Shasha Nakhai retrata diversidade da sociedade canadense em ‘Scarborough’

Pessoas e lugares raramente retratados pelo cinema do Canadá ocupam o primeiro plano em Scarborough – Um Bairro Canadense, filme inédito nos cinemas brasileiros que acaba de chegar à plataforma de streaming FILMICCA. Ganhador de oito prêmios no Canadian Screen Awards, o Oscar do país, o drama dirigido por Shasha Nakhai e Rich Williamson acompanha o cotidiano de crianças pobres que frequentam um centro de alfabetização mantido pelo governo no bairro-título, localizado na região leste de Toronto.

Leia também: Conheça as escritoras canadenses que Sarah Polley levou às telas
Apoie: Veja como apoiar o Mulher no Cinema e acessar conteúdo exclusivo

Trata-se de uma adaptação de Scarborough, romance lançado em 2017 por Catherine Hernandez, que criou sua filha no bairro e cuidou de outras crianças locais em uma creche montada em sua casa. Após receber propostas de produtoras interessadas em comprar os direitos da obra, Catherine decidiu escrever ela mesma a versão para o cinema, que acompanha um ano escolar na vida de três protagonistas: Bing (Liam Diaz), que fugiu com a mãe de um lar violento; Sylvie (Mekiya Fox), que vive com a família em um abrigo; e Laura (Anna Claire Beitel), vítima de abuso e negligência por parte de seus pais. Eles se encontram no centro comandado por Mrs. Hina (Aliya Kanani), uma educadora que está iniciando seu trabalho na região.

Foi a roteirista quem ofereceu o projeto à dupla de diretores, com quem já tinha trabalhado em dois curtas. O fato de eles não terem experiência em longas de ficção não representou um problema. “Catherine buscava uma estética próxima à do documentário, assim como uma equipe cuidadosa”, afirmou Shasha Nakhai, em entrevista por email ao Mulher no Cinema. “Como documentaristas, Rich e eu buscamos capturar o espaço do jeito que ele é e interferir o mínimo possível. Isto era algo que Catherine julgava ser essencial para leva o livro às telas.”

Os diretores Shasha Nakhai e Rich Williamson e a roteirista Catherine Hernandez no set de “Scarborough” – Foto: Kenya-Jade Pinto/Compy Films

Com um orçamento de 300 mil dólares canadenses (cerca de R$ 1,1 milhão), a produção foi realizada no próprio bairro e contou com grande número de atores locais, muitos deles com pouca ou nenhuma experiência no cinema. A seleção de elenco foi realizada pelos próprios cineastas e buscou refletir a diversidade de Scarborough, escalando pessoas brancas, negras, indígenas, muçulmanas e de origem filipina.

Nakhai nasceu nas Filipinas, cresceu na Nigéria e imigrou para o Canadá na adolescência. Formada em jornalismo, ela se interessou pelo cinema após fazer estágio em uma produtora de documentários, e depois fundou sua própria empresa, a Compy Films, que tem sede em Toronto. Entre seus trabalhos estão Take Light (2018), documentário que ela dirigiu sobre a crise energética nigeriana, e Frame 394 (2016), produzido por ela e dirigido por Williamson, que foi semifinalista do Oscar na categoria de curta documental.

​Leia as respostas de Shasha Nakai para as perguntas enviadas pelo Mulher no Cinema:

*

Catherine Hernandez, autora do livro e do roteiro, foi quem ofereceu o projeto a você e Rich Williamson. Por que ela escolheu especificamente vocês para levar esta história para as telas?

Tínhamos trabalhado com Catherine em projetos anteriores. Em 2008, ela apareceu no documentário Baby Not Mine, que eu produzi, e em 2013 o festival Reel Asian nos uniu para produzir um filme chamado Paruparo. Era um curta, filmado em apenas dois dias, no qual Catherine expressava por meio da dança os sentimentos internos de uma imigrante filipina. Foi uma experiência muito positiva, e todos saímos dela com a esperança de um dia trabalharmos juntos novamente. Em 2017, Catherine nos enviou seu livro com um bilhete perguntando se gostaríamos de dirigir o filme. Ela tinha recebido duas propostas de produtoras maiores, mas achara o trabalho delas perfeito demais. Ela buscava uma estética mais próxima à do documentário, assim como uma equipe cuidadosa. Como documentaristas, Rich e eu buscamos capturar um espaço do jeito que ele é e interferir o mínimo possível. Isto era algo que Catherine julgava ser essencial para levar seu livro às telas.

Ela se envolveu bastante nas filmagens e na pós? Como foi a colaboração de vocês?

Catherine escreveu o roteiro em duas semanas, o que nos impressionou muito. É um romance difícil de adaptar, pois funciona como um mosaico de múltiplos personagens. Na adaptação, ela focou em três crianças e usou os personagens adicionais, que estão ao redor das crianças, para retratar as especificidades da região de Scarborough. Estávamos morrendo de medo de tê-la no set, de ela se decepcionar com alguma escolha de elenco ou com o quão pequena e simples era a nossa produção. Mas no final da primeira diária ela estava super animada e interessada em ajudar o processo. Catherine apoiou muito a nossa estratégia de fazer uma filmagem livre e cheia de improvisação para criar uma estética documental. Tivemos vários blocos de filmagem ao longo de um ano, e no início de cada bloco Catherine aparecia para dar boas-vindas e encorajar os atores. Ela fazia com que eles se sentissem acolhidos e prontos para correr riscos explorando os personagens e o mundo criados por ela. Durante a pós-produção, compartilhamos alguns cortes e sempre nos surpreendíamos com o fato de ela sugerir que diálogos ou cenas inteiras fossem eliminados. Catherine é dramaturga, e levou para a produção de Scarborough a atitude de fazer o que for preciso para contar a melhor história possível.

Imagem do filme “Scarborough – Um Bairro Canadense”, de Shasha Nakhai e Rich Rich Williamson – Foto: Divulgação

Você e Rich foram responsáveis pela seleção do elenco. Como foi esse processo e o que vocês buscavam? Há muitos locais de Scarborough entre os atores?

A seleção foi um processo longo. É um filme de micro-orçamento e sem ligação com sindicato, então era preciso contratar pessoas com pouca ou nenhuma experiência. No caso das crianças, isso pode ser uma vantagem: sem treinamento, há a oportunidade de capturar energia verdadeira. No caso dos adultos, buscávamos pessoas que tivessem talento para improvisar, o que encontramos principalmente em comediantes de stand-up e atores de teatro comunitário. Escalamos os atores principais – as crianças e seus pais – durante um período de seis meses, apenas nos fins de semana, porque na época eu tinha outro trabalho em tempo integral. Já os personagens coadjuvantes eram escalados nos intervalos dos blocos de gravação. Não tínhamos muito tempo para descansar entre as filmagens, porque estávamos sempre à procura de atores para as cenas que rodaríamos em seguida. Muitos dos atores e dos profissionais da equipe são de Scarborough, como Ellie Posadas [que interpreta Edna], Felix Jedi Ingram Isaac [Johnny], Joshua Obra [Victor] e Norm Alconcel [Gerry]. Também encontramos Liam Diaz na [escola de teatro] JDL Performing Arts, que na época ficava em Scarborough.

As crianças que interpretam os personagens principais tinham experiência prévia em atuação? Como foi o trabalho de preparação e direção com elas?

Anna Claire Beitel e Liam Diaz estavam participando de oficinas de atuação. Mekiya Fox e Felix Jedi Ingram Isaac não tinham experiência, mas tinham muita energia e a habilidade de ouvir e receber orientações. Ao escalar atores mirins você também precisa conhecer os pais, e todas as famílias apoiavam bastante as crianças e cuidavam para que elas chegassem ao set com o que era necessário para aquele dia. Não tínhamos muito dinheiro ou tempo para ensaiar, então durante a seleção de elenco já fizemos exercícios de improvisação para avaliar se a criança tinha a capacidade de ouvir e de estar presente. Cada ator trabalhou de uma forma. Alguns memorizavam as falas, o que às vezes pode tirar a naturalidade. Nestes casos, começávamos o dia improvisando, ao mesmo tempo em que íamos seguindo o ritmo das cenas. Demos uma orientação comum a todos os atores, de todas as idades: ouvir seu parceiro de cena com toda a atenção. Se você realmente ouve a pessoa que está falando com você, reage e responde de acordo com o momento, mantendo o diálogo natural.

Anna Claire Beitel em cena de “Scarborough – Um Bairro Canadense” – Foto: Divulgação

Anna Claire Beitel tem uma atuação especialmente comovente e está presente em algumas das cenas mais duras do filme. Como vocês trabalharam com ela nestas cenas?

Anna tinha sete anos durante as filmagens, mas era muito madura e incrivelmente interessada no processo de filmagem. Quando o filme trata de um tema delicado, é importante que os pais da criança sejam parte integral do processo. Tivemos a sorte de Andrea, mãe da Anna, estar presente e disponível para trabalhar com ela tanto no set quanto em casa. Falávamos ao telefone para discutir as cenas e sugerir filmes para ela assistir. Na hora de rodar cenas intensas, usávamos jogos, referências visuais e cenários para ajudar a criar a resposta que queríamos. Por exemplo, na cena do macarrão [na qual o pai atira uma panela quente na direção da menina, que fica assustada, mas não se mexe], pensamos em formas de provocar a reação necessária substituindo alguns elementos para chegarmos a algo apropriado de se compartilhar com uma criança. Pensamos em algumas das melhores atuações infantis do cinema e lembramos de [Steven] Spielberg. Sabíamos que Anna gostava de Jurassic Park [filme de 1993 dirigido por Spielberg], então criamos um jogo no qual um Tiranossauro Rex estava por perto e ela tinha de ficar totalmente imóvel, se não seria vista por ele. E aí usávamos a “magia do cinema” – cortes rápidos, edição de som e visualizações – para criar a sequência.

As filmagens foram feitas seguindo a ordem de cenas do roteiro, o que não é muito comum, principalmente em filmes de orçamentos reduzidos como é o caso deste. Por que tomaram essa decisão e o que ela representou para a produção?

Tomamos essa decisão logo no começo, porque as crianças teriam mais facilidade para seguir o arco de seus personagens. Foi algo bom para a equipe também, já que a continuidade linear carrega uma característica do documentário: seguir a história conforme ela acontece. Além disso, sabíamos que as crianças crescem muito rápido nessa idade, e que se ficássemos indo e vindo no tempo, talvez fosse possível notar a diferença de idade de uma cena para a outra. No fim, a decisão acabou sendo crucial, porque a pandemia nos fez suspender a produção quando faltavam apenas oito dias para a filmagem acabar. Na cronologia da história, foi bem na cena que marca o início da primavera. Tudo o que vem em seguida, que é basicamente o terceiro do ato do filme, só foi rodado três meses depois, quando as restrições começaram a ser flexibilizadas. Foi incrível ver o quanto as crianças tinham crescido, então filmar em sequência foi das decisões mais importantes que tomamos.

Cena do filme “Scarborough – Um Bairro Canadense”, de Shasha Nakhai e Rich Williamson – Foto: Divulgação

O filme valoriza os programas sociais, mas também critica muitos aspectos do sistema público, como a longa espera, a dificuldade de acesso aos serviços, o médico que desencoraja uma mãe a buscar tratamento para o filho, a supervisora que condena a ligação pessoal da educadora com as crianças. Gostaria de saber se você concorda com esta leitura e se a experiência de fazer o filme lhe fez olhar para estes programas sociais a partir de uma nova perspectiva.

Sim, sem dúvida parte da nossa intenção era mostrar os problemas sistêmicos que representam desafios para as famílias, e ao mesmo tempo destacar o senso de comunidade que existe em lugares como Scarborough. É este senso de comunidade que aparece para cobrir os buracos deixados pelo sistema. O filme também reforça o quão importante são os programas comunitários que estão calcados em experiência de campo, e mostra a desconexão entre aqueles que tomam as decisões e aqueles que são afetados por essas decisões. A experiência de fazer este filme renovou nosso apreço por educadores, cuidadores e assistentes sociais, e ficamos felizes de a história ter tido forte impacto entre eles.

Scarborough mostra uma parte pouco conhecida do Canadá, cuja imagem, de forma geral, é a de um país quase perfeito onde tudo funciona. Também não é uma parte da sociedade que o cinema canadense retrata com frequência, ao menos a julgar pelos filmes que chegam ao Brasil. Para você, como tem sido destacar lugares, rostos e histórias que não costumam ser vistos?

Você tem razão: essa versão do Canadá não é a que costuma ser exportada internacionalmente nas telas. E é por isso que estávamos tão comprometidos em contar essa história. Não tínhamos visto ninguém fazer um filme assim no país, e acho que o sucesso de Scarborough reflete isso. Imigrei para o Canadá quando tinha 15 anos e a minha própria percepção sobre este lugar também mudou ao longo do tempo. E devo dizer que em Scarborough foi onde tive a sensação mais próxima do que é estar em casa.

Shasha Nakhai e Rich Williamson no set de “Scarborough – Um Bairro Canadense” – Foto: Kenya-Jade Pinto/Compy Films

Você atua tanto como produtora quanto como diretora. Na sua opinião, um trabalho ajuda o outro? Ter conhecimento e experiência em produção ajuda na hora de dirigir e vice-versa?

Tenho a sorte de meu cérebro me permitir habitar esses dois lugares, o que realmente considero um dom. Você sempre lidera melhor quando já desempenhou os papéis dos seus colaboradores antes, pois isso te dá um maior nível de empatia e de compreensão. Valorizo ainda mais as pessoas que produziram meus trabalhos agora que passei pela experiência de produzir um longa-metragem de ficção. No entanto, não recomendaria desempenhar as duas funções ao mesmo tempo. Sou muito grata por ter tido a produtora associada Kenya-Jade Pinto para entrar em ação sempre que eu tinha de focar na direção. Isso foi um aprendizado-chave nesse filme. Fora isso, por termos uma produtora Rich e eu conseguimos manter os direitos de nossa propriedade intelectual mesmo quando trabalhamos em parceria com empresas maiores, o que sem dúvida é uma vantagem.

Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?

Conheço algumas mulheres que trabalham no cinema e sofrem com a síndrome do impostor e com a sensação de que é preciso ser mais dura ou masculina para trabalhar nessa indústria. Parece que temos de ser muito cuidadosas com o modo com que nos apresentamos ou o modo como soamos. No passado também me senti assim, mas aprendi que é possível ser suave e forte ao mesmo tempo. Me sinto bem menos preocupada em tentar parecer ou soar como o que se espera de um diretor. No fim do dia, você só pode ser você mesma. E é totalmente possível trazer para a mesa tudo aquilo que você é. Você só precisa achar os colaboradores certos.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Kenya-Jade Pinto

Top