Patricia Rozema: “Em meus filmes, tentei ser completamente eu mesma”

Quando lançou seu longa-metragem de estreia, Eu Ouvi o Canto das Sereias, em 1987, a diretora e roteirista canadense Patricia Rozema era uma jovem cineasta sem treinamento na área e com apenas dois curtas no currículo. Mais de 30 anos depois, quando chegou ao set de seu filme mais recente, Mouthpiece (2018), era uma diretora premiada e com larga experiência no cinema e na televisão dentro e fora do Canadá.

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Estes dois longas, atualmente em exibição na MUBI, são uma boa porta de entrada para o cinema da diretora, também conhecida por Palácio das Ilusões (1999), Kit: Uma Garota Especial (2008) e No Escuro da Floresta (2015). Apesar do longo intervalo e de terem sido realizadas em contextos diferentes, as duas obras são, segundo a própria Rozema, profundamente complementares. “Ambos os filmes são muito livres”, definiu, em entrevista por email ao Mulher no Cinema. “Eles exploram a ideia de tornar visual aquilo que é interno: sonhos, sensações, conflito interno, esperança – as coisas que nos movem até mais do que nossas experiências do passado. E ambos usam o humor para abordar alguns dos aspectos mais dolorosos de ser mulher.”

Clássico indie do Canadá, Eu Ouvi o Canto das Sereias conta a história de Polly, fotógrafa amadora e sem grandes ambições que se encanta por Gabrielle, a curadora de uma galeria que sonha em ser reconhecida como artista. Com protagonista carismática e humor irreverente, Sereias ganhou o Prêmio da Juventude no Festival de Cannes, teve distribuição comercial nos Estados Unidos e em 1993 tornou-se a primeira obra de uma mulher a entrar para a lista de 10 melhores filmes canadenses de todos os tempos divulgada pelo Festival de Toronto (a mais recente, de 2015, tem a única outra diretora já selecionada: Sarah Polley, por Histórias que Contamos).


“Ambos os filmes são muito livres. Eles exploram a ideia de tornar visual aquilo que é interno: sonhos, sensações, conflito interno, esperança – as coisas que nos movem até mais do que nossas experiências do passado. E ambos usam o humor para abordar alguns dos aspectos mais dolorosos de ser mulher.”


Por sua vez, Mouthpiece é um trabalho desenvolvido em parceria com as atrizes Amy Nostbakken e Norah Sadava, autoras e protagonistas da peça que inspirou o roteiro. A trama acompanha a jovem Cassandra no momento imediatamente posterior à morte de sua mãe, enquanto se prepara para discursar no funeral. A reflexão sobre a trajetória da mãe força Cassandra a questionar ideias sobre si mesma e sobre o feminismo, num feroz debate interno que o filme, como a peça, traduz visualmente ao escalar duas atrizes (as próprias Nostbakken e Sadava) para interpretar a mesma personagem e contracenarem juntas do início ao fim.

Muitas das questões exploradas nestes filmes – feminismo, relações entre mulheres, maternidade, criação artística, ambição profissional – parecem ser caras à própria cineasta. Filha de calvinistas holandeses que imigraram para o Canadá, Rozema, que é lésbica, cresceu em uma comunidade religiosa e conservadora na pequena cidade de Sarnia, em Ontario. Tal experiência, assim como a de atuar em uma profissão dominada por homens, dá pistas sobre o interesse da diretora por protagonistas mulheres que por vezes parecem não se encaixar ou não seguir as normas do universo nos quais estão inseridas.

Na entrevista ao Mulher no Cinema, Rozema falou sobre seu processo criativo, os paralelos entre Eu Ouvi o Canto das Sereias e Mouthpiece, a representação de personagens queer nas telas e mais. Leia a seguir:

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Em depoimento ao Forest City Film Festival você disse que Mouthpiece dialoga com Eu Ouvi o Canto da Sereia, justamente os dois filmes seus que estão disponíveis para o público brasileiro na MUBI. De que forma essas obras se combinam?

Ambas são muitos livres. Do ponto de vista do negócio, o orçamento de Mouthpiece, assim como o de Eu Ouvi o Canto das Sereias, era baixo o suficiente para me livrar da responsabilidade de ter de ganhar dinheiro com o filme para viabilizá-lo financeiramente. Meu futuro não dependia do sucesso [de nenhum dos dois longas]. Quando fiz Eu Ouvi o Canto das Sereias, nem imaginava que teria algum futuro. Quando fiz Mouthpiece, já tinha trabalhado bastante e em gêneros muitos diferentes. Sabia que conseguiria fazer outro filme, mesmo no caso de este simplesmente não funcionar. Isso fez com que me sentisse muito irreverente: pude brincar e jogar a cautela pela janela. Para mim, a ideia de duas mulheres interpretarem uma mesma pessoa era tão deliciosa por definição que me lembro de pensar – e sei que vai soar mal – que se as pessoas não gostassem, elas simplesmente estariam erradas. Estou brincando, mas não totalmente.

No que diz respeito ao conteúdo em si, ambos exploram a ideia de tornar visual aquilo que é interno: sonhos, sensações, conflito interno, esperança – as coisas que nos movem até mais do que nossas experiências do passado. Este é um dos maiores trunfos do cinema e tive grande prazer em fazer esse mergulho. E quanto ao tom, ambos usam o humor para abordar alguns dos aspectos mais dolorosos de ser mulher. O estilo por vezes irreverente e o tom espontâneo me permitem entrar em áreas mais delicadas e dolorosas com certa leveza.

Sheila McCarthy como Polly em “Eu Ouvi o Canto das Sereias”, de Patricia Rozema

Ambos os filmes usam elementos fantásticos para criar algumas de suas imagens mais marcantes, como o voo de Polly e a briga das Cassandras. O que a atrai neste tipo de cinema?

Sempre invejei a literatura por sua capacidade de usar a metáfora com grande efeito e sem atrapalhar o impulso narrativo da obra. Durante a maior parte da minha vida venho tentando encontrar imagens e músicas que contem a história do que é viver melhor do que as palavras.

Polly é uma personagem muito carismática que ainda parece única, mesmo tantos anos depois. O que você pode contar sobre o processo de criação dela?

Eu a amei imediatamente. Ela chegou pronta até mim. Sua generosidade – ela defende até quem a magoou -, sua honestidade, sua imaturidade sexual e intelectual. Eu era muito jovem e ela tocou nas minhas inseguranças e no meu desejo por pureza. Hoje, ela toca no meu lado maternal. Sinto que quero protegê-la.


“Sempre invejei a literatura por sua capacidade de usar a metáfora com grande efeito e sem atrapalhar o impulso narrativo da obra. Tento encontrar imagens e músicas que contem a história do que é viver melhor do que as palavras.”


Minha cena favorita em Eu Ouvi o Canto das Sereias é a do restaurante, na qual Polly e a curadora falam sobre o que querem para suas vidas. Polly diz que ainda não se decidiu, enquanto a curadora responde: “Respeito universal, juventude eterna, paixão que nunca acaba, jamais ser neurótica quanto a envelhecer e um dia criar algo incrivelmente lindo que dure para sempre”. Gostaria de saber qual das respostas era mais próxima da sua na época, como uma jovem cineasta fazendo seu primeiro longa. Você se identificava com alguma das personagens?

Sempre quis todas essas coisas, mesmo sabendo que a maioria delas era impossível. Isto não te impede de querer. Para citar George Eliot [pseudônimo da escritora britânica Mary Ann Evans (1819-1880)]: “Podemos decidir não colher cerejas e manter nossas mãos nos bolsos, mas isso não nos impede de ficar com água na boca.” Mesmo quando as cerejas são imaginárias. Por ser mulher, lésbica e canadense em um meio artístico para o qual não tinha tido nenhum treinamento, sabia que nunca teria respeito universal. Juventude eterna é impossível, pelo menos até agora. Quanto à “paixão que nunca acaba”, isso eu descobri que de fato é possível ter. “Jamais ser neurótica quanto a envelhecer” – não acho que seja neurótica e vejo envelhecer como um privilégio, apenas acho a ideia da morte, de deixar este lindo jardim para sempre, cada vez mais triste. E “criar algo incrivelmente lindo que dure para sempre” – isso não cabe a mim dizer, mas quem sabe há uma ou duas tomadas, um ou dois momentos que mereçam ser preservados.

Cena do filme “Eu Ouvi o Canto das Sereias”, de Patricia Rozema

Eu Ouvi o Canto das Sereias se tornou um filme importante para a comunidade LGBTQIA+, apesar de você já ter dito que, naquela época, teve de ser sutil ao abordar esta temática. Por que você acha que o filme tocou tanto as pessoas e como vê a representação queer no cinema hoje?

É verdade, em entrevistas eu às vezes evitava falar sobre meu amor pelas mulheres, por dois motivos. Primeiro: eu era jovem, [o assunto] era delicado e pessoal e não queria ser questionada sobre isso por gente esquisita. Não queria que fizessem com que eu sentisse vergonha. Já é difícil levar uma vida amorosa de forma honesta e sem prestar atenção ao que os outros pensam quando ninguém está olhando. Fica bem mais difícil se [sua vida amorosa] se torna assunto de pessoas intrometidas e críticas que simplesmente não se importam com você. Hoje sou totalmente assumida, em todos os lugares. Mas naquela época era novidade demais e tinha medo de ser humilhada. Gostaria de ter sido mais corajosa, mas simplesmente não tinha chegado lá ainda.

A outra razão para minha reticência era o fato de amar fazer filmes. Tinha medo de ficar limitada. Me preocupava com a possibilidade de só conseguir financiamento para explorar aquilo que algum burocrata ou distribuidor achasse que era o tipo de coisa que uma mulher queer saberia fazer. Queria entrar na alma de muitas pessoas e de diferentes maneiras. Queria ser livre e tinha medo de perder a liberdade. Então, [a hesitação também teve a ver com] ambição artística. No entanto, sempre tentei ser honesta e completamente eu mesma no meu trabalho. Minha persona pública era outra coisa. Hoje, meu trabalho e eu estamos mais integrados, graças ao trabalho de outras almas corajosas.

Quanto à representação, estamos chegando lá. Os filmes e programas infantis ainda não têm representação queer suficiente. Eu e Elliott Page tentamos fazer isso com [uma adaptação do livro de Robert Munsch] The Paper Bag Princess, mas o projeto era muito caro e ainda era muito cedo no movimento de liberação para conseguirmos tirar algo assim do papel. Hoje os personagens gays são razoavelmente comuns no Ocidente, mas a experiência trans foi pouco explorada. Os ataques estão crescendo e me preocupo com isso, especialmente com aqueles que atingem o grupo demográfico mais vulnerável: as crianças trans. O modo cínico como a direita usa as crianças trans para criar polarização política é criminoso. E nem me fale das TERFs [sigla em inglês para o grupo intitulado Feministas Radicais Trans-Excludentes].

Não há razão para presumir que o mundo vá ficar mais acolhedor e generoso. A história não se inclina apenas em direção ao bem, ela vai para todos os lados. O pêndulo pode se voltar para a outra direção e eu e os meus podemos ser colocados na cadeia ou executados, e não estou exagerando na minha linguagem. O objetivo é passar pela fase do ativismo na ficção e no documentário – da fase de argumentação política e emocional que faz parte de todo movimento de libertação – e finalmente chegar a um lugar onde diferentes formas de amar e ser e diferentes expressões de gênero são apenas parte do tecido do universo. Uma outra cor. Uma outra linda cor.

Amy Nostbakken e Norah Sadava em cena de “Mouthpiece”, de Patricia Rozema

Falando sobre Mouthpiece, o filme é baseado em uma peça e a premissa de duas atrizes interpretarem a mesma atriz é, por si só, bastante teatral. Apesar disso, não ficamos com a sensação de estar assistindo a um espetáculo filmado. Quais decisões foram importantes para conseguir isso, seja na escrita do roteiro, na filmagem ou na pós-produção?

Obrigada. [O projeto] começou como uma peça altamente estilizada com uma hora de duração. Quando escrevi o roteiro do longa com as atrizes, mudamos muita coisa: acrescentamos a mãe, o namorado, a festa de Natal etc. Como o conceito era tão “irrealista”, optei por um estilo de filmagem orgânico, quase documental. Isso seria um contraponto para a teatralidade da premissa. Eu e a diretora de fotografia Catherine Lutes decidimos usar principalmente câmera na mão e luz natural – o que também faz a filmagem ser mais rápida, o que é importante quando se tem um orçamento baixo. Queria que as pessoas esquecessem [que duas atrizes estão interpretando a mesma personagem] e apenas se deixassem levar. E então tentei encontrar beleza nisso – um tipo de beleza natural, acidental. Uma vez li algo sobre a escritora Alice Munro que dizia: “você nunca a pega sendo uma grande escritora…você apenas quer recontar as histórias dela”. E eu amo isso.


“O objetivo é passar pela fase do ativismo na ficção e no documentário e chegar a um lugar onde diferentes formas de amar e ser e diferentes expressões de gênero são apenas parte do tecido do universo. Uma outra cor. Uma outra linda cor.”


É surpreendente que a mãe não fosse parte da peça, já que o filme aborda a maternidade tanto quanto aborda o luto. Sei que a decisão de colocar um foco maior na mãe foi algo que você sugeriu às atrizes. Por que quis dar mais destaque a essa personagem?

Sou mãe de dois filhos e minha mãe morreu quando eu tinha a idade das personagens do filme, então senti que tinha algo a oferecer para a história. Não estava apenas fazendo um remake ou pegando carona no trabalho de alguém. A peça delas era incrível, muito mais feroz e raivosa, mais jovem. Era sobre uma jovem mulher, interpretada pelas duas, descobrindo que não era a feminista que pensava ser – uma jovem que culpa a mãe, a sociedade e ela mesma. Incluir a mãe e a morte da mãe foi o que trouxe a experiência de luto, que não era parte do texto original. Na peça, a morte era tratada de um jeito espontâneo e muito engraçado. Eu tinha vontade de entrar mais fundo na experiência intergeracional da perda e do feminismo. Queria amar mais personagens, e Amy e Nora gostaram disso também. Elas veem o filme como uma obra complementar à peça, não uma adaptação, e eu concordo. Acabamos fazendo algo que está em algum lugar localizado entre a idade delas e a minha. O objetivo era tocar várias notas ao mesmo tempo.

Imagem do filme “Mouthpiece”, de Patricia Rozema

Mouthpiece mostra uma espécie de despertar feminista ou o momento em que Cassandra realmente reflete sobre o que é ser mulher. Na minha vida, este momento esteve conectado ao trabalho de Joni Mitchell e Alice Munro, que são mencionadas no filme assim como Margaret Atwood, Ann-Marie MacDonald e Janieta Eyre, todas artistas que nasceram e/ou vivem no Canadá. Gostaria de saber mais sobre o que inspirou essas referências e se ser conterrânea dessas artistas foi algo que inspirou você pessoal ou profissionalmente.

Com certeza. Acho todas essas artistas brilhantes e crescer no mesmo clima, respirar o mesmo ar que elas é emocionante. Minha empolgação com o fato de elas terem sido criadas no mesmo país que eu vai além do nacionalismo. Não confio no nacionalismo, que cria guerras e hierarquias. O que é profundamente encorajador é a proximidade a estas artistas. [É perceber que] a excelência é possível, aqui do lado, ao meu alcance, que talvez exista uma chance de tocar na barra de suas vestes artísticas. A vida não está em outro lugar, está aqui: Joni Mitchell reescreveu a estrutura da canção; Alice Munro faz do cotidiano poesia épica; o comprometimento de Atwood com o feminismo e o meio ambiente esteve anos à frente da maioria das pessoas; a força gótica e queer de Ann-Marie MacDonald (que é minha amiga) foi uma revelação; o modo divertido e às vezes perturbador com o qual Janieta Eyre (que tem origem holandesa como eu) explora o duplo é maravilhoso.

Alguma cineasta canadense te inspirou? Ou quais cineastas canadenses você admira?

Sarah Polley é uma grande cineasta. Jennifer Baichwall está sempre falando sobre coisas importantes. Tracey Deer, Dani Goulet, Louise Archambault, Jasmine Mozaffari.

Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?

Façam isso – é a melhor vida que existe. Não fiquem presas só ao cinema, ou só à televisão, ou só ao streaming ou a qualquer outra coisa. Essa não é a questão. A questão é: o que vocês estão dizendo? Façam filmes no telefone quando tiverem tempo livre. Descubram o que amam. Assistam ao trabalho de muita gente e peguem emprestado aquilo que amarem, mas transformem em algo de vocês. Não tentem ser modernas, vocês já são. Façam a lição de casa: conheçam a forma, porque não dá para esculpir sem saber o que vai acontecer com a argila. Assumam o direito de contar suas histórias, mas tenham certeza de que o roteiro tem o impacto – emocional, político ou qualquer outro impacto que vocês estejam buscando – que vocês querem que o filme tenha. Como alguém que escreve e dirige, posso dizer que o filme raramente vai muito além do roteiro, então façam essa parte direito. Se as pessoas amam seu roteiro loucamente, talvez vocês tenham um filme que as pessoas vão amar. Ouçam todo mundo. Ouçam de verdade. Mas confiem em vocês mesmas. Não tentem ser amadas ou encontrar compaixão por meio do seu trabalho: amem os outros por meio do seu trabalho.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema. Os leitores do site têm direito a 30 dias de acesso grátis ao Mubi – clique aqui para saber mais e se cadastrar.

Foto do topo: Gareth Cattermole/Contour by Getty Images

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