Pioneira cineasta maori, Merata Mita é tema de filme dirigido por seu filho

“Sempre acreditei que assim como nossas terras são tomadas, nossa pescaria é tomada e nossas florestas são tomadas, o mesmo acontece com as nossas histórias. O que vemos na tela é apenas a perspectiva dominante sobre a vida: branca e monocultural. Precisamos ver a nós mesmos. Precisamos ver o nosso povo na tela. Precisamos poder nos identificar com a nossa própria raça. E precisamos sair por aí e fazer isso acontecer.”

A declaração acima foi feita em 1987 pela cineasta Merata Mita (1942-2010), diretamente do set de Mauri, o primeiro longa-metragem de ficção dirigido exclusivamente por uma mulher maori, povo indígena da Nova Zelândia. E se a fala parece extremamente atual, o mesmo pode-se dizer sobre basicamente todas as muitas entrevistas da diretora que estão reunidas no documentário Merata: How Mum Decolonised the Screen (2018).

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O título – “como minha mãe descolonizou a tela” – já revela o caráter extremamente pessoal do filme: quem recupera a trajetória da cineasta é seu filho mais novo, o arquivista e diretor Heperi Mita. O título revela, também, que em três décadas de carreira Merata Mita buscou, principalmente, levar as histórias e a perspectiva dos povos indígenas para o cinema. “Minha mãe não fazia filmes apenas para entreter as pessoas, mas porque só pela câmera ela podia abordar os problemas que estava enfrentando”, afirmou Heperi Mita, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Os maoris resistiram fortemente à colonização britânica, e você vê a continuidade disso no trabalho de cineastas como minha mãe: eles usavam o cinema para protestar contra as injustiças.”

A cineasta Merata Mita em foto de divulgação do filme “Merata: How Mum Decolonised the Screen”

Merata começou seu caminho no cinema acompanhando filmagens de equipes estrangeiras em comunidades maoris, uma experiência que lhe rendeu alguns conhecimentos técnicos e a percepção de que a representação de seu povo nas telas era feita pelos brancos. No início dos anos 1980, quando passou a realizar seus próprios filmes, dedicou-se a registrar momentos-chaves da história neozelandesa e da luta indígena por igualdade. Em Bastion Point: Day 507 (1980), filmou uma ocupação pacífica que buscou evitar a venda de um território ancestral para desenvolvimento imobiliário. Em Patu! (1983), acompanhou de perto as manifestações de ativistas neozelandeses contra a visita da seleção de rúgbi da África do Sul, que ainda estava sob o regime do apartheid. Em Mauri (1988), mostrou a vida dos maoris em um vilarejo dos anos 1950.

Merata também foi produtora, roteirista e atriz, ajudou a criar o programa de cinema indígena da Universidade do Havaí e se envolveu ativamente no programa de fomento a talentos indígenas do Festival de Sundance. Com esta trajetória, tornou-se referência para outras cineastas maoris, incluindo a diretora e produtora Chelsea Winstanley, indicada ao Oscar de melhor filme por Jojo Rabbit (2019). Foi ela quem colocou Heperi Mita em contato com o Array, coletivo de distribuição criado pela americana Ava DuVernay, que comprou os direitos do filme. Parceria mais adequada não havia: além de a missão do Array ser distribuir filmes realizados por mulheres e minorias, os esforços de Merata para que os povos indígenas pudessem contar suas histórias dialogam com os de DuVernay no que diz respeito à inclusão de profissionais negros em Hollywood.

Ava DuVernay e Heperi Mita em Los Angeles – Foto: Reprodução/Ngā Taonga Sound & Vision

Ao ver Merata: How Mum Decolonised the Screen, é difícil não pensar que a sociedade e o cinema não evoluíram como deveriam no tempo que separa Merata Mita de Ava DuVernay. “Algumas coisas não mudaram, mas também é preciso olhar para as vitórias e celebrá-las”, afirmou Heperi Mita. “[Ao fazer este filme] pensei no sacrifício das pessoas que estão na linha de frente dos protestos de hoje, e queria que elas sentissem esperança. Queria que olhassem para minha mãe e pensassem que sim, é possível enfrentar as autoridades. As coisas serão difíceis, mas ainda há bons resultados para quem toma este caminho.”

Seguindo os passos da mãe, Heperi fez um discurso em apoio aos realizadores maoris durante o Power of Inclusion, seminário sobre inclusão no cinema promovido em outubro pela New Zealand Film Commission em parceria com a Women in Film and Television International (WIFTI). Na ocasião, ele lembrou que apenas três mulheres maoris dirigiram longas de ficção, e que sete das dez maiores bilheterias da história da Nova Zelândia foram dirigidas por cineastas maoris ou adaptaram histórias maoris. 

Dados da New Zealand Film Commission indicam que, dos 14 filmes que receberam financiamento público no último ano fiscal (2018-2019), 21% tinham maoris em pelo menos duas de três funções-chaves (roteiro, direção, produção) e três eram falados no idioma indígena local, o Te Reo. Heperi Mita defende principalmente que o apoio público seja dado às empresas produtoras da própria comunidade: “Gostaria de ver determinados grupos com o poder, a autoridade e o capital não apenas para controlar a representação, mas também o negócio.”

Merata: How Mum Decolonised the Screen integrou a programação da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo do ano passado, e até a publicação deste texto não havia previsão de novas exibições no país (o filme está no catálogo da Netflix em alguns territórios, mas não no brasileiro). O diretor disse ter vontade de apresentar a trajetória de Merata Mita ao público do Brasil: “É um momento muito difícil, no qual muita coisa está em jogo”, afirmou, em referência ao governo de Jair Bolsonaro. “Somos nações muito diferentes, mas gostaria que as pessoas pudessem ter algum tipo de esperança a partir da história da minha mãe.” 

Leia os principais trechos da entrevista com Heperi Mita:

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Um aspecto muito marcante do filme para mim é ver sua mãe falando, décadas atrás, sobre questões que estamos discutindo hoje, sobretudo no que diz respeito à participação das mulheres e das comunidades não brancas no cinema. De certa forma, parece que as coisas não mudaram como deveriam. Como foi para você revisitar este material? Como foi estar na era do #MeToo e ver sua mãe falando sobre estes temas tanto tempo atrás?
Quando estava fazendo o filme, um dos assuntos no noticiário era o protesto contra o oleoduto em Dakota, nos Estados Unidos. Aqui nesta parte do mundo [a Oceania] também se falava muito sobre o despejo de comunidades aborígenes na Austrália. Via essas coisas na televisão à noite, e no dia seguinte ia assistir aos filmes da minha mãe sobre comunidades maoris sendo despejadas. Havia muitos paralelos entre o que estava acontecendo na vida dela 40 anos atrás e o que estava no noticiário, e esta foi uma das razões para fazer esse filme. Outra razão foi o fato de eu ter aprendido muito sobre os sacrifícios que minha mãe fez para documentar estes acontecimentos. Pensei no sacrifícios das pessoas que estão na linha de frente dos protestos de hoje, e queria que elas sentissem esperança. Queria que olhassem para a história da minha mãe e pensassem que sim, é possível enfrentar as autoridades. As coisas serão difíceis, mas ainda há inspiração e bons resultados para quem toma este caminho. Então concordo com você: algumas coisas não mudaram como deveriam ter mudado do tempo da minha mãe para hoje. Ao mesmo tempo, é preciso olhar para as vitórias e celebrá-las. É preciso equilibrar as duas coisas. Mesmo no caso da minha mãe, levou tempo para ela fazer as pazes com seu passado, e acho que não chegou a perdoar tudo. Mas ela chegou a um ponto da vida na qual estava em paz e otimista em relação ao futuro. Acho que isso é vital nos tempos loucos que vivemos.


“Minha mãe não fazia filmes apenas para entreter as pessoas, mas porque só pela câmera ela podia abordar os problemas que estava enfrentando […] O cinema é basicamente uma invenção francesa que foi adotada pelos americanos. Portanto, é muito ocidental. Mas as pessoas indígenas ao redor do mundo cooptaram o cinema e o usaram para seu próprio propósito.”


Cineastas homens têm muito mais espaço nos cursos de cinema, nos livros especializados e na imprensa. Quando se propôs a fazer este filme, você considerou o impacto que a história da sua mãe poderia ter para inspirar outras cineastas mulheres, especialmente maoris e indígenas?
[Risos] Busquei financiamento público para este projeto, e toda vez que você faz isso, a primeira pergunta é: quem é seu público-alvo? E eu ria, porque para mim a resposta era: “meu público-alvo são meus irmãos e minhas irmãs” [risos] Era isso que eu pensava. Mas depois, quando lançamos o filme no Festival Internacional de Cinema da Nova Zelândia, pude perceber que as pessoas que mais se beneficiariam de conhecer a história da minha mãe seriam outras mulheres maoris e mulheres das ilhas do Pacífico. Foi interessante levar o filme para o exterior, porque eu sabia que ele ia se conectar com as pessoas na No va Zelândia, mas não esperava que fosse ser tão bem recebido no exterior. E acho que isso aconteceu pelo motivo que você citou: não há muitas cineastas mulheres que são reverenciadas pela indústria. As pessoas gastam muito tempo estudando pessoas como [Steven] Spielberg e [Martin] Scorsese, ou basicamente caras brancos velhos [risos] Outra coisa que acho muito diferente na trajetória da minha mãe é que ela não fazia filmes apenas para entreter as pessoas, mas porque o único modo com o qual ela podia abordar os problemas que ela está enfrentando era pela câmera. Há algo muito real nisso, que acho que a separa de alguns destes cineastas que mencionei.

Como se deu a parceria com o Array, o coletivo de distribuição de Ava DuVernay? Acho que ela e sua mãe teriam muito a conversar, se tivessem se conhecido.
[Risos] Devo isto à produtora do filme, Chelsea Winstanley, que mora em Los Angeles e apresentou o filme para o Array. Como a missão da empresa é empoderar cineastas mulheres e que integram minorias, a história realmente era meio que perfeita. A presidente do Array, Tilane Jones, disse ter ouvido a Ava dizer muitas das coisas que minha mãe diz no filme, e que havia muitas sinergias entre as histórias das duas. Então não poderia haver empresa melhor para distribuir o documentário. É preciso haver muita confiança entre o cineasta e o distribuidor, porque a distribuição é isso: você meio que se coloca em uma posição em que pode ser explorado. Mas pela missão e os valores do Array, e pelo trabalho da Ava, sabia que podia me sentir seguro.

Imagem de “Bastion Point: Day 507”, um dos filmes dirigidos por Merata Mita

Em seu discurso no Power of Inclusion, você comentou que filmes feitos por cineastas maoris ou que contam histórias maoris representam a imensa maioria das maiores bilheterias do cinema neozelandês. Por que você acha que as histórias maoris fazem tanto sucesso?
Respondendo sem rodeios, porque são as únicas histórias da Nova Zelândia que realmente são únicas. As outras narrativas e culturas deste país estão presentes em qualquer outro país da Commonwealth. Acho que as pessoas que consomem cultura estão cansadas de ver as mesmas coisas de sempre. De 1900 até hoje, o que vimos foi o ponto de vista ocidental, as histórias ocidentais. A indústria cinematográfica neozelandesa cresceu muito e se tornou internacional nos últimos 20 anos. O sucesso dos filmes maoris neste período é um reflexo da fome que as plateias do mundo têm por novas vozes, novas experiências culturais, por esse frescor mesmo.

Comentei sobre seu discurso com uma mulher maori e ela me disse que parecia natural que os cineastas maoris fizessem sucesso, já que a contação oral de histórias é parte fundamental da cultura. Acha que essa tradição também se reflete na tela?
Como não tínhamos língua escrita, a contação de histórias era o modo como as tradições, o conhecimento e a cultura eram transmitidas. Foi assim por centenas de anos e ainda é assim. Então, culturalmente, sempre houve uma base de contação de histórias. E mesmo se pensarmos em outras formas artísticas, como o haka [dança cerimonial maori] por exemplo…sempre tivemos talento para o drama [risos]. Uma outra coisa importante é o histórico de resistência, particularmente no que diz respeito ao trabalho da minha mãe. Os maoris resistiram fortemente à colonização britânica, e você vê a continuidade disso no trabalho de cineastas maoris como ela. Eles usavam o cinema para protestar contra as injustiças que estavam acontecendo. É engraçado: o cinema é basicamente uma invenção francesa que foi adotada pelos americanos, portanto é muito ocidental. Mas as pessoas indígenas ao redor do mundo cooptaram o cinema e o usaram para seu próprio propósito.

Na sua opinião, que tipos de medidas poderiam ser tomadas, seja na Nova Zelândia ou de forma geral, para tornar a indústria cinematográfica menos desigual e mais inclusiva?
A questão da indústria cinematográfica é que as pessoas só estão cientes do que aparece na tela. O que está escondido é tudo o que aconteceu nos bastidores para se chegar ao que está na tela. Então é fácil colocar maoris, minorias e mulheres em frente à câmera e dizer: “pronto, conseguimos, ticamos a caixinha, é inclusivo!”. Mas isto é só um contrato de curto prazo: estas pessoas ainda não tiveram nenhuma voz no conteúdo e na direção da história, ou no modo como os personagens são representados. Então uma das coisas que defendo muito é que, na hora de esse trabalho ser feito, o apoio seja dado às produtoras que são de mulheres e indígenas, e não às grandes organizações de propriedade de pessoas brancas. Porque inclusão não é só as pessoas que estão na tela. Essa inclusão será interpretada e mostrada pelos olhos de gente de fora: caberá a eles retratar a sua interpretação do que é uma minoria, de como uma mulher deve ser retratada, de como um personagem maori deve ser. Não estou dizendo que estas representações são categoricamente ruins, mas é muito difícil ter autenticidade quando se vem de uma perspectiva de fora. Então por que financiar alguém de fora para fazer um filme sobre uma determinada comunidade, se essa comunidade é capaz de contar essa história por si mesma? O que eu gostaria de ver, em termos de financiamento público, é que determinados grupos recebessem o poder, a autoridade e o capital não apenas para controlar a representação, mas também o lado do negócio, inclusive como o filme é distribuído e como o trabalho vai se disseminar.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema. Ela viajou para Auckland e participou do seminário Power of Inclusion a convite da Tourism New Zealand.

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