Renata Martins leva projeto autoral para a tela da Globo em ‘Histórias (Im)possíveis’

A antologia Histórias (Im)possíveis, que integra a programação deste ano da Rede Globo, ocupa um lugar curioso na trajetória da roteirista e diretora Renata Martins. Por um lado, é uma obra como nenhuma outra em sua carreira; por outro, um bom resumo de seu trabalho até aqui.

A série de cinco episódios (o segundo, “Pintadas”, vai ao ar nesta segunda-feira, 17, após o Big Brother Brasil) marca a estreia de Martins na autoria de um projeto para a televisão aberta. A antologia, criada em parceria com Grace Passô e Jaqueline Souza, reúne tramas ficcionais de suspense que são protagonizadas por mulheres e utilizam elementos de fantasia e mistério para abordar os medos femininos.

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O fantástico já estava presente nos dois curtas de Martins como roteirista e diretora – Aquém das Nuvens (2012) e Sem Asas (2019) – , assim como a atenção a questões sociais urgentes, sobretudo às ligadas à raça, classe e gênero. O protagonismo feminino de Histórias (Im)possíveis também era central na websérie documental Empoderadas, que idealizou ao lado de Joyce Prado, e a diversidade da equipe contratada para trabalhar na antologia reflete o ativismo da artista por um audiovisual mais igualitário.

Histórias (Im)possíveis nasceu no contexto da pandemia do novo coronavírus (Covid-19) e das discussões antirracismo que movimentaram o Brasil e o mundo em meados de 2020. Foi também neste momento, mais precisamente no mês de maio, que uma reportagem da revista Marie Claire provocou revolta nas redes sociais. Intitulado “Mulheres no comando”, o texto traçava perfis de oito diretoras de destaque da Globo e vinha acompanhado de uma foto que mostrava as profissionais citadas – todas brancas.

Jaqueline Souza, Renata Martins e Grace Passô, as autoras de “Histórias (Im)possíveis” – Foto: Globo/Daniela Toviansky

Uma das diretoras na foto era Luísa Lima, que estava interessada em trabalhar com outras mulheres e foi apresentada ao trabalho de Martins pela atriz e diretora Ana Flavia Cavalcanti. As duas começaram a conversar e Martins apresentou a ideia inicial da série, já desenvolvida em parceria com Grace Passô e Jaqueline Souza. Contratadas para seguir em frente, elas passaram três meses detalhando o projeto e escrevendo o episódio piloto, “Mancha”, sobre a complexa relação de uma empregada doméstica negra e sua patroa branca. 

As autoras pensavam que o conteúdo seria encaminhado à Globoplay, mas o interesse veio da TV aberta. Após reuniões com os executivos da Globo, decidiu-se inserir Histórias (Im)possíveis no projeto Falas, antes conhecido como Identidade, e ligar cada episódio a uma efeméride: Dia da Mulher, Dia dos Povos Indígenas, Dia do Orgulho LGBTQIAPN+, Dia da Terceira Idade e Dia da Consciência Negra. “Eu disse [à direção da emissora] que não seria uma celebração, e sim um olhar crítico a essas datas, que existem para a gente entender o motivo de a gente lutar”, contou Martins, em entrevista ao Mulher no Cinema.

Com a aprovação do projeto, os textos iniciais foram desenvolvidos pela equipe de roteiristas, que passou a contar, também, com Thais Fujinaga, Hela Santana, Graciela Guarani e Renata Tupinambá. Luísa Lima assumiu a direção artística e a direção dos episódios, que também foi assinada por Thereza de Médicis, Everlane Moraes, Graciela Guarani e Fábio Rodrigo. E se a diversidade de gênero e raça da equipe chama a atenção, também é notável a escolha de profissionais que não tinham experiência prévia na televisão. “Pintadas”, o episódio que vai ao ar nesta segunda-feira, é protagonizado pelas atrizes indígenas Ellie Makuxi, Dandara Queiroz e Isabela Santana, todas estreantes. Já o episódio “Mancha”, exibido em 8 de março, foi dirigido por Moraes, importante nome do cinema documental, ficcional e experimental brasileiro que nunca tinha trabalhado na TV aberta. 

Para Martins, era importante promover o encontro de talentos distintos e questionar lugares estabelecidos. “Não tem como a gente mudar se continuar fazendo as mesmas coisas, e acho que os executivos da emissora entenderam isso”, afirmou a cineasta, que celebra a possibilidade de falar com o público amplo da Rede Globo. “No fundo, somos todas comunicadoras, e queremos que a nossa história chegue ao maior número de pessoas.”

Leia a entrevista com Renata Martins sobre Histórias (Im)possíveis:

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Histórias (Im)possíveis reúne tramas ficcionais sobre os medos femininos, e no início do projeto vocês fizeram uma pesquisa para saber mais sobre esses medos. Como se deu a pesquisa e de que modo ela influenciou a criação das histórias?

Num primeiro momento nossa pesquisa passou por nossos próprios medos e pelos medos que observávamos na sociedade. Aí surgiu a curiosidade de saber quais seriam os maiores medos das mulheres, pensando a partir dos recortes de classe, raça e identidade de gênero. A [pesquisadora] Jaqueline Neves criou um formulário, disparamos nas nossas redes sociais e conseguimos angariar mais de mil respostas. Então fizemos o mapeamento desses medos: o medo de perder o emprego, de andar na rua, da violência doméstica, do estupro, do envelhecimento, de perder o território. Tivemos isso como panorama para poder pensar as tramas, além de outras pesquisas e leituras que a gente fez. Também foi importante pensar sobre como o medo opera: ele nos paralisa, mas também nos lança em movimento. Usamos a brecha entre o real e fantástico para que o medo se apresente para nossas protagonistas, mas elas encontrem uma solução para ele.

Foi isso que motivou a escolha por uma série de gênero, que incorpora elementos fantásticos?

Gosto do fantástico desde a universidade. Quando vi A Última Gargalhada, do [cineasta alemão F.W.] Murnau, que não é necessariamente fantástico, mas aquelas vertigens, a embriaguez do concierge, o modo como tudo aquilo afeta a imagem…percebi que o cinema também era um lugar para o não real. Me motiva muito pensar em algo que rompa a realidade e ofereça novas imagens para o público. Meus curtas já trazem alguns elementos assim, e trabalhei numa série de gênero, então vi muitas produções de terror. A Jaque também gostava e trabalhava com terror, então acho que a gente já estava nessa chave. Acho também que o [cineasta americano] Jordan Peele trouxe um jeito de pensar terror que é um marco, sobretudo para realizadoras negras e negros. Ele mostrou que dá para a gente mudar o ponto de vista de quem sente medo. E a realidade já não dá mais conta de a gente contar nossas histórias. Corpos negros sangrando, violência policial, morte – isso já não acessa mais. Então quais são os dispositivos de linguagem que a gente consegue utilizar para estabelecer um diálogo com o nosso público? Acho que tudo isso faz parte do que tenho pensado no audiovisual.

Josy (Dandara Queiroz), Michele (Isabela Santana) e Luara (Ellie Makuxi), as personagens do episódio “Pintadas” – Foto: Globo/Manoella Mello

Fale um pouco sobre “Pintadas”, o episódio que vai ao nesta segunda-feira.

Foi o episódio mais desafiador porque ele não existia na versão original: entrou quando o projeto foi para a TV aberta e ficou ligado às efemérides [no caso, o Dia dos Povos Indígenas]. Então tivemos de pensar o episódio dentro do conceito da série, ou seja, de um projeto que tem elementos fantásticos, tem mulheres como protagonistas e aborda os medos dessas mulheres. Pensamos em várias coisas: será que falamos das meninas indígenas na cidade? Será que falamos das meninas no território delas? O que é contemporâneo nesse universo? Nesse momento assumi a chefia da sala de roteiro e tive o desafio de trazer diferentes vozes e filtrar o que tinha a ver com a série, mantendo sua unidade. Além disso, estendemos para todas as personagens a discussão que tivemos em relação às mulheres negras. O que é criar e construir uma personagem indígena esférica? O que podemos fazer para não reproduzir imagens que já não queremos ver? Chegamos então à história de três meninas: duas estão na universidade e a outra, que canta e compõe, está aldeada. Esta menina pede que a prima que está na cidade volte ao povoado para gravar um clipe, mas a prima não tem memórias muito boas do que aconteceu ali. Então falamos um pouco sobre violência contra a mulher a partir do laço de amizade entre elas. É um episódio que também lança uma pergunta para nossos parceiros e parceiras do audiovisual: por que a gente contrói tão poucos personagens indígenas? Por que a gente não consegue pensar nessas vidas? Por que não consegue criar personagens para nossas produções e universalizar essas relações? Há particularidades que são daquelas meninas, mas vê-las em momentos de felicidade, cantando – isso já é uma perspectiva de humanização, uma imagem que a gente viu pouco. É um episódio muito bonito, que traz camadas profundas. A gente começa a pensar a questão da mulher indígena de uma perspectiva mais externa e vai se aproximando.

De forma geral, como funcionava a sala de roteiro de vocês?

Na primeira fase, eu, Jaque e Grace nos encontrávamos todos os dias pela manhã, e cada uma trazia questionamentos e histórias que poderíamos explorar. Era um momento em que muita coisa estava acontecendo politicamente no que dizia respeito a corpos negros, relações sociais e trabalho doméstico, algo sobre o qual a gente sempre pensou muito. Era um caldeirão de informações, desejos, histórias das quais a gente ouviu falar, coisas que a gente via. A partir daí fomos desenvolvendo as sinopses dos episódios. Cada uma pegava uma sinopse, escrevia, aí trazíamos para a sala, trocávamos, uma fazia a segunda versão da sinopse da outra…Nesse momento, foi assim que funcionou. Na segunda fase a gente tinha as bases das sinopses, então fomos estruturando as histórias em escaletas para que fossem escritas. Algumas vezes dividíamos as cenas entre a sala. Por exemplo, a Thais [Fujinaga], que tinha mais experiência, escrevia em parceria com uma roteirista não tão experiente. Esse mix de talentos em estágios distintos foi algo importante para a sala. Difícil, mas importante.

Este é um dos aspectos que mais me chama a atenção no projeto: o fato de a equipe ser formada por muitos profissionais estreantes ou que tinham experiência em cinema, mas não em televisão. O que motivou a decisão de buscar pessoas além daquelas que já eram da TV?

O projeto já nasce com o conceito de aproximar talentos, algo que também tem a ver com meus trabalhos anteriores. O Empoderadas buscava criar um ambiente de trabalho saudável para mulheres, sobretudo mulheres negras, que não acessavam o mercado. Foi o primeiro set de muitas meninas, que a partir dali foram trabalhar em outros lugares. Então isso está no conceito da série, e aí vem o momento de convencer a emissora quanto à importância de fazer esse encontro de talentos. O episódio “Mancha” traz esse impacto sobretudo no que tange à direção: é a Everlane, uma diretora de cinema autoral, trabalhar com a Luísa, uma diretora que está na Rede Globo há anos, fazendo trabalhos com perspectiva autoral também, mas dentro da lógica da TV. É um encontro muito positivo para o público, e é uma construção mesmo, é pensar sobre os lugares que estão estabelecidos. Não tem como a gente mudar se continuar fazendo as mesmas coisas, e acho que os executivos da emissora entenderam a importância disso. Eu já tinha trabalhado em TV, mas não num projeto autoral; a Jaque também não era da TV; a Grace é do teatro; a Thais tinha passado por todas as linguagens; a Hela veio da oficina da Globo; a Graciela e a Renata não tinham muita experiência e entraram primeiro como consultoras, mas entendemos a importância de elas escreverem outras histórias com a gente, de deslocar os lugares, de não falar que mulheres indígenas só vão escrever sobre mulheres indígenas. Tudo isso é fundamental para qualquer mudança que a gente queira fazer. É uma generosidade coletiva de todo mundo ceder um pouco. Acho que foi [preciso reunir] muita gente corajosa para esse projeto acontecer. Muita gente corajosa, muita gente legal, muita vontade. Quando eles [os executivos da Globo] entenderam qual era o projeto e qual era a proposta, todo mundo embarcou e as energias foram para que o processo acontecesse. Isso foi muito massa. De forma geral, foi um processo muito positivo, uma mudança de patamar na minha carreira. Sair do cinema independente e ir para a grande mídia dá um medo gigantesco, principalmente pelo gênero [da série] não ser tão simples de entender. Fiquei lendo as reverberações e teve gente que não entendeu, teve gente que gostou muito mesmo sem entender…Ao mesmo tempo, acho que a mensagem central conseguiu chegar. Estou muito feliz com o projeto, com a reverberação, com o fato de poder contar essa história na TV com o cuidado que a gente teve. E numa TV como a Rede Globo, à qual a gente cresceu assistindo e que é uma das maiores da América Latina. É muito legal ter a possibilidade de falar com tanta gente. No fundo, somos todas comunicadoras, e queremos que a nossa história chegue ao maior número de pessoas. Quando a emissora nos diz que 21 milhões de espectadores pararam, numa noite de segunda-feira, para assistir [ao primeiro episódio]…é uma loucura, é surreal.

Isabel Teixeira e Luellem de Castro, as protagonistas do episódio “Mancha” – Foto: Globo/Manoella Mello

Acompanhando sua carreira, tenho a impressão de que você está empenhada em impulsionar e destacar outras mulheres, sobretudo negras. Você criou a websérie Empoderadas, que contou histórias de mulheres negras; organizou o Encontro Nacional Empoderadas, que exibiu filmes de mulheres negras; escreveu um texto que apresentou a Adelia Sampaio para muita gente; contratou uma equipe inclusiva para o Histórias (Im)possíveis; e até num nível mais pessoal, me lembro de uma vez você me mandar uma mensagem para perguntar se eu conhecia o trabalho da Everlane, porque achava que ela seria uma boa entrevistada para o Mulher no Cinema. Ou seja, você me parece ser alguém que quer seguir em frente levando outras pessoas com você. De onde vem essa característica ou o que motiva esse seu desejo e essa sua ação?

[Pausa] Acho que tem a ver com um sentimento de solidão no próprio mercado. Não faz sentido conquistar espaço e continuar sendo essa única pessoa. E acho que tem a ver com a própria lógica dos movimentos negros, do entendimento de que a gente é mais forte juntas. Acredito muito nos talentos individuais, mas também na força do coletivo. Sobretudo nós, mulheres negras, pessoas da comunidade trans e indígena – nós que estamos sempre muito fora, muito à margem destes espaços, é importante que a gente chegue junto e possibilite espaços para outras pessoas. Quando vi a obra da Everlane, falei: “Como as pessoas não estão falando dessa menina? Os filmes dela são maravilhosos, ela tem um discurso muito poderoso, foi estudar em Cuba, é super jovem. As pessoas precisam ver, o mundo precisa ver.” E para mim, era muito importante que ela estivesse nessa série. Todo o diálogo com a Luísa foi esse: “Para a discussão que a gente está trazendo, é importante o encontro artístico de vocês duas”. Eu achava que ambas iam aprender muito uma com a outra, e espero que sejam parceiras em outros projetos. Então não sei, não tenho uma resposta, mas talvez seja alguma coisa ancestral, algo que de certa forma me faça sentir parte de algo. E também que vem da clareza de que poucas mulheres negras foram visibilizadas durante a formação da indústria audiovisual. É uma reparação histórica, no sentido de que as pessoas vão ter de saber que a gente existe e que a gente é muito talentosa.

No episódio “Mancha” há um momento em que a personagem Mayara diz à patroa, Laura, a frase “E eu não sou uma mulher?”, numa referência ao histórico discurso de Sojourner Truth (1797-1883) na Convenção dos Direitos das Mulheres que ocorreu nos Estados Unidos em 1883. Fale um pouco sobre como buscaram trabalhar referências e reflexões como esta em uma obra produzida para a televisão aberta e direcionada a um público muito amplo e heterogêneo.

Esta frase da Sojourner Truth balizou nossa crítica daquela foto [publicada na revista Marie Claire]. Quando se fala “essas são as mulheres, as promessas da Rede Globo”, então nós, mulheres negras, não somos mulheres? Neste sentido, a Mayara é uma mulher, mas não é vista como mulher porque tem uma função muito específica naquela família. A frase não estava no roteiro original, mas quando [os episódios] foram recortados para as efemérides, e este ficou para o Dia da Mulher, percebemos que precisávamos falar sobre as mulheres e as diferenças entre elas. Toda a narrativa passa por isso, porque, para a Laura, ser mulher não é ser o que a Mayara é. Foi uma provocação que a gente lançou – teve gente que pegou, teve gente que não pegou. Houve outras também. Por exemplo, o sobrenome da Mayara é o mesmo da Laudelina de Campos Melo, a primeira empregada doméstica brasileira a abrir uma associação. Também há um pouco do poema da [escritora americana] Maya Angelou [“Ainda assim eu me levanto”, publicado em 1978], que tem a ver com resiliência, sobretudo das mulheres negras, pois a todo momento tem alguém tentando impedir sua ascensão. E a discussão central deste episódio tem a ver com [a obra das intelectuais brasileiras] Beatriz Nascimento e Lélia Gonzales, com a ideia de que as mulheres negras participavam da luta feminista cuidando dos filhos das mulheres brancas que estavam nas manifestações. Então, de certa forma, a gente traduziu para o episódio um caldeirão dessas mulheres todas que estavam pensando a sociedade. Tínhamos o desejo de traduzir uma frase de séculos atrás para a conteporaneidade, até para vermos que a gente evoluiu, sim, mas algumas manchas são muito difíceis de apagar. Por isso, devemos lembrar delas a todo instante.

Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no audiovisual?

Sejam bem-vindas! [risos] Acho que o caminho está trilhado. Sou de uma geração que acessou o cinema em 2005, e da minha geração para cá, muita coisa já aconteceu, muitas mulheres pavimentaram esse terreno para que outras pudessem vir. Ainda tem muito trabalho, muita coisa para ser feita, muitas vozes para serem ouvidas, muitas histórias para serem contadas. Então sejam todas bem-vindas!


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Reprodução/Twitter Renata Martins (@Recine12)

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