Joana Mariani: “O documentário dirige você, e não o contrário”

A diretora Joana Mariani estava em uma emissora de televisão concedendo sua primeira entrevista sobre o filme Marias, que está em cartaz no Brasil. Ao ouvir uma das perguntas, não conseguiu evitar o que chamou de “cara estranha”:

“Qual vai ser seu próximo documentário?”

A cara estranha se explica: foram seis anos de trabalho para lançar Marias, filme que acompanha diferentes celebrações de Nossa Senhora em Brasil, Cuba, México, Nicarágua e Peru. Neste período, a diretora fez um spin-off em formato de série para o canal GNT e chegou a jogar um corte inteiro do documentário no lixo, recomeçando a edição do zero.

“Saí para fazer um filme sobre fé, mas ele se colocou como um filme sobre a questão do feminino, dos valores femininos, do motivo pelo qual a figura feminina é importante. E eu fiquei um pouco travada nisso”, contou a diretora, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Quando joguei tudo no lixo e comecei de novo, [a nova perspectiva] veio muito naturalmente.”

Imagem do documentário "Marias", de Joana Mariani

Joana Mariani nasceu em Londres, cresceu no Rio de Janeiro e vive em São Paulo. Depois de começar a carreira na publicidade, em 2006 migrou para o cinema, dirigindo os curtas Cotidiano (2008) e Cavalo (2010). Além disso, trabalhou como diretora-assistente em À Deriva (2009), de Heitor Dhalia, e Estrada 47 (2013), de Vicente Ferraz.

Na entrevista a seguir, ela fala sobre as filmagens e o processo de edição de Marias, conta o que aprendeu durante as viagens pela América Latina e dá um conselho às futuras diretoras: “Persistência, paciência e consciência.”

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Como o filme se relaciona com a série exibida pelo GNT?
A série é um spin-off do longa, mas foi lançada antes. Quando comecei a filmar o documentário, o GNT me chamou para montar um programa com a sobra de material. A série é mais clássica – são três blocos, [com depoimentos de] três mulheres, em 23 minutos. Não tem muito aprofundamento, é bem didática. O filme não se propõe a ser inédito em termos de linguagem, mas tem uma navegação mais sensorial.

Foi por causa da série que o filme levou seis anos para ser concluído?
Não. Na verdade, editei a série razoavelmente rápido, porque os tempos de televisão são rápidos. [Levou] dois ou três meses. Aí fui para o filme, que ficou pronto no ano passado, para o Festival do Rio e a Mostra. Fizemos um ano de festivais e fomos nos preparando, sabendo que seria um lançamento complicado porque documentário é um lançamento complicado, ponto. A gente queria ter tempo, já que não tínhamos dinheiro. Mas [a razão do longo tempo de produção é que] o documentário dirige você, e não o contrário. Tive de aprender a abrir mão dessa teimosia. Acho que fiz um documentário na minha cabeça e saí para filmá-lo, mas ele se apresentou como outra coisa. Fiquei teimando na ilha de edição que ele era o que estava na minha cabeça, até que aceitei que ele me dissesse o que era. Esse processo foi longo. Montei durante um ano, joguei o material inteiro fora e voltei a montar do zero.

É preciso coragem para jogar um ano de trabalho fora.
É. Mas era necessário. Estava indo para o lugar errado. Originalmente, saí para fazer um filme sobre fé, mas ele se colocou como um filme sobre a questão do feminino, dos valores femininos, da fé no feminino, do motivo pelo qual a mulher, a figura feminina, é importante. E eu fiquei um pouco travada nisso. Quando joguei tudo no lixo e comecei de novo, [a nova perspectiva] veio muito naturalmente. Talvez tenha ajudado a troca de um montador homem por uma montadora mulher. Talvez isso tenha mudado a percepção das coisas.

No filme, vários de seus entrevistados contam como veem Maria, e as imagens descritas variam bastante. Não sei se você é religiosa, mas quem é Maria para você?
Não sou religiosa. Minha mãe é judia e nasceu em Israel, meu pai é católico apostólico baiano, como ele diz. Fui criada sem religião, mas sempre tive uma fé muito grande. Sempre tive um olhar interessado para Nossa Senhora, mas não tenho nenhuma [imagem definida]…gosto muito de Aparecida. Talvez porque foi onde o documentário começou. Foi gostoso fazer [a filmagem], há muito tempo vou para lá. E é a nossa, né? Não tem muito jeito. Acho que talvez tenha uma relação com ela. Mas gosto de Nossa Senhora, de Maria mesmo, de forma ampla. Da figura histórica.

Como você escolheu os países nos quais iria filmar?
[Escolhi o] México porque Guadalupe é a advocação mariana mais adorada do mundo, e a festa é do mundo. O Brasil, por razões óbvias. Cuba, por duas razões: primeiro pela questão do Estado laico, depois pela questão da Santería. Nicarágua, pelo tipo de mulher que sabia que ia encontrar – essa dureza nicaraguense, a Revolução Sandinista. A festa da Nicarágua, a “gritaria”, é muito particular. Mas, além disso, tínhamos de buscar personagens diferentes e sabia que lá encontraria mulheres diferentes. No Peru, me interessava investigar como a colonização substituiu as deusas ancestrais por Nossa Senhora. Então foi assim. Fui também para a Argentina, mas acabei não montando.

Imagem do documentário "Marias", de Joana Mariani

No filme, muitos entrevistados associam a imagem de Maria ao feminismo, à força e à liderança da mulher. No entanto, essa adoração latino-americana pela Nossa Senhora não se traduziu em sociedades feministas – ao contrário, são países em que, em geral, é difícil ser mulher. Há uma contradição?
Acho que é a velha máxima do da porta para fora e da porta para dentro. Da porta para fora, as sociedades latino-americanas são patriarcais: o homem fala mais alto, há violência, abandono, problemas que estão longe de ter solução. Mas da porta para dentro, os núcleos familiares são matriarcais. A mulher é o centro da família, o arrimo. Ai de você se falar mal da mãe de um homem. Como Maria poderia ajudar numa mudança? O que tirei de aprendizado desse tempo todo, dessas viagens e desse filme, foi que estamos com falta de valores femininos. Estamos respondendo violência com violência: grita, que eu grito mais alto; bate, que eu bato mais forte. O mundo está muito polarizado, em todos os aspectos. Até nos posts do filme no Facebook, uma mulher fala uma coisa, o cara [comenta] embaixo: “sua idiota, não é nada disso”. Eu também às vezes tenho vontade de fazer isso, mas acho que é um exercício.

A quais valores você se refere como femininos, por exemplo?
A gentileza, o acolhimento, a compreensão. As pessoas não estão aceitando os outros. Ou você é da esquerda ou é da direita. Minhas assistentes me contam que, quando defendem o feminismo, são chamadas de “feminazi”. Talvez se colocarmos os valores femininos…porque não depende de gênero. É uma coisa mais ampla do que gênero.

Que conselho você daria para as mulheres que querem ser diretoras?
Persistência, paciência e consciência de que é todo um processo. Estamos ganhando bastante espaço, tem muita gente lutando pelas mulheres no audiovisual em todo o mundo, não só no Brasil. É legal o movimento que está acontecendo, mas o processo é lento e longo. É uma profissão complicada pra gente. Mas eu não trocaria! Eu gosto! Então o que posso dar de conselho é persistência, paciência e consciência. E tentar encontrar o que a sua voz quer falar. Só fui dirigir meu primeiro longa quando entendi sobre o que queria falar. Acho que isso é importante.


Veja o trailer de Marias:

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