Sarah Blaßkiewitz fala sobre “Preciosa Ivie”: “Toda mulher negra é única”

Uma jovem abre a porta de seu apartamento em Leipzig, na Alemanha, e se vê diante de uma mulher mais ou menos da mesma idade, com quem nunca se encontrara antes. A visitante vem de Berlim e traz notícias inesperadas: a primeira é que as duas são irmãs; a segunda é que o pai, sobre quem quase nada sabiam, morreu há poucos dias e será enterrado em seu país natal, o Senegal.

Este é o ponto de partida de Preciosa Ivie, filme da diretora e roteirista Sarah Blaßkiewitz que fez sua estreia mundial no Festival de Munique e agora pode ser visto pelo público brasileiro na plataforma FILMICCA. Em seu primeiro longa-metragem, a cineasta de 36 anos conta uma história que não é autobiográfica, mas incorpora muitas de suas reflexões sobre família, amizade e como é ser uma mulher afro-alemã.

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Um dos primeiros pontos de contato entre Sarah e suas protagonistas está no fato de também ela ter encontrado o que chamou de “buracos em sua biografia”. “Meu avô era da Guiné, mas só o vi uma vez antes de ele morrer”, afirmou, em entrevista por e-mail ao Mulher no Cinema. “Continuo sem conhecer muitas das histórias dele e as respostas que poderia ter me dado. Por causa isso, ainda não consegui estabelecer relação com a Guiné.”

Da mesma forma, as jovens de Preciosa Ivie buscam entender que relação querem e podem ter com suas raízes africanas. Após se conhecerem, as irmãs Ivie e Naomi devem decidir se vão ao Senegal, onde poderão se despedir do pai, conhecer outros familiares e saber mais sobre suas origens. A decisão não é simples, nem afeta as duas protagonistas da mesma maneira. “Meu principal objetivo era mostrar que há pelo menos duas formas de se olhar para uma situação, e que toda mulher, especialmente toda mulher negra, é única”, afirmou a diretora. “É essa a ideia que está no DNA da história.”

Haley Louise Jones e Lorna Ishema em cena de “Preciosa Ivie”, de Sarah Blaßkiewitz

Entre as duas personagens, quem passa pela maior transformação é Ivie, interpretada por Haley Louise Jones. Criada em Leipzig em meio a familiares e amigos brancos, ela trabalha em um jardim de infância e faz bico em uma clínica de bronzeamento artificial, enquanto busca vaga como professora de Ensino Médio em escolas de prestígio. Nas entrevistas de emprego, Ivie tem de responder às frequentes perguntas sobre sua origem e ouvir os responsáveis pela contratação se dizerem animados com a possibilidade de ter um corpo docente mais “multicultural”. Aos amigos, ela relata seu incômido: “Que cultura?”, questiona. “Eu sou alemã!”

É a chegada de Naomi (Lorna Ishema) que leva Ivie a refletir de forma mais profunda sobre sua identidade e o modo como é vista pelos outros. Estando mais próxima da cultura africana e mais envolvida em discussões sobre gênero e raça, Naomi pode dar nome ao incômodo sentido por Ivie: racismo.

O filme é especialmente interessante quando aborda o racismo corriqueiro que pode existir dentro do próprio círculo de amigos e familiares de uma pessoa negra. Em uma cena marcante, Naomi se choca ao saber que Anne, a melhor amiga de Ivie, se refere a ela como “Chocolatinho”. Em resposta, Anne argumenta que o apelido é carinhoso e usado desde a infância, enquanto Ivie reforça o coro, dizendo nunca ter se incomodado.

Na entrevista ao Mulher no Cinema, Sarah contou que esta cena foi uma das primeiras que escreveu, e que boa parte da trama se desenvolveu a partir dela. “Na minha juventude, muitas pessoas não brancas, fossem jovens ou velhas, eram chamadas de Chocolatinho a partir da mesma perspectiva que Anne tem no filme”, afirmou a diretora. “Para mim, foi um longo processo perceber que não queria ser chamada assim. Levou anos. Você não entende isso logo de cara, porque a palavra costuma ser usada de forma carinhosa.”

Como exemplo da normalização deste tipo de tratamento, Sarah citou o filme Corina, Uma Babá Perfeita (1994), no qual uma criança branca e uma criança negra brincam de lamber a bochecha uma da outra para saber se têm gosto de baunilha e chocolate. “Eu amava esse filme na infância, então achava que era ok falar desse jeito”, explicou a diretora. “Mas já é hora de abandonarmos esse padrão de pensamento e educarmos as próximas gerações mais cedo. Assim, esse tipo de designação imprópria vai parar de existir.”

Cena de “Preciosa Ivie”, filme dirigido por Sarah Blaßkiewitz – Crédito: Divulgação

Embora a trama de Preciosa Ivie retrate bem as nuances do contexto local, muitas situações do filme poderiam se passar em outros lugares do mundo, incluindo o Brasil. “Quando comecei a escrever, pensava que seria apenas uma historinha alemã. Queria explorar coisas do cotidiano e abordar temas pessoais, próximos de mim. Não estava pensando de forma universal”, afirmou a diretora. “No entanto, já na seleção de elenco percebi que não estava sozinha em minhas experiências. Estou muito feliz de o filme estar encontrando espectadores ao redor do mundo e de o lugar onde a história se passa ser algo quase sem importância.”

O sucesso de Preciosa Ivie também se deve ao talento das artistas que encabeçam o elenco. Premiada como atriz coadjuvante no German Film Awards, o Oscar da Alemanha, Lorna Ishema sempre esteve no radar de Sarah, que escreveu o papel de Naomi para ela. “Pude envolvê-la no filme desde cedo e receber muito retorno. Nossas conversas me encorajaram bastante”, definiu.

Para escalar Ivie, a cineasta convidou cinco atrizes para um teste, incluindo Haley Louise Jones, a quem conhecera num processo seletivo anterior. “Quando Haley entrou na sala, o lugar mudou”, contou a diretora. “Somos muito parecidas e totalmente diferentes, e o que mais me atraiu nela foi o fato de ser uma mulher com quem eu poderia descobrir muita coisa. Ela é engraçada, inteligente e focada, tudo ao mesmo tempo.”

Cena de “Preciosa Ivie”, filme dirigido por Sarah Blaßkiewitz – Crédito: PeterHartwig/Divulgação

Sarah trabalhou de perto com a equipe de direção de arte e figurino para que as características de cada personagem se traduzissem visualmente: as roupas e o apartamento de Ivie são mais sóbrios; as de Naomi, mais vibrantes. “Eu também queria que as diferenças entre Berlim e Leipzig fossem visíveis na própria aparência das pessoas”, acrescentou a diretora. “Quando alguém aparece, você deve saber de que esfera social ela vem.”

No caso da fotografia, assinada por Constanze Schmitt, a prioridade era utilizar luz e sombra para iluminar corretamente a pele negra, sem apenas reproduzir padrões usados para filmar atores brancos. “Tenho experiência como atriz e sei que isso às vezes é uma questão na Alemanha: como lidar com a pele de pessoas negras, indígenas ou não brancas”, contou Sarah. “Espero que as coisas mudem rápido.”

Nos últimos anos, mulheres dirigiram muitos dos filmes alemães de maior destaque internacional. Este bom momento da produção feminina se reflete, por exemplo, na criação da Mostra Alemã de Cinema: Elas Dirigem!, cuja terceira edição foi realizada neste ano em São Paulo (SP) e teve Preciosa Ivie como longa de abertura. A presença das artistas negras precisa crescer, mas Sarah acredita que uma nova geração de cineastas está buscando levar novas perspectivas às telas do país. “Algo certamente está acontecendo e, aos poucos, estamos vendo mais afro-alemães no cinema e na televisão”, afirmou. “Acho que a indústria cinematográfica daqui está percebendo, lentamente, que não pode existir sem as nossas narrativas. Mas, hoje, ainda não é o padrão.”

Questionada sobre que conselho daria às mulheres que querem trabalhar no cinema, a diretora recomendou “ter casca grossa” para lidar com o patriarcado do mercado audiovisual e o modo desigual com que homens e mulheres são valorizados. “Se você busca uma boa ‘família’ cinematográfica e trabalha de forma coletiva, as coisas ficam melhores”, completou. “As mulheres têm de se proteger mais e, ao mesmo tempo, denunciar o que está errado, o que pode ser exaustivo e desafiador. Por isso, pense grande!”


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

A entrevista contou com a colaboração de Letícia Mendes.

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