Mônica Simões fala sobre a vontade de dar voz à mãe em “Um Casamento”

Um vídeo de 16 mm de uma cerimônia de 1950, deteriorado pela ação do tempo, em que os noivos aparecem em flashes. O que para muitos seria um material a ser descartado foi o que motivou a diretora Mônica Simões a rodar Um Casamento, seu primeiro longa-metragem em uma carreira de 35 anos como videomaker, fotógrafa, documentarista e artista plástica.

O casamento do título é o dos pais da cineasta, Maria Moniz, hoje com 82 anos, e Ruy Simões (1923-1996). O que começa parecendo a recordação de uma história de amor se transforma em um debate mais profundo sobre feminismo e matrimônio, além de um retrato da sociedade baiana dos anos 1950. A proposta é bastante simples: na casa em que viveu durante toda a sua vida, em Salvador (BA), Maria responde às perguntas da filha sobre seu casamento, que durou cerca de seis anos. As lembranças são confrontadas com fotografias e vídeos, incluindo o deteriorado registro da cerimônia.

“O start foi o material visual”, disse Mônica, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Mas acho que outro motivo [para fazer o filme], talvez mais profundo, foi a vontade de contar essa história do ponto de vista da minha mãe. Porque o ponto de vista que prevaleceu foi o do meu pai, que era homem, em uma sociedade machista.”

Cerca de 13 anos se passaram entre o primeiro roteiro que Mônica escreveu, em 2004, e a estreia de Um Casamento, na última quinta-feira (18). O momento do lançamento, porém, parece perfeito: “Talvez se eu tivesse feito esse filme em 2005 a mulher não estivesse nesse movimento de empoderamento, talvez não tivesse o mesmo impacto que tem agora”, disse.

Leia a entrevista completa:

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Como o projeto começou e por que você quis contar essa história?
Em 2000 estava fazendo outro documentário [Uma Cidade], também com imagens de arquivo de família, e trabalhando no processo de recuperação desses filmes, que estavam espalhados e em condições muito ruins. Saiba que o casamento dos meus pais tinha sido filmado e tinha loucura para assistir. Comecei a ver [os vídeos de casamento] das minhas tias, nos anos 1930 e 1940, que tinham qualidade perfeita. Então, quando cheguei no dos meus pais, que foi nos anos 1950, pensei que estaria maravilhoso. Quando vi [as imagens totalmente deterioradas], por um lado tive um choque, porque não conseguia ver nada. E por outro lado foi um impacto muito grande porque, esteticamente, aquilo é belíssimo. Naquele momento eu disse: quero contar essa história, a partir dessas imagens. Então o start foi o material visual. Mas acho que outro motivo, talvez mais profundo, foi a vontade de contar essa história do ponto de vista da minha mãe. Porque o ponto de vista que prevaleceu foi o do meu pai, que era homem, em uma sociedade machista.

Como percebeu que uma história tão pessoal como o casamento dos seus pais tinha algo de universal?
Trabalho com a etnografia há muito tempo, sei que quando você fala do particular, também fala do geral. Estudei História e sempre gostei mais da história não oficial, a do cotidiano. Acho que ela diz muito mais. Então não tinha a menor dúvida de que [o tema] era uma coisa muito íntima, mas que acabava se tornando a história de uma época. Além disso, tinha consciência de que o material de arquivo era incrível. E tinha minha mãe, que é uma personagem [risos].

Maria Moniz e Ruy Simões em 1954 (Foto: Optaciano de Oliveira/Divulgação)
Maria Moniz e Ruy Simões em 1954 (Foto: Optaciano de Oliveira/Divulgação)

Sua mãe aceitou fazer tudo o que você propôs, desde o começo?
Ela sabia [desde o primeiro momento] que eu ia fazer esse filme e que ela ia participar, mas não tinha ideia de como e de quanto. Ela achou que talvez fosse ser um filme com estrutura mais clássica, que não chegasse tanto às entranhas. [No tempo que passou até a filmagem] fui amadurecendo como profissional e decidi que o filme teria regras. Uma delas é que eu filmaria na ordem do roteiro e que ela não poderia ler, para não saber que tipo de material ia ver. O conceito do filme é muito simples: minha mãe falando desse casamento, em confronto com as imagens que restaram, e reagindo a essas imagens do jeito que quisesse. Se eu contasse a ela que ia ver tal filme ou tais fotos, não teria a mesma força. A outra regra é que gravamos tudo de uma vez só: errou, não tinha conserto, tinha que ser o que fosse. No começo senti que ela estava meio irritada, como se estivesse fazendo aquilo por mim, pelo compromisso, porque ela era profissional e não ia voltar atrás. Mas depois o filme vai num crescendo, ela vai entrando e o final é como uma confissão.

Você tinha definido desde o começo que apareceria no filme?
Minha voz ia aparecer apenas nas perguntas: eu não iria aparecer como filha, como a voz que narra. Antes da filmagem, conversei com o João Moreira Salles e ele me disse: “Acho que você vai ter de narrar.” Eu disse que não, de jeito nenhum. Quando a [montadora] Jordana Berg começou a ver o material, disse: “Acho que você vai ter de entrar nesse filme”. Eu disse que não. Mas esse foi o caminho que encontrei para que o documentário ficasse mais próximo do que acreditava e desejava. Quando cheguei à ilha de edição e comecei a ver o material, tive uma crise enorme. Foi como se, durante a filmagem, a pessoa que estava à frente era a diretora – a filha ficou de lado. Quando comecei a assistir, pensei: “Vou mostrar isso para o mundo? Estou doida?” Me deu um arrependimento. Como meu pai morreu, não havia a voz dele para se defender. E mesmo sabendo que era verdade o que minha mãe estava falando, era como se eu fosse cúmplice da visão dela sobre meu pai. Um dia, durante a crise, me veio o texto que [é narrado por Mônica no filme] sobre como o homem que era marido da minha mãe ao mesmo tempo era meu pai. Aí descobri um caminho. A gravação [da narração em off] foi incrível porque as falas foram todas construídas na ilha de edição, com as minhas lembranças. Ficou muito forte e verdadeiro.

A casa onde acontecem as filmagens também é uma espécie de personagem. Como foi filmar ali?
Tenho loucura por aquela casa, que foi onde nasci. Meu avô a construiu para casar com minha avó e tudo aconteceu ali, [no que diz respeito] à história do filme e à minha vida também. No roteiro original, imaginei que quando minha mãe falasse da praia, estaríamos na praia. Depois decidi que ela não ia sair da casa, que só sairíamos pelas imagens – e, mesmo assim, a maioria das imagens são na casa. O processo [de filmagem] foi incrível porque moro em São Paulo, várias pessoas da equipe são daqui. Então ficamos [hospedados] dentro da casa, que era produtora, locação, minha mãe morava lá, eu morava lá, gente da equipe morava lá…Uma produtora disse: “Isso aqui não é mais uma filmagem, é uma residência artística.”

Maria Moniz e Mônica Simões (Foto: Carolina Camara/Divulgação)
Maria Moniz e Mônica Simões (Foto: Carolina Camara/Divulgação)

Você começou a pensar o filme em 2000, mas ele só está saindo agora, em meio a muitas discussões sobre feminismo e o que é ser mulher. Como vê esse momento do lançamento?
[O timing] foi incrível. Acredito muito que as coisas vêm na hora que têm de vir. Talvez se eu tivesse feito esse filme em 2005, talvez a mulher não estivesse nesse movimento de empoderamento, talvez não tivesse o mesmo impacto. O filme virou até um manifesto feminista. Em Salvador as mulheres batem palma, gritam, ficam loucas, se identificam. Estou muito feliz de estar com uma obra extremamente atual, que dialoga com o momento que a mulher está vivendo no mundo.

Qual a principal lição que você aprendeu com a sua mãe?
Acho que foi a coragem de ser quem sou, de realmente ser fiel aos meus sentimentos, aos meus ideais, aos meus desejos mais íntimos. Minha mãe nunca abriu mão de ser quem era ela, o que é uma coisa muito sofrida – tem ganhos, mas também tem perdas. A relação com os filhos foi complicada, porque na separação a gente ficou com o meu pai. Isso era surreal na época. Não existia o modelo de guarda compartilhada e muito menos de ficar com o pai. Para a gente foi muito difícil, porque as crianças querem ser como as outras crianças.

E para a sua mãe deve ter sido difícil também.
Ela foi cobradíssima. Mas abriu mão, porque quando se separou tinha 25 anos e três filhos, e queria ser atriz, levar uma vida que acho que com filho seria complicada. Meu pai era 12 anos mais velho, tinha um cotidiano que permitia educar [os filhos] de forma mais orgânica, digamos assim. E para ele foi muito importante ficar [com a guarda]. Era uma forma de não se sentir tão por baixo dessa separação. Minha mãe sempre falava: para seu pai, para o ego dele, foi uma resposta à sociedade. [As pessoas diziam:] “Ah, que homem que está com os filhos” e “olha a doida que os abandonou”. Foi assim que [o caso] foi visto. Hoje a guarda compartilhada é normal, os modelos familiares mudaram.

Que conselho você daria para as mulheres que querem ser diretoras?
Ver muitos filmes: pelo menos três ou quatro por semana. Se quer ser roteirista, [deve] começar a escrever, exercitar. Se quer ser diretora, muito filme, leitura, ir a museus, ler livros de fotografia, tudo o que está relacionado à imagem é importantíssimo. Outro conselho que daria, como documentarista: uma fonte muito grande de inspiração é viver sua cidade de forma profunda. Não dirijo, ando de metrô, de ônibus, à pé. Gosto de morar no centro, de estar em contato com o mundo. Porque você vê coisas, se inspira, ouve restos de conversas na rua, na feira. A tendência do mundo contemporâneo é viver dentro da bolha: você sai do carro, entra no apartamento, ninguém se encosta, o vidro fica fechado por causa de assalto. Isso tira a sua possibilidade de estar em contato com o mundo real. E o mundo real, para mim, é o centro da cidade.

Veja o trailer de Um Casamento:

Foto do topo: Carolina Câmara

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