“A realidade é escola de roteiro”, diz Maria Augusta Ramos

Dado o ritmo incessante do noticiário econômico e político brasileiro nos últimos meses, talvez seja difícil se lembrar do que acontecia no País em maio e junho de 2014. Às vésperas da Copa do Mundo de Futebol, e em ano de eleição presidencial, a economia dava sinais preocupantes, a instabilidade política já era realidade e manifestações tomavam as ruas de grandes cidades.

É este o período retratado por Futuro Junho, documentário de Maria Augusta Ramos que está em cartaz em São Paulo e estreia nesta quinta-feira (7) no Rio de Janeiro. Para a diretora, o pré-Copa era o momento ideal para filmar um longa que buscava discutir o modelo econômico do País a partir de quatro personagens: um economista, um metalúrgico, um motoboy e um líder sindical.

futuro junho
Imagem do documentário “Futuro Junho”, de Maria Augusta Ramos

As filmagens começaram em 15 de maio e foram encerradas em 12 de junho, o dia em que o Brasil entrou em campo para abrir o torneio. Neste período, a diretora de Justiça (2004), Juízo (2007) e Morro dos Prazeres (2013) acompanhou seus personagens do jeito que mais gosta: sem fazer perguntas ou interferir.

“Tento retratar uma realidade a partir do ponto de vista dos personagens”, disse Ramos, em entrevista ao Mulher no Cinema. O cotidiano deles é que me leva a descobrir um universo.”

Na entrevista a seguir, a cineasta fala sobre a escolha dos personagens, as filmagens em São Paulo, o momento político do lançamento e seu próximo projeto: um documentário sobre o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Como o projeto começou? Ele já estava sendo desenvolvido ou foi criado diante dos próprios acontecimentos do mês pré-Copa?
Eu já estava desenvolvendo um projeto não necessariamente ligado à Copa, mas que fizesse um retrato de São Paulo por meio de trabalhadores e, principalmente, discutisse o modelo econômico. Quando aconteceram as manifestações de 2013, achei que o pré-Copa seria um momento interessante, no qual a sociedade estaria novamente questionando, expressando insatisfações, no qual a própria identidade nacional estaria sendo repensada, debatida. A Copa foi uma consequência, não definiu o tema do filme. Mas foi um momento muito enriquecedor, um gatilho de emoções, desejos, frustrações pessoais, sociais e políticas que beneficiaram o filme, que revelaram muito do que eu queria discutir.

Como você escolheu os quatro personagens retratados?
Escolhi personagens que representassem segmentos da economia: o metalúrgico, que trabalha numa fábrica do ABC; o economista, chefe de uma empresa do mercado financeiro; o metroviário, e na época havia uma greve [do setor]; e o motoboy, que representa as classes C e D que viraram C com o crescimento da economia. Escolhi homens, pois queria adentrar o universo masculino. E também de uma certa geração, entre 35 e 45 anos. O que me norteou foram as relações econômicas, era esse o ponto nevrálgico do filme.

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Imagem do documentário “Futuro Junho”, de Maria Augusta Ramos

Por que você queria entrar no universo masculino?
Taí, não sei. [Talvez] momento de vida. Fiz vários filmes com homens e mulheres, não sei te dizer [o motivo da escolha]. De qualquer maneira, meu interesse fundamental era a questão econômica, não tanto de gênero. Se durante a pesquisa eu tivesse encontrado uma metalúrgica incrível, certamente teria mudado de ideia. É importante ter flexibilidade, principalmente no documentário. Mas isso não aconteceu, e o fato é que, nas profissões que escolhi, grande parte dos profissionais é homem. Não quer dizer que acho as mulheres menos importantes. Foi simplesmente uma questão de foco. Mas é importante dizer que a equipe era 80% feminina. Uma das diretoras de fotografia era mulher, assim como a técnica de som, a editora, as duas diretoras de produção, a assistente de produção…então também é interessante [ver] as mulheres retratando homens.

Como em outros filmes, você não usa entrevistas ou narração.
Tento retratar uma realidade a partir do ponto de vista dos personagens. O cotidiano deles me leva a descobrir um universo e a discutir determinado assunto. O filme é construído a partir das observações desse cotidiano, nesse momento histórico. E é importante que os personagens sejam vistos como um ente social e político, mas não só. O filme não pode deixar de revelar um indivíduo próprio, a experiência humana de cada um.

São Paulo funciona como um quinto personagem. Como foi filmar na cidade em um momento especialmente movimentado?
Difícil, bem difícil. Primeiramente, São Paulo não é uma cidade fácil para quem não é de São Paulo, no sentido de que perde-se muito tempo no trânsito, para se locomover de um lugar para o outro, e naquela época havia manifestação, greve…Ao mesmo tempo, foi muito instigante. Sou de Brasília e sempre tive fascinação por São Paulo. A questão da mobilidade, do ritmo, do caos, [de estar] 24 horas em movimento…acho que tentei captar tudo isso no filme, criar essa sensação da grande metrópole que é São Paulo. Então, se por um lado foi difícil, também foi um super desafio.

Imagem do documentário "Futuro Junho", de Maria Augusta Ramos
Imagem do documentário “Futuro Junho”, de Maria Augusta Ramos

Desde o período retratado pelo filme muita coisa mudou no Brasil. De certa forma, parece um retrato do que nos trouxe até aqui. Como você vê esse momento do lançamento?
Concordo plenamente, acho que é um retrato do que nos trouxe até aqui. O momento que estamos vivendo é muito delicado. Acho até difícil falar alguma coisa. Estou fazendo um documentário sobre o impeachment e fico mais confusa durante o processo de filmagem do que antes de começar. Porque tem muita coisa acontecendo. Acho importante ter distanciamento para conseguir captar a realidade, chegar à essência do que está se passando, ter clareza, conseguir revelar na edição algo que, no caos, não estamos conseguindo ver. Quando assistimos ao filme feito em 2014, repensamos aquele 2014. Acho que o filme revela elementos e questões que naquela época não estávamos conseguindo enxergar. Da mesma forma, espero que quando [o documentário sobre o impeachment] estiver pronto a gente consiga vivenciar esse momento, e que nos ajude a transformar para uma coisa melhor.

Conte um pouco mais sobre seu novo projeto. Você já começou a filmar ou está na fase de pesquisa?
Comecei a filmar na Câmara, quando impeachment foi votado, e agora tenho filmado no Senado. O filme vai terminar no momento em que sair a decisão final. Aí começarei a editar. Já tenho um material imenso. Dá para imaginar, com tudo o que está acontecendo. Nunca imaginei – acho que ninguém imaginou – que a gente pudesse viver o que tem vivido diariamente no Brasil. Todo roteirista tinha de vir aqui [risos] A realidade é uma escola de roteiro, apesar que sempre achei que a realidade dá de mil na ficção. Mas realmente é um momento muito surreal e confuso.

Você vai entrevistar a Dilma Rousseff?
Ah, espero que sim. Tenho filmado vários senadores…não gosto muito de entrevistar, mas pela primeira vez tenho feito entrevistas.

E como tem sido?
Não gosto muito, não tenho isso na veia. Mas algumas situações pedem, e gostei de todas as entrevistas que fiz. Foram necessárias. Em geral, prefiro sempre o processo de observação. Acho que é o meu papel, o meu cinema. É uma escolha estética mesmo.

Dados de diferentes países apontam que há mais diretoras mulheres no documentário do que na ficção. Na sua experiência, como é fazer documentário no Brasil sendo uma cineasta mulher?
Morei muito tempo na Holanda, que tem uma tradição de documentário fortíssima. Foi lá que fiz escola de cinema e me apaixonei pelo gênero. Nunca senti nenhum preconceito ou dificuldade por ser mulher. No Brasil, também não sinto. Desde que comecei a filmar e exibir aqui, meu trabalho foi bem recebido e respeitado. Talvez em algumas situações tenha sentido um pouco de machismo, sim, porque acho que a sociedade brasileira ainda é muito machista. Mas tenho várias colegas que são diretoras, não só de documentário. Conheço muitas excelentes profissionais mulheres na área de cinema. Acho que isso está crescendo. Acho que a mulher vai dominar o mundo [risos] E certamente as mulheres estão tendo participação fundamental nisso tudo que está acontecendo [no Brasil]. Espero que o que a gente está vivendo não signifique um retrocesso nesse sentido, porque seria realmente muito, muito, muito triste. Tivemos muitos avanços, e um deles foi o empoderamento da mulher brasileira. [Perder isso] seria um grande retrocesso. Não acredito que seja possível voltar atrás. Mas, de qualquer maneira, o machismo tem de ser combatido.

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