Renata Pinheiro retrata contexto brasileiro em “Carro Rei”: “É um filme do caos”

Não são poucos os temas que Renata Pinheiro aborda em seu novo longa, Carro Rei, que chega aos cinemas nesta quinta-feira (30). Premiado no Festival de Gramado e selecionado também para o Festival de Roterdã, o filme toca em questões como o domínio da indústria automobilística, o embate entre homens e máquinas, o impacto da tecnologia e das fake news, o descaso com o meio ambiente e a ameaça de movimentos fascistas. 

“É um filme que fala sobre muitas coisas, mas principalmente sobre o Brasil de hoje”, afirmou a diretora, em entrevista ao Mulher no Cinema. “É um filme que não tinha como não ser tão intenso, que não passa pelo filtro da técnica de roteiro do limpar, limpar. É um filme que realmente é do caos.”

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Diretora de filmes como Amor, Plástico e Barulho (2013) e Açúcar (2017), Renata desta vez se uniu aos corroteiristas Sergio Oliveira e Leo Pyrata para contar a história de Uno (Luciano Pedro Jr), um jovem que tem o dom de se comunicar com carros. Quando uma lei proíbe a circulação de veículos antigos, Uno busca ajuda do tio mecânico, Zé Macaco (Matheus Nachtergaele), para transformá-los em “novos”. Surge, então, o Carro Rei, que pode falar, ouvir, fazer sexo e fazer planos.

Como nos demais filmes da cineasta, que também tem longa carreira na direção de arte, o visual é um dos destaques, com muitas luzes, cores e criatividade na definição de cenários, objetos e figurinos. A locação escolhida foi Caruaru, em Pernambuco, o estado natal de Renata. “A gente achou legal que o filme se passasse em um Brasil menos explorado, mais de dentro”, afirmou. “Quando a gente leva o filme para esse lugar, já vem toda uma visualidade junto – as pessoas, a arquitetura.”

Imagem do filme “Carro Rei”, de Renata Pinheiro

Carro Rei foi um dos três longas dirigidos por mulheres que integrou a competição nacional de Gramado em 2021, junto com O Novelo, de Claudia Pinheiro, e A Primeira Morte de Joana, de Cristiane Oliveira. No festival, ganhou os troféus de melhor filme, direção de arte, som e trilha sonora, além do Prêmio Especial do Júri para a atuação de Nachtergaele.

Leia a entrevista com Renata Pinheiro, realizada em agosto de 2021, pouco antes da estreia em Gramado:

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Como o projeto começou e por que quis contar essa história?

Este projeto é bem antigo. Comecei em 2013, 2014, e ganhei o primeiro edital em 2015, quando o Brasil ainda estava vivendo um certo boom econômico. Foi uma coisa de sentimento, de observação mesmo, sobre como tinha aumentado a quantidade de carros nas ruas [do Recife] desde o começo dos anos 2000. Acho que é um fenômeno que aconteceu no Brasil: o carro é ainda símbolo de prosperidade e a indústria automobilística é a que movimenta a economia brasileira. Um dia, caminhando pela rua com o Sérgio [Oliveira, corroteirista e companheiro da diretora] eu disse: “Esses carros são os donos da cidade”. E daí veio a vontade de fazer um filme no qual eu desse vida para os carros. É algo que faz parte da minha pesquisa de linguagem visual, dar vida a objetos inanimados. A partir daí o roteiro teve vários tratamentos e foi sendo atualizado, porque o Brasil mudou demais. Depois do impeachment [da presidente Dilma Rousseff, em 2016] veio essa onda no mundo todo que usa a tecnologia com má-fé, essa bomba de fake news que explodiu e mudou a realidade de vários países. É um filme que fala sobre o falso discurso e as falsas promessas, de entrar em algo achando que é uma coisa e se ver totalmente envolvido em um esquema de fascismo e totalitarismo. Então é um filme que fala muito do Brasil de hoje, e que não tinha como não ser tão intenso. Ele não passa pelo filtro da técnica de roteiro do limpar, limpar. É um filme que realmente é do caos. E ele se comunica assim e é nessa chave que ele vai.

Quando você terminou o último tratamento do roteiro?

Em meados de 2018, mas o roteiro só termina quando a gente está filmando, e a filmagem foi em abril e maio de 2019. É um roteiro bem original, que daria até para gerar Carro Rei 2, Carro Rei 3 [risos]. Gosto de uma história bem contada e sempre quero atingir o público. Acho que as grandes influências para mim são [Steven] Spielberg, [Federico] Fellini, coisas que são da grande plateia. Talvez eu não seja tão pop quanto gostaria, mas é o que curto. E acho que esse filme se comunica com todo tipo de público. 

Renata Pinheiro e a equipe no set de “Carro Rei” – Foto: Camila Lapa

Você citou Spielberg e Fellini, e o filme também faz pensar em referências como Christine, o Carro Assassino (1983), Holy Motors (2012) e Bacurau (2019), além da obra do David Cronenberg. Eram referências que você tinha?

A inspiração veio da minha vida mesmo. Acho que ela sempre vem do que a gente passa e daquilo que a gente quer analisar e processar. A realidade do Brasil é riquíssima e os problemas sociais me alimentam bastante no sentido de querer investigá-los e causar reflexão. Claro que assisti a todos esses filmes e de alguma forma eles me influenciaram. Mas não pesquisei filmes de carro, nem sou aficcionada por filmes de carro. Não posso dizer que faço filmes de gênero – é um projeto dentro da minha obra e da minha trajetória.

Você é diretora de arte, embora não tenha assumido essa função em Carro Rei, que ficou com a Karen Araújo. Fale um pouco sobre o visual que vocês criaram para o filme.

Tudo vem um pouco junto. Começa por escolher que a história se passe em Caruaru, uma cidade de porte médio, com uma riqueza cultural muito grande, que é quase uma encruzilhada entre o agreste, o sertão e o litoral. Quando a gente leva o filme para esse lugar, já vem toda uma visualidade junto – as pessoas, a arquitetura. A gente achou legal que o filme se passasse em um Brasil menos explorado, mais de dentro. O visual vem de um trabalho diário de construção e de descobrir as locações. E às vezes eu gosto até de trabalhar com as dificuldades. O lugar onde fizemos o ferro velho, por exemplo, encontrei no Google Earth, porque vi uma construção e uns carros velhos. Precisávamos ampliar aquele lugar, mas como fazer isso se não tem dinheiro? Aí a criatividade vem: de um lado colocamos uma estrutura de ferro com umas telhas, de outro uma lona. Isso tinha a ver com o conceito do filme também, de falar do brasileiro gênio, que se reinventa com poucos recursos. A mesma coisa com o carro do filme, que é uma tecnologia avançada, mas com pouquíssimo recurso. 

Imagem do filme “Carro Rei”, de Renata Pinheiro – Foto: Divulgação

A cena mais marcante do filme, para mim, é aquela em que os jovens de uniforme começam a se movimentar como robôs enquanto toca o hino nacional. Gostaria que você falasse sobre ela. 

É uma grande cena mesmo, que sempre me emociona muito. Para mim, era como se de repente a gente visse os nossos jovens, que são o futuro do Brasil, dentro de uma seita. Como se literalmente tomassem alguma droga e ficassem dopados ali, e de repente o hino nacional começa a tocar e a embalar esses zumbis que começam a se robotizar e a serem instrumentos do sistema. Eles passam a não pensar, a só obedecer algo que vem de cima e que está usando todos eles. Para mim é uma metáfora da juventude que foi cooptada por esse poder vigente, por esse falso discurso da esperança e da prosperidade. Para mim é exatamente aquela cena. E é muito triste.

Você comentou sobre como queriam mostrar um Brasil menos visto, e essa era um dos aspectos mais positivos do novo cinema nacional, o fato de as políticas públicas terem buscado descentralizar a produção. Isso se perdeu com o governo Bolsonaro, embora saiba que editais estaduais e municipais sigam existindo. Como você vê essa situação e qual a importância de o cinema brasileiro mostrar diferentes paisagens e empregar profissionais de diferentes regiões?

Somos muitos Brasis, né? A gente estrou em Roterdã e só havia um outro filme brasileiro selecionado, que era de Goiás. Achei isso interessante: talvez os festivais queiram conhecer esse Brasil mais revelador e menos visto. Não que ache que [os festivais internacionais] são mais importantes, mas também é importante levar a cara do Brasil para fora, já que fazemos parte de uma comunidade global. As políticas estaduais continuam no Recife, mas é um recurso bem pequeno e não há como procurar outro, porque os federais não existem. Então o cinema independente vai sofrer muito. As grandes produtoras vendem seus projetos com muito mais facilidade para os players e conseguem muita grana. A gente vai ter mais dificuldade ainda para produzir. E aí como é que ficam esses profissionais? É um grande mercado, faculdades e mais faculdades foram se abrindo ao longo dos anos. Esses estudantes vão para onde? Esses profissionais vão viver como? É uma situação muito grave, mas a gente vai ter de dar um jeito. O cinema independente argentino é bem simples, com poucos personagens e locações. Às vezes eles fazem por fases, filma uma semana agora, depois se organiza e filma em outra semana. Esse esquema nunca foi o nosso, a gente sempre ficou no modelo da indústria americana. Então a gente vai ter de se reinventar para sobreviver e conseguir produzir.

Imagem do filme “Carro Rei”, de Renata Pinheiro – Foto: Divulgação

No mês passado um incêndio destruiu um galpão que abrigava parte do acervo da Cinemateca Brasileira em São Paulo. Como você vê este momento da cultura no Brasil e qual a importância de se preservar a memória e o cinema do país?

O que aconteceu com a Cinemateca é um grande absurdo, uma ferida que não vai cicatrizar. É um trauma imenso que tem de estar de alguma forma registrado nos nossos filmes, ou onde a gente puder falar, porque o brasileiro médio não tem a menor consciência do terror que é perder todo um acervo cinematográfico, um documento histórico e cultural nosso. É a gente perder a alma – e é isso que eles querem. Eles querem um outro Brasil, sem alma, sem cara, sem rosto, sem aparência, sem corpo, que surja do zero. É um zumbi o que eles querem. Um zumbi que não tem coração, que não tem nada, que é só um novo brasileiro. Não sou contra religião nenhuma, mas de alguma forma a religião hoje dominante, que é a evangélica, também tem um plano de uma construção cultural brasileira completamente diferente do que somos. É muito grave, porque não é só perder esse acervo: é que isso faz parte de um plano muito nefasto que está aí, acontecendo. Não vejo uma articulação poderosa para a gente sair desse buraco. É muito difícil num país no qual a ignorância e o negacionismo estão sendo tão bem alimentados. É muito difícil conseguir resultados e comoção nacional a respeito disso. E nós todos temos filmes na Cinemateca. Meu primeiro curta, o Superbarroco (2008), foi filmado em 35 mm. Desde o ano passado ou retrasado tentamos entrar em contato com a Cinemateca para pegar a cópia e digitalizar. Mas tirar o rolo de lá é muito burocrático, você precisa ter um motivo, e meu motivo era simplesmente duplicar a cópia, ter uma versão digital. Mas era muita complicação e depois tiraram todos os funcionários. Então tenho certeza que todo mundo está passando por isso que eu estou passando, que é: olha, vocês não querem cuidar, mas deixa eu pegar meu material? Deixa comigo, fica na minha casa. Nem isso eles facilitam, porque eles querem destruir. Não tem outra explicação.

Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?

Viver intensamente, mergulhar nas suas próprias sombras. Tudo isso vai fortalecer muito as suas certezas quando você for fazer sua obra. É não ter medo nem das suas próprias sombras, quiçá das sombras que vão vir do mercado, do mundo machista. Se você enfrenta suas sombras, você está preparada para tudo.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Raul Toscano

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