Reed Morano quebrou um jejum de 22 anos para as mulheres ao ganhar o Emmy de direção de série dramática pelo trabalho em The Handmaid’s Tale.

Feminismo na TV
The Handmaid’s Tale foi a mais emblemática entre várias séries centradas em mulheres que arrasaram em 2017, uma lista que inclui Big Little Lies, GLOW, Feud: Bette and Joan e Alias Grace – que junto a Handmaid’s ajudou leitores de todo o mundo a descobrir a obra da escritora canadense Margaret Atwood. E mais: a atriz Jodie Whittaker foi a primeira mulher escolhida para protagonizar Doctor Who.

Prêmios, prêmios, prêmio
Filmes dirigidos por mulheres conquistaram prêmios importantes em festivais, a começar por Corpo e Alma, de Ildikó Enyedi, ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim. Em Sundance, duas mulheres receberam prêmios de direção: Eliza Hittman, com Beach Rats, e Pascale Lamche, com Winnie. E em Cannes, o prêmio de direção para Sofia Coppola pelo longa O Estranho que Nós Amamos representou a primeira vitória de uma mulher na categoria desde 1961.

Problemas persistem em Cannes e no Oscar
Apesar do prêmio para Coppola, Cannes continuou com um número reduzido de diretoras na competição principal (apenas três) e O Piano (1993), de Jane Campion, segue sendo o único longa dirigido por mulher a ganhar a Palma de Ouro. Da mesma forma, a edição deste ano do Oscar sinalizou em direção à igualdade racial, mas não premiou absolutamente nenhum filme de diretora, algo que não acontecia desde 2006. Em mais uma tentativa de aumentar a diversidade entre seus membros, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pela entrega da estatueta, convidou 774 artistas para fazer parte do grupo, sendo 39% mulheres e 30% não brancos. Uma eleição interna também resultou em número recorde de mulheres no conselho diretor da Academia: 21, que atuarão ao lado de 33 homens.

Festivais brasileiros
Filmes dirigidos por mulheres também foram premiados em vários festivais brasileiros: Como Nossos Pais foi o grande ganhador do Festival de GramadoAs Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, triunfou no Festival do Rio (sem contar o prêmio especial do júri no Festival de Locarno, realizado na Suíça); O Pacto de Adriana, de Lissette Orozco, foi o vencedor da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo; Eu, Meu Pai e Os Cariocas, de Lúcia Veríssimo, levou o In-Edit Brasil; e Ninguém Está Olhando, de Julia Solomonoff, venceu o Cine Ceará.

(Possíveis) mudanças na Ancine
A Agência Nacional de Cinema (Ancine) instaurou a Comissão de Gênero, Raça e Diversidade e há discussões sobre a possível criação de políticas efetivas para a redução da desigualdade no setor. Debora Ivanov foi indicada pelo Ministério da Cultura como nova diretora-presidente da Ancine, mas seu nome ainda precisa ser aprovado pela presidência da República. Caso isso aconteça, ela será a primeira mulher a ocupar o cargo.

+

Continuaremos celebrando as mulheres em 2018. Feliz ano novo!


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema.

Deixe um comentário

Top